Little Creepy Girl escrita por Berka


Capítulo 1
No one ever thought she could do that




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Cocei a cabeça em busca de inspiração para meu trabalho, uma coluna no jornal daquela cidadezinha quase desconhecida. Poucas pessoas a liam, até acho que ninguém mesmo se importava se eu as escrevia, só sei que devo ter escrito algo que irritou muito alguém. Só isso justificaria o que assombrosamente tinha acontecido naquele fim de tarde cinzento.

Servi uma xícara de chá quente de maçã com canela e me arrastei até a janela do meu duplex que dava diretamente para o casarão do final daquela rua de calçamento antigo. Respirei fundo mirando meu olhar para a janela do quarto de cima, onde curiosamente uma luz ofuscava fracamente. Desde que os Blackhoole desapareceram misteriosamente há alguns dias, aquela casa sombria vivia sendo invadida pelas crianças do bairro. O caseiro e criado da família, Sr. Lockdoor, sempre saía aos berros pelo quintal para assegurar que o patrimônio dos Blackhoole não fosse violado. Estranho que ele ainda não tenha aparecido.

Dei de ombros e virei-me até a escrivaninha, onde uma folha de papel em branco me encarava sem respostas. Sem ideias para meu próximo artigo. Já não aguentava mais a pressão do trabalho desde que recebi aquela carta anônima com ameaças, mandando que me calasse. Talvez eu devesse fazê-lo.

Um grito aterrorizante rasgou a noite me puxando para a realidade, me atingindo como um choque. Petrificado, pisquei algumas vezes até conseguir mover-me até a janela para ver o que tinha acontecido. Uma pequena sombra arremessou um corpo da varanda do casarão Blackhoole, que rodou no ar e bateu com força na enorme floreira de mármore do jardim. Meu estômago deu voltas até eu tomar coragem e ir até lá.

Puxei meu casaco de inverno com pressa do cabideiro e corri desenfreadamente pelo cômodo, esbarrando em todos os móveis. Com um pouco de dificuldade consegui descer as escadas e passar pela porta de entrada sem trancá-la. Era uma urgência, não havia tempo para isso. Atravessei a rua fazendo uma imensa força contra o vendaval que se formava. Ao chegar ao portão do casarão com um enorme brasão prateado da família, pude notar que ele estava aberto, mas não por esquecimento ou descuido. Estava propositalmente aberto, como se me esperassem.

Adentrei os jardins secos da casa e segui em passos firmes até aonde parecia ter visto o corpo despencar cadavericamente. Meu corpo enrijeceu ao notar a ausência de qualquer corpo que houvesse. Não havia corpo, mas uma grande mancha de sangue recém derramada sobre o granito da floreira. O rastro de sangue continuava até o interior do velho casarão.

Como se meu espírito estivesse ciente de que adentrar aquela casa poderia resultar em algo muito maligno, meus pés travaram antes que eu me colocasse para dentro do luxuoso hall de entrada dos Blackhoole. Sabia o quão era importante que eu checasse o que estava acontecendo, mas tudo indicava que havia algo de muito errado ali.

Notas de uma música um tanto quanto infantil começou a soar do piano velho da família. Antes que meu cérebro pudesse assimilar o que estava acontecendo, uma voz que parecia ser de uma doce garotinha começou a cantarolar animadamente dentro do casarão. Tinha gente na casa, eu estava certo disso.

Tomei coragem e adentrei o casarão assustador que estava sendo invadido. Caminhei com cautela até a sala ao lado, onde uma pequena criatura surgiu repentinamente em minha frente. Demorei um tempo até perceber que aquela estranha figura era um gato, devido à falta de iluminação no local e à bizarra aparência do animal. Seu pêlo preto, opaco e duro estava sujo com uma substância que não pude identificar, seu rabo tinha sido quebrado várias vezes e provavelmente calcificado, pois ele não expressava nenhum sentimento de dor ao balançá-lo lentamente enquanto me encarava firmemente com seus enormes olhos cor de âmbar. Tranquei a respiração ao vê-lo arrepiar-se e soltar um forte grunhido para mim, mas antes que eu me esquivasse do ataque do felino a música parou e ela apareceu.

Kerli Blackhoole estava diante de mim, como se tudo aquilo fosse possível. Sua aparência era medonha. Aqueles belos olhos castanhos esverdeados agora estavam emoldurados por fortes olheiras. Seus cabelos loiros quase brancos, antes arrumados impecavelmente, agora estavam mal presos por fitinhas pretas e um pouco emaranhados, com sua franja solta diante dos olhos. Seus pequenos lábios estavam extremamente aterrorizantes, talvez por trazerem um sorriso amedrontador que me causaram arrepios. Ela vestia um casaco cinza comprido que ia até o meio das coxas por cima do seu suéter favorito, aquele que ela mesma fizera com ajuda de sua mãe. Sua saia estava quase toda escondida debaixo do velho casaco, deixando seus joelhos ossudos à mostra. Seus pequenos pés levavam um par de galochas alguns números a mais do que ela calçava e, assim como toda sua vestimenta, estavam gastas e sujas com o mesmo tipo de sujeira que o gato levava no pêlo. Em uma de suas mãos Kerli levava sua bonequinha inseparável que ela sempre cuidou com muito carinho, mas neste instante estava sendo segurada com brutalidade pelo bracinho de pano com sua roupa toda gasta, cabelos arrancados e embaraçados e lhe faltava um olho de botão. Definitivamente não havia carinho nenhum com aquele brinquedo velho. A outra mão estava para trás das costas, enquanto seu gato enroscáva-se entre suas pernas ronronando e mostrava seus dentes como se quisesse sorrir diabolicamente.

- Srta. B-Blackhoole? - gaguejei esperando que algo me despertasse daquele sonho estranho.

- Olá, Sr. Kaulitz. Gostaria de brincar comigo? - ela alargou seu sorriso e arregalou seus olhos, dando um pequeno passo em frente. Automaticamente recuei.

- Er, do quê exatamente? - perguntei receoso.

- Eu pensei em algo como "silêncio". - ela levou o dedo indicador com a boneca até os lábios e sorriu maliciosamente. - Acredito que você saiba como funciona. - Kerli me encarou com um olhar ameaçador.

- Perdoe-me, Srta. Blackhoole. Tenho muito trabalho a fazer e já está ficando tarde, então acho melhor eu ir... - fui andando para trás e esticando a mão até a maçaneta da porta, vendo a expressão da garotinha fechar e tornar-se preocupante.

- Você falou. Não respeitou a regra do jogo e deverá ser penalizado. - antes que eu me desse conta, a pequena menina tirou de trás das costas um bastão de madeira e acertou-me com força na cabeça. Uma dor intensa tomou conta de meus pensamentos e tudo ficou negro.

Minhas costas arrastavam no assoalho empoeirado da casa e batiam bruscamente contra os degraus da escada que levava aos quartos. Kerli me arrastava pelo braço com uma facilidade monstruosa enquanto cantarolava a canção que antes tinha tocado no piano da sala de estar. Tentei reagir, mas minha cabeça rodava e doía intensamente. A garotinha me largou no chão enquanto abria a porta do quarto, então aproveitei para passar a mão aonde tinha sido a pancada. O sangue em meus dedos me deixou enjoado. Quando ela tornou a me arrastar, deitou-me desajeitadamente em uma cama de casal com um acolchoado cinza com cheiro forte de mofo. Sem reações, ela amarrou minhas mãos com uma fita de renda antiga e afastou-se para pegar algo na cômoda. Minha visão turva percebeu que ela voltava a se aproximar de minha face, mas agora com algo nas mãos que me fez entrar em pânico. Uma agulha com uma linha preta anunciava minha tortura.

- Se não quer obedecer às regras, eu o terei de forçá-lo. - ela demonstrou falsa piedade. - Não vai doer muito. Emily passou por isso e nem ao menos resmungou. - Kerli sorriu perversamente e apontou para a boneca de pano sentada em uma cadeira de balanço no canto do cômodo, e para meu pavor, com a boca toda costurada.

- N-não faça isso, por favor! - implorei fracamente, mas ela negou com a cabeça e segurou meu queixo. Não consegui evitar.

Kerli passou a agulha em meus lábios perfurando minha pele, arrancando de mim um gemido de angustia enquanto lágrimas brotavam em meus olhos. O sangue verteu em minha boca com aquele sabor ferroso que eu tanto temia. Senti a linha negra passar arranhando o furo e sendo amarrado firmemente pela garota que sorria satisfeita com o próprio trabalho.

- Calma, Sr. Kaulitz... Ainda não comecei! - ela riu e continuou a perfurar meus lábios e cruzar a linha em um trançado macabro. A dor era tanta que perdi os sentidos.

O ranger dos assoalhos me despertou. A garota se embalava na cadeira de balanço murmurando palavras ao seu gato e ria discretamente.

- Dormiu bem, Sr. Kaulitz? - ela levantou-se tirando o gato do colo e sentou-se ao meu lado. - Ah, me perdoe. Esqueci que não pode falar. - ela riu infantilmente de sua brincadeira e balançou os pés. - Espero que não esteja magoado comigo. Sabe que só fiz isso pra você aprender. - respirou fundo e me encarou séria. - Aprender que não devemos falar quando não convém. Sei que há outros modos de se comunicar, mas espero que você não recorra à eles, se não terei que lhe ensinar outras lições. - ela sorriu e passou a mão em minha testa como se demonstrasse afeto. Gemi de dor e a encarei aterrorizado.

A porta de entrada rangeu lentamente, tirando-a do transe. A garotinha deu um pulo sorrindo e me fitou esperançosa.

- Acho que temos visita. - Kerli virou-se até a porta e desceu as escadas correndo, até eu não conseguir ouvir mais um ruído sequer.

Tentei livrar-me freneticamente das amarras em meus punhos e na cabeceira da cama. Quando finalmente soltei-me, levantei fracamente e caminhei em passos leves até o início das escadas. Consegui ouvir risadas infantis vindo do hall do casarão, mas logo em seguida gritos aterrorizados. As crianças do bairro estavam lá. Todos saíram correndo quando avistaram Kerli Blackhoole viva caminhando em direção a eles, menos um pequeno garoto ruivo que ficou trancado para o lado de dentro da casa por seus amigos.

- Socorro! Deixe-me ir, por favor! Eu vou embora! - um garotinho implorava tremendo e soluçando.

- Não deveria estar aqui, sabia? - ela riu e aproximou-se do garoto, apanhando uma faca que estava jogada no canto da sala.

- Eu juro que não farei de novo! - ele chorava desesperado. - Deixe-me ir! - implorou fracamente.

Fiquei aterrorizado. Tentei berrar para chamar a atenção de Kerli, mas esqueci que meus lábios estavam costurados. Fui descer as escadas, porém, antes mesmo de pisar no primeiro degrau a garotinha perturbada puxou-o pelos cabelos e o jogou no chão, que bateu o rosto no assoalho de madeira. Kerli sentou-se em suas costas e cravou-lhe a faca repetidas vezes. Os gritos do garoto chegavam a fazer meu corpo vibrar. Comecei a ter ânsias de vômito ao ver aquele pobre menino se cruelmente assassinado e eu nada podendo fazer.

Virei-me aterrorizado para o corredor e corri até o quarto que dava para varanda. Meu coração quase explodiu com a visão que tive. O Sr. Lockdoor morto, sentado torto em uma pequena cadeira de criança diante de uma mesa com um jogo de chá de bonecas em cima. Fiquei paralisado. O corpo que eu tinha visto há umas horas antes estava bem ali ao lado, como se fosse um brinquedo da pequena Blackhoole.

- Bem na hora do chá. - a voz da garotinha soou musicalmente atrás de mim. Virei-me apavorado e a encontrei segurando o corpo do garotinho inerte. Ela o arrastou até outra cadeirinha e o largou sem se importar. - Espero que goste de chá de maçã com canela, Sr. Kaulitz. - ela falou cerrando os olhinhos e sentando-se a mesa.

Afastei-me em choque com tudo aquilo esbarrando em um mural. Folhas e folhas saíram voando pelo quarto até uma chamar minha atenção, o artigo que eu tinha escrito esta semana sobre o estranho sumiço dos Blackhoole. Meu nome estava grifado e haviam várias fotos minhas, todas elas estavam rabiscadas atrás, com pequenas letras tortas dizendo "silêncio".

Neguei com a cabeça tudo o que vi. Não podia acreditar no que estava acontecendo. Era tudo vingança.

- E você sabe o que significa tudo isso? - ela sorriu e caminhou até mim. - Você é corajoso o suficiente para descobrir?

Virei-me correndo e andei em passos apressados até a escada, com a cabeça rodando tentando assimilar todas as informações.

- Sr. Kaulitz. - ela falou firmemente logo atrás de mim antes que eu descesse a escada. - Vá em frente e você estará perdoado. - ela parou séria.

Coloquei o pé no primeiro degrau e senti um empurrão. Meu corpo perdeu o equilíbrio e despencou pelos degraus de madeira da longa escada. Quando cheguei finalmente ao chão, todos os meus ossos pareciam ter sido quebrados e eu não conseguia me mover, nem mesmo gritar de dor.

- Vá em frente. - ela sorriu desafiando-me e sumiu por uns instantes. Fechei os olhos implorando pelo fim do pesadelo, quando Kerli voltou com um galão de álcool e derramou todo o líquido em mim. - Ninguém pensou que eu pudesse fazer isso. - ela falou com rancor.

Arregalei os olhos implorando para que ela não o fizesse, mas já era tarde. Kerli Blackhoole riscou um fósforo e jogou até mim, assistindo a cena fascinada.

Todo o meu corpo ardia em brasa e queimava. Senti meu rosto sendo desfigurado e meu cérebro explodir de desespero. Minha visão foi ficando cada vez mais turva e eu ia perdendo meus sentidos.

- Sinta, respire, acredite e você estará andando no ar... Muito em breve. - a garotinha sorriu delicadamente e cantarolou sua música, sentando-se de pernas cruzadas no chão e observando o meu fim.


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Notas finais do capítulo

Caaaaaaabooooo! ;D Gostaram?