Aloofness escrita por tomm


Capítulo 1
One-shot


Notas iniciais do capítulo

"A indiferença é a maneira mais polida de desprezar alguém." - Mário Quintana



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Com a voz firme, a figura esquecida no início da longa bancada do bar pediu mais uma dose. O homem gordo do outro lado do balcão virava mais uma vez a garrafa preenchendo o fundo do copo com o líquido vermelho. Ele estava acostumado a ver bêbados – eram seu ganha pão – mas daquele homem ele conseguia sentir uma pena terrível. Quase podia ver seu espírito meio morto nas feições destruídas. Eram cinco da tarde e o bar ainda estava vazio, as cadeiras estavam de ponta-cabeça em cima das mesas, e aquele era o horário em que suicidas faziam as últimas decisões de suas vidas, acreditava ele. Entregou ao pobre coitado um pedaço de papel e uma caneta. Deixou também a garrafa.

- Deixe seu endereço aí cara. Ninguém aqui te conhece caso tu caia, e eu preciso cobrar a conta. Além do mais, o taxista vai confiar mais em mim que em você.

Cansadamente, o homem escreveu seu endereço e número de telefone no papel. O dono do bar estava certo, não sairia dali acordado: Estava ali para se afogar; E não pretendia parar de beber enquanto não sentisse que apenas sua nuca era vista na superfície do desespero.

 

.~.

 

“Dr. Hughes, Sala de Diagnóstico número 3, stat.”

Ele se levantou da pequena cama e vestiu o guarda pó branco, olhou-se no espelho e passou as mãos pelo cabelo curto. Era um homem alto e quase musculoso, resultado de muitas horas trabalhando sem alimentação e com insônia, às vezes na academia perto de casa. Seus olhos, combinando com os cabelos ordinários e com a pele morena, eram castanhos e expressivos, no momento decorados por olheiras arroxeadas. Estava visivelmente cansado, mas finalmente seu plantão de 36 horas estava acabando. Lembrava-se sempre de como era no início, as pernas bambas e a dificuldade para prestar atenção em qualquer coisa. Depois de algum tempo acaba-se acostumando, dizia sempre aos residentes: Apesar do cansaço as ações viram praticamente robóticas, a mente consegue descansar enquanto o corpo age mecanicamente.

Dwayne Hughes era um dos cirurgiões sênior do hospital, e apesar de não ter tido interesse em dirigir o departamento pediatria, sua especialidade, era um dos profissionais mais respeitados do lugar. Sua recusa à chefia se devia ao fato de gostar demais do que fazia para escolher se preocupar com papeladas e relatórios, deixando este tipo de coisa para quem o dinheiro realmente importava. Tinha vasto conhecimento clínico, mas o que gostava de fazer era a cirurgia pediátrica. Não gostava nem um pouco de pensar que seus esforços para salvar uma vida poderiam ser logo em vão por causa de alcoolismo, velhice, doenças degenerativas e o caramba; Gostava de se sentir responsável por um futuro que poderia vir a ser brilhante. Trabalhou por algum tempo apenas com diagnósticos, mas não conseguia se sentir o mesmo: Apontar o problema e deixar que outros o resolvessem não era sua praia. Porém por causa do período passado, era frequentemente chamado para dar sua opinião em casos mais complicados pelos residentes.

O Presbyterian Heastone Hospital era um mega-departamento da Heastone University, dotado de bastante fama na região pelo seu centro pediátrico. Os maiores profissionais da área davam palestras regularmente no local e participavam ativamente das convenções promovidas graças aos contatos do diretor, Justin Knoplerr. O prédio era um bloco maciço de quatro pisos de formato quadrado, construído exclusivamente para servir como hospital-escola para os alunos de medicina. As áreas de especialização eram divididas entre os andares e alas norte e sul: O térreo com a clínica, triagem e uma pequena cantina, primeiro com pediatria e maternidade, segundo com UTI e ala cirúrgica e o terceiro com centro de internação e diagnósticos. Havia ainda um subsolo com almoxarifado. O hospital havia ganhado fama rapidamente por que conseguia sacrificar o luxo e ostentação por um ambiente completamente funcional e confortável para os pacientes, por mais que isso custasse o conforto dos empregados.

Dwayne abriu a porta e saiu voando pelos corredores, desviando de enfermeiras e outros médicos, passou pelo saguão apressado, pegando as escadas para o andar superior onde ficava a área de diagnósticos a que havia sido requisitado.

 

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A garrafa se esvaziava a cada baque em cima do balcão envernizado. Sentia que seu braço começava a ter movimentos exagerados; Às vezes batia forte demais e às vezes demorava a colocá-la no lugar. De alguma forma era divertido – tirava-o do transe de pensamentos e emoções. Lá fora ainda predominava a cor alaranjada do crepúsculo, a luz do Sol era refletida nas nuvens que haviam aberto espaço finalmente, depois de uma semana ininterrupta de chuva. A luz ainda entrava no ambiente que cheirava a cigarro barato, iluminando com fachos de luz a poeira no ar a cada cadeira que o atendente tirava das mesas de canto e colocava no chão. Se notou tudo isto? Nem ele mesmo tinha certeza do que notava. Durante os últimos dias deixava cada vez mais de enxergar o mundo material e se mergulhava em sentimentos. Se fechasse os olhos enquanto lúcido, seria comido por um monstro, disso Dwayne Hughes tinha certeza.

 

.~.

 

Câncer novamente. Terminal. Enquanto voltava para a ala pediátrica, Dwayne se lembrava suspirando da residente responsável pelo caso chorando por causa de seu diagnóstico. Bobagem, daqui a uns anos ela vai se importar mais com um esquilo comendo seus cereais, pensava ele. Conseguia se lembrar de seu início: O quanto a juventude o fazia se importar com tudo, como se esforçava para negar a realidade médica de uma maneira romântica.

Quando abriu a porta da escada de emergência e entrou no corredor movimentado da parte posterior da ala pediátrica, voltou sua atenção para o relógio que estava na parede a alguns metros e percebeu, com bom humor, que o seu plantão estava terminando. Dirigiu-se para a porta sem indicação no mesmo andar onde ficava o vestiário dos funcionários. Seu armário era um dos primeiros opostos à porta, e rapidamente estava trocado com roupas informais e armado com pastas que levaria para casa para estudar para cirurgias marcadas e casos mais complicados de diagnóstico e, principalmente, com a chave do carro.

Cumprimentando com um aceno de cabeça ou um sorriso as pessoas conhecidas por quem passava Dwayne chegou, depois de passar pelo elevador apinhado, na recepção onde registrou seu horário de saída e se encaminhou para as grandes portas de vidro em direção ao estacionamento. As portas abriram automaticamente quando ele se aproximou, e ele cruzou com uma dupla no mínimo estranha após passar pela marquise onde ficava o letreiro com o nome do hospital: Um homem moreno e – podia julgar pela falta de cabelo em volta do chapéu de feltro que usava – careca passado da meia idade com semblante arrogante e com descendência obviamente indiana - denunciava a testa larga e o nariz adunco. O segundo era um garotinho que não aparentava mais do que sete ou oito anos, caucasiano no sentido mais puro da palavra e com cabelos loiros lisos caídos no rosto. Chamaram-lhe a atenção por serem o maior esteriótipo de duas culturas: O pirralho era praticamente uma cópia do que ele sempre imaginou ser Danny Torrance, o personagem ‘iluminado’ de Stephen King e o outro lembrava um Ghandi mais novo enfiado em roupas de inverno e um sobretudo de couro falsificado marrom escuro. Deixou escapar uma pequena risada ao prestar atenção no guarda chuva branco quase maior que ele que o garotinho carregava, batendo no chão como se fosse uma bengala. Prestou atenção mais do que devia e deu mais alguns passos em direção ao seu carro quando escutou um baque surdo atrás de si. Distraidamente virou-se e viu o garoto caído no chão agarrando com as mãos o peito. O menino estava pálido, o semblante congelado de impotência; o indiano ajoelhado ao lado olhando em volta em pânico.

 

- Parada cardíaca?! Esse garoto tem uns oito anos! – Johann Laurent discutia com Dwayne, ambos ao lado da maca que corria pelos corredores do hospital.

- Isso não muda o fato de o coração dele não estar batendo! –replicou-lhe, continuando a massagem cardíaca.

Lentamente o pulso do garoto voltou, fraco porém estável. Ele foi acomodado em um quarto da ala pediátrica e conectado a um monitor cardíaco, supervisionado sempre por uma enfermeira. O pequeno dormia pesadamente, com o rosto ainda branco. Ao checar sua estabilidade o médico decidiu que não havia nada mais que ele pudesse fazer a não ser deixar o caso com o médico responsável pelo diagnóstico, Johann Laurent. Dwayne fez questão de deixar este caso suspeito nas mãos de seu amigo e melhor pediatra que conhecia. Finalmente, estava se encaminhando para o saguão de entrada para ir para casa e dormir por um dia inteiro. Ao passar pelo saguão quase vazio naquela hora da noite, porém, ele encontrou o companheiro indiano do garoto discutindo no balcão. Ele afogueado falando com o sotaque forte em tom alto e a enfermeira tímida e acuada, branca de medo.

- Posso ajudar em algo? – Dwayne chegou próximo aos dois.

- Dr. Hughes, este senhor...

- Esta senyorita non está aceitando un paciente no hospital! – O indiano atravessou bruscamente a atendente loira balançando as mãos freneticamente.

- Ele não tem a documentação do paciente! Não podemos internar ninguém sem a documentação – A moça respondeu em tom alto, como se subitamente resolvesse atacar o senhor intransigente que não conseguia entender a impotência de uma mera atendente.

- Eu non conyeço o garoto! – O homem arregalou os olhos e cresceu novamente em cima da pobre moça.

- Opa opa, acalmem-se os dois! – O médico passou os braços em volta do homem – Será que o senhor não poderia sentar ali e esperar cinco minutos? Acredito que posso resolver este pequeno problema.

- Isto é un absurdo! Como podem deixar uma mera atendente falar assin con seus clientes? – O indiano saiu esbravejando em direção às poltronas de espera logo na frente do balcão.

- Muita sorte para sua primeira semana hein? – O médico sorriu confortando a moça.

- Eu já esperava por algo assim. Tive até uns calafrios quando ele entrou com aquele olhar de paizão. - Ambos riram baixinho, o homem lançou-lhes um olhar colérico ao perceber que riam dele.

- Vamos lá Ellie, tenho certeza que podemos dar um jeito nisso... – Dwayne disse brincalhão.

- Dr. Hughes... Sabe que não posso! É muito mais fácil para os chefões que demitam uma atendente de meio expediente que um cirurgião de nome internacional...

- Deixe disso! Eu prometo que tomo toda a responsabilidade.

- Ah é? O senhor vai tomar responsabilidade se esse garoto morrer caso demos a ele o tipo sanguíneo errado? E se ele tiver sido... Sei lá, sequestrado?

O médico franziu a testa. Sabia que esta era uma alternativa. O tráfico de menores não era uma realidade muito longínqua entre garotos caucasianos para que sirvam na prostituição – pelo menos as tentativas.

- Vamos fazer assim: Eu assumo os riscos quanto a interná-lo sem os dados e termos de responsabilidades paternas, e você pode tentar descobrir quem é o pirralho.

- Doutor... Se me cortarem a cabeça eu irei atrás do senhor até que me arranje um emprego novo!

- Sabia que podia contar contigo Ellie. – Deu uma piscadela que enrubesceu a garota e se virou em direção ao homem que já estava impaciente alternando olhares entre eles e o chão.

- Aquele garoto tem sorte! Tombar bem na frente de um hospital...

- Non me leve a mal, senyor...

- Dr. Hughes.

- Non me leve a mal, Dr. Hughes. Eu levava o garoto para un hospital e este era o mais próximo. Tivemos alguma sorte para que aquilo non acontecesse antes que chegássemos.

- Bem, de qualquer forma – Ele se sentou com um olhar mais sério – Precisamos de informações sobre a saúde dele. Você sabe: tipo sanguíneo, alergias, estas coisas.

- Dr. Hughes, por favor non se finja de inocente. Nós dois sabemos que o senyor desconfia de min, e não lhe tiro a razão; Eu non sei de nada disso.

- Sinto muito, mas não consigo entender o senhor. Estava humilhando uma empregada deste hospital há dois minutos a trás por que queria internar este garoto mas nem mesmo o conhece.

- Acredito que non tenhamos esclarecido algumas coisas aqui, Dr. Hughes. O senyor non precisa confiar en min ou me entender. Quero apenas que salve aquele garoto. Esta é sua obrigaçon.

- Não acho que possamos ajudá-lo. – Com esta afronta, o médico resolveu declarar guerra.

- Non sou eu que preciso de ajuda, Dr Hughes. Uma criança de oito anos é que precisa.

- Acredito que tenha que avisá-lo – O médico se levantou, assumindo um ar cético – Que estamos investigando aquele garoto. Espero que o senhor esteja preparado para responder algumas perguntas às autoridades.

- O senyor deve se limitar às suas responsabilidades médicas, Dr Hughes. De minyas responsabilidades como cidadon cuido eu.

Dwayne levantou-se e foi pisando duro em direção às portas para sair do hospital pela última vez naquela noite.

 

.~.

 

Ferdinand entrou no bar cumprimentando o bartender com um sorriso e um Eaí Jay, notando o forasteiro sentado na primeira banqueta. Era estranho, ele era sempre o primeiro.

- Temos visitas hoje, Jay? – Sem esperar resposta e estapeando as costas do estranho na região do ombro – Eaí cara, meu nome é Ferdiand...

-... fora...

-... eu to sempre por aqui e nunca te vi, sabe como é, a gente precisa fazer um social quando tem...

-... ai fora...

-... carne nova no pedaço, e como eu nunca te vi por aqui pensei se era amigo...

-... CAI FORA – Dwayne se virou bruscamente e o copo que segurava foi pro chão com a mesma velocidade com que o braço de Ferdinand fora repelido de seu ombro.

Por um instante se viu o medo do bêbado desconhecido que tomava seu lugar como primeiro cliente do dia no bar do Jay. Depois de um segundo de silêncio em que o bartender tirou os olhos dos copos que enxaguava, o fogo do desejo de satisfações tomou conta dos olhos de Ferdinand. Ele era o primeiro cliente, mas que porra.

Com um movimento bem mais rápido do que os reflexos alcoolizados de Dwayne conseguiram acompanhar, Ferdinand agarrou as lapelas da jaqueta de náilon preta do novato e o jogou contra a parede mais próxima, tremendo todas as estantes e retinindo o barulho de copos de vidro resistente batendo uns contra os outros.

- Quem tu acha que é pra falar assim comigo, porra?! Tu é só um novato aqui! – Cuspia. Fedia a suor e cimento. E não sentia resistência.

Naquele instante, porém, Dwayne conseguiu ver que sua impotência em se defender não se tratava de se livrar de uma companhia indesejada. Não se tratava – na verdade, isso nunca passou pela sua mente – de proteger seu orgulho de bar. Não. Aquilo tudo era apenas uma questão de proteger os outros. Não queria que o vissem naquele estado deplorável, ou pessoas que não mereciam poderiam ser afetadas por ele. Era como um zumbi – qualquer coisa que chegasse muito perto seria mordida contra a sua vontade e se não fosse morta iria apodrecer de dentro pra fora. Aquilo era a culpa? Culpa de ter tido uma vida em suas mãos e deixa-la escapar conscientemente? Não. Era algo muito maior que simples culpa que se estagnava com o tempo. Estava sendo lentamente engolido e digerido – escapara dos dentes que mastigavam mas seria dissolvido no estômago do monstro que afinal conseguira abocanhá-lo.

- Puta que me pariu Fer, larga esse cara! – O bartender chegara finalmente, esmurrando o balcão e congelando a cena de vez.

- Foda-se Jay, foda-se. – Largou o estranho que escorregou escorado na parede até o chão, sem se preocupar em limpar as gotas de saliva da cara – Me dá uma Heineken aí – Sentou-se na última mesa perto dos banheiros – Parece que vai chover de novo.

 

.~.

 

O garoto e o indiano haviam acabado com a folga de Dwayne. Simples assim, estava de volta ao hospital para um turno de oito horas e não conseguira parar de pensar na dupla icônica. Seu dois dias de descanso se resumiram a muitas horas de cama e algumas estudando. Pensou em ligar pra alguma paquera para um encontro rápido mas se sentiu contrariado. Queria apenas dormir, assistir televisão, comer besteira, talvez malhar um pouco e dormir mais até a hora de voltar ao trabalho. Porém sempre que se concentrava demais em qualquer uma destas tarefas tanto a imagem do garoto esbranquiçado segurando o peito quanto o indiano e seu sotaque “estranyo” lhe apareciam. Bem, que quer que tenham feito, conseguiram trazê-lo de volta ao trabalho para se preocupar com eles.

- Dr. Hughes! – A voz feminina chamou sua atenção logo que entrou no saguão de entrada pela porta de vidro – Preciso falar com o senhor por um instante – E procurando a origem da voz encontrou a atendente Ellie.

- Diga princesa! – Andou até ela animadamente com seu melhor sorriso conquistador de enfermeiras – mais problemas com o oriente?

- Não faça brincadeiras doutor! – Ela falou com uma risada contida – Apenas achei que o senhor devia saber que a polícia esteve aqui, mas não levaram o homem.

- Bem, eu não o vejo aqui, então deve estar tudo bem, certo?

- Não exatamente... Aquele homem não saiu daqui até agora.

- O que?!

- Ele passou os últimos dois dias aqui... A esta hora deve estar comendo algo na cantina.

- E o garoto? Ele foi vê-lo?

- Então... Foi o que achei estranho: O garoto melhorou, apesar de eu não ter informações a respeito das condições físicas dele, mas quando perguntaram se o homem queria falar com ele, ele recusou! Disse apenas que ia esperar pelo pediatra responsável pelo caso.

- O Dr. Laurent não estava disponível?

- Ele teimou que não acreditava que ele fosse o responsável pelo caso... Disse que falaria apenas com o senhor... – Ela torceu a boca sabendo que estava sendo portadora de péssimas notícias.

- E a polícia? – Ele falou depois de um suspiro de insatisfação, querendo conter sua raiva para quem realmente a merecia.

- Estiveram aqui junto com uma pessoa do Conselho Tutelar, mas não fizeram nada. Eles falaram com o Dr. Laurent.

- Tudo bem, eu irei falar com ele. Obrigado Ellie, bom dia pra você. - Virou-se e parecia que ia soltar fogo pelas ventas.

 

- Você fez o que?! – Dwayne atraiu a atenção de todos os médicos e enfermeiros na sala dos funcionários.

- Eu disse a verdade; O homem salvou a vida do garoto.

- E eles foram embora?

- Com uma recomendação que os chamasse quando o garoto estivesse recebendo alta. – Ele sabia que estava lidando com um Dwayne prestes a explodir. Aliás, que já tinha explodido e estava prestes a explodir de novo com o dobro da intensidade.

- Um estrangeiro entra neste hospital com uma criança não identificada que sofre de parada cardíaca e você quer dar um Nobel pro cara?! Meu Deus Johann!

- Foi o que eu vi cara, não venha me encher o saco. Eu soube que você brigou com o cara antes de ir embora, mas mantenha-me fora disso. – Estava tentando aguentar para não acompanhar o ritmo do outro.

- Você podia desconfiar um pouco mais do cara.

- Não me venha com essa. Eu fiz o que devia.

- Que seja. E o garoto?

- Quer a boa ou a má notícia?

- Que se foda.

- O garoto precisa de um transplante. Coração. – Dwayne virou-se com a expressão de quem já esperava por algo do tipo. Agora o circo estava mesmo montado, que comecem a vender o algodão doce.

- E a boa notícia? O Mahatma Ghandi ali é um doador?

- Precisamente.

 

Dwayne chegou à cantina e rapidamente encontrou o homem de pele morena e testa larga sentado e uma mesa no fundo da sala.

- Acredito que não tenhamos começado bem ontem – O homem não se deu ao trabalho de virar na direção do médico, que tentava sustentar seu melhor sorriso profissional – Primeiramente gostaria de saber o nome do senhor.

- Meu nome ten uma pronúncia muito difícil para vocês americanos. O senyor pode me chamar de Taj apenas.

- Muito tem...  Senhor Taj. Meu nome é Dwayne Hughes, sou um cirurgião geral especializado em pediatria deste hospital.

- O senyor ten novidades sobre o garoto?

- Infelizmente não. Eu não tenho o costume de ter mais contato que o necessário com meus pacientes.

- Entendo. O senyor ten medo.

- Eu não classificaria desta maneira, Taj – Espasmos de raiva apareceram ao longo de seu corpo – Gosto apenas de manter um espaço bem determinado para o profissionalismo.

- Eu chamo de medo, Dr Hughes. Sua profisson é salvar vidas e o senyor tem medo da gratidon delas. – Ele cuspia as palavras com nojo do médico.

Uma pausa desconfortável de vários segundos se seguiu em que Dwayne esfregou o rosto várias vezes. Taj continuava imóvel.

- O garoto vai morrer Taj. Vai morrer se não receber um novo coração.

Mais uma vez, a pausa. As testas de ambos começavam a brilhar com o suor que brotava. Nervosismo da conversa?

- Quanto tempo ele ten para un transplante?

- Não sei.

- O senyor parece ainda non ter ido vê-lo.

- Não fui assim como você Taj.

- Ele é un garoto, deve ser fácil de arranjá-lo un órgon para transplante, non?

- Não podemos fazer isso Taj. O garoto não tem nenhuma identificação. Nem mesmo a polícia pode nos ajudar, já que parece que ninguém deu queixa do desaparecimento dele. Não podemos dar órgãos para indigentes.

- Ele é um garoto. Non é un indigente.

- Independente da idade, é o que ele é.

- Ele é uma criança Dr. Hughes. Uma simples criança que non ten para onde ir.

- Exatamente por isso não podemos dar-lhe o coração.

- Por acaso o senyor está descontando nele sua ignorância, Dr. Hughes?

- Perdão? – O rosto de Dwayne se tornava sádico; iluminado de emoção ao notar que o senyor indiano estava ficando desesperado.

- Non sei se usei o termo certo en sua língua. O senyor está descontando neste garoto o fato de non entender minyas motivaçons, non é?

- Você está forçando a barra Taj. Eu sou um médico e é minha obrigação...

- Salvar vidas. Esta é sua obrigaçon. E o senyor se nega por causa de un detalhe.

Esta era a hora que Dwayne esperava. Era agora que aquele budista metido a besta iria se arrepender de seu ar arrogante de infinita sabedoria oriental. E agora seu sacana? Vai dar o seu coração para o garoto?

- Uma contribuição voluntária seria aceita Taj. Basicamente...

- O senyor precisa que alguén morra na mesa de cirurgia dando seu coraçon para o garoto.

- Exato Taj. Fiquei sabendo que você fez um exame de sangue, não?

- Você pode usar meu coraçon Dr. Hughes

Em seu interior, Dwayne explodiu em gargalhadas. Era sempre assim, no primeiro momento eles aceitam numa boa. Dar a vida por um desconhecido e ganhar um prêmio Nobel. No final apenas o Nobel importava para eles, aqueles filhos da puta.

- Taj Taj... Você deveria pensar mais no que está falando... É a sua vida. Não se prenda a idealismos de humanidade nesta hora. Nós médicos aprendemos a ser lógicos nas horas de necessidade.

- Agora quen non está conseguindo entender sou eu doutor. Onde está a lógica de deixar que un garoto morra quando se ten alguén disposto a lhe possibilitar a vida? Non existe lógica neste argumento.

- Existe um detalhe Taj. Você não pode simplesmente dar seu coração para ele. Precisa que eu te autorize dar seu coração para ele.

- Se non me engano o senyor non é o responsável por este caso.

Dwayne deu um suspiro. O homem sabia argumentar, tinha este mérito. Mas mesmo assim o Estado não daria um coração a um órfão sendo que existem vários filhos de donos de corporações, herdeiros de impérios e mesmo filhos de famílias normais integrantes do American Way of Life para quem os chefões gostariam muito mais de divulgar a eficiente distribuição de órgãos no território nacional. Rapaz, eles são poucos mas ninguém os distribui melhor que nós, pode ter certeza.

De repente, Dwayne caiu em si. O que estava falando? Parecia que não queria que o garoto fosse salvo. Era um pediatra, por Deus! Como podia estar contra-argumentando com esse homem, que queria apenas salvar o garoto e sair pela porta do hospital com a sensação de dever cumprido? Desconcertado depois de abrir os olhos, ele levantou da cadeira e fez menção de ir até o elevador sem responder.

- Dr. Hughes. – O médico que havia levantado em direção aos elevadores, se voltou sorrindo novamente, como se rindo da tolice da discussão anterior – O senyor é um bom homen. Mas non se esqueça que em sua profissão, ter amor pela vida é o que conta, e não a indiferença. – Um aceno de ambos e o medico estava na frente da porta de ferro apertando o botão para o andar da pediatria.

 

Ao chegar no quarto do garoto, a expressão de satisfação por ter posto a mão na consciência desapareceu, dando lugar ao pânico. Um homem uniformizado da polícia estava guardando a porta. Ao ver Dwayne chegar perto ele se afastou o suficiente para que o médico entrasse.

- Estão esperando pelo senhor – Disse o negro alto e robusto.

Ao entrar ele viu mais um policial e um homem de terno em volta do leito do menino, que estava com uma expressão não muito melhor que a do médico: Pânico por saber o que aconteceria e confusão por ter esperança de algo diferente do óbvio.

- Senhor deve ser o médico responsável pelo caso – Disse o homem de terno que cheirava a água de colônia. Diferente do terno e contrariando a idade, uns trinta anos, ele tinha os cabelos jogados de um lado para o outro de forma quase adolescente.

– Sou um deles, Dr. Hughes ao seu dispor. – Mentira.

- Bem Dr. Hughes, meu nome é Edward Assllen, sou do Conselho Tutelar da cidade.  Eu estava conversando com nosso amiguinho aqui; Gerard não é, filho? – Para o garoto – E ele nos contava sobre o homem que o trouxe até aqui.

- Senhor Taj – Disse o menino com a voz fraca por medo e pelo coração insuficiente.

- Sim, o senhor Taj. Iremos sair agora viu? Deixarei o oficial George aqui para lhe fazer companhia enquanto converso com o doutor aqui fora do quarto, OK? – O menino maneou a cabeça em aprovação.

Saíram, Dwayne estava estático.

- Este garoto é filho de uma prostituta dos subúrbios de New York – Edward falou com um uma cara de pena escarrada – que por algum motivo, sua saúde frágil talvez, o abandonou com algum dinheiro em um ônibus que o trouxe até nossa amada San Francisco. O garoto ficou quase um dia inteiro no terminal esperando pela mãe, até que o indiano o notou. Ele é um funcionário da bilheteria do terminal, e levou o garoto pra casa. Na primeira vez que o garoto passou mal, no início desta semana, ele o levou a vários hospitais, mas sem documentos nenhum deles o aceitou. Na frente deste hospital aconteceu o inevitável. A mãe dele nos telefonou depois que enviamos o alerta pela televisão.

- Vocês enviaram um sinal alertando sobre um caucasiano loiro de oito anos. 70% da população masculina infantil dos USA devem ter estas características, então como pode ter certeza que ele é o certo?

- Essa é a parte engraçada da história sabe... Nós o identificamos por causa do guarda chuva que ele carregava. Parece que a mãe o deixou com o filho ao embarcá-lo no ônibus para San Francisco. O garoto não quis falar conosco, o que é normal, talvez estivesse com medo de fazermos algo com o indiano, mas quando vimos o guarda chuva soubemos que ele era de lá, então restringimos o alerta à New York.

- Mas... Como?

- Era um daqueles guarda chuvas brancos que dizem ‘I Love New York’ que eles vendem pros turistas no Brooklyn, Times Square e na Estátua da Liberdade sabe?  Foi um palpite meio arriscado, mas acertamos em cheio. A mãe dele levou fotos para comprovar que era filho dela, então depois que o confrontamos com isso ele abriu o bico.

- Então... Vocês irão entregá-lo para a mãe que o abandonou? – Dwayne tinha o semblante duro como pedra, mas parecia que o homem estava acostumado a enfrentar este tipo de situação; Era irredutível.

- O que?! Não! Ela nos ajudou a reconhecê-lo e diz que está arrependida, mas com certeza perderá a guarda... Mas o Conselho tutelar de New York quer o caso, e quer o garoto lá. O caso foi parar na vista dos poderosos que decidiram pela capital do mundo. Estamos esperando que a papelada daqui esteja pronta para levá-lo até o Centurial Memmorian, um dos melhores hospitais de lá.

- Senhor... Assllen, certo? Eu não creio que seja indicado tirar o garoto daqui agora. Quer dizer, ele precisa de um coração novo em no máximo uns dois dias, e talvez não aguente uma viagem por terra, ar ou qualquer outro jeito... – Dwayne sentiu a mão de Edward Assllen em seu ombro.

Ele soube naquela hora. Teve certeza do erro que cometera. Aquela mão ameaçadora selou o destino da pequena vida no quarto, mas graças a ele. Obrigado gente, o mérito é meu, obrigado. Estava acima dele, de Johann Laurent, de Ellie, de Taj Hammalish, e até mesmo de Justin Knoplerr, o diretor do hospital. Agora não era mais um drama médico digno de Warner Channel. Era uma propaganda política digna de CNN.

- Ele não pode... – Dwayne tentou novamente.

- Ah, Christinne! – O homem havia retirado a mão do ombro do médico e se virou na direção de uma loura de terno que chegava ao lado dos dois. Deus, todos eles usavam terno? – Deixe-me lhe apresentar Christinne, minha parceira por hoje. Ela é a representante do Conselho Tutelar de New York. – Trocaram apertos de mão – Tudo certo meu bem? Ótimo, então temos apenas que falar para ele e pegar o avião – Ele se virou em direção ao quarto.

A mão de Dwayne o impediu de dar mais um passo, e Edward se virou, com um sorriso que beirava o irônico.

- Acredito não ter sido claro senhor Assllen. Aquele garoto não pode ser movido do leito até que tenha um coração batendo no ritmo de um touro – O tom de piada passou longe. O riso foi do outro, que chamava Dwayne de inocente.

- Não se preocupe doutor! Levaremos um cardiologista e dois enfermeiros que estarão monitorando o menino de perto! – Se virou e entrou no quarto.

 

.~.

 

Gerard Fenner, como depois o noticiário o identificou, morreu a bordo do avião que o transportava para o Centurial Memmorian devido a uma parada cardíaca que ocorreu durante tremores acarretados por fortes turbulências. A mãe de Gerard, Noémie Fenner pretendia processar o estado pela decisão do Conselho Tutelar de transportar o garoto ciente de seu estado de saúde crítico, que demandava um transplante de coração imediato.

 

.~.

 

Era sexta feira e o bar estava fervilhando com a musica country e risos gritados. Ele estava sentado no chão, no mesmo lugar em que Ferdinand o deixara. Repentinamente Dwayne levantou a cabeça e passou a mão pelos cabelos curtos. Deixou uma nota – não viu e não lhe importava o valor; o dono do bar que reclamasse – se virou e saiu para a chuva torrencial. Era noite.

 

 


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Notas finais do capítulo

Primeiramente, obrigado a todas as pessoas que me ajudaram a escrever isso dando suas opiniões, corrigindo ou mesmo se interessando. Por causa de vocês vale a pena apostar na palavra escrita dears ~
Special thanks to: Maah; Você é tão importante pra mim quanto eu gosto de acreditar que sou pra você, nunca duvide disso. Hyuuga Konan; Bem, você foi a pessoa que mais me entusiasmou a terminar isso, e me deu uma baita de uma massagem no ego! Algum dia irei te agradecer pessoalmente, juro. Ryuu; Sou mais bonito que você, mas ambos somos amigos. Certo? À você; Que leu tudo isso e irá deixar um review. Você vai deixar um review certo?
 
Notaram que tomei várias liberdades na história? Então, acredito que a maior delas foi ter deixado de lado a maior parte do jargão médico. Eu não entendo isso e acredito que meus leitores também não, além do que deixaria tudo muito mais enrolado... :B
Outra liberdade gigantesca: Eu não faço a menor idéia se eles vendem os tais guarda-chuvas em New York, não sei nem mesmo se existem. -qqq Eu adaptei aquelas camisas e bonés que eles vendem como souveniers, isso eu sei que existem.
 
Acho que por agora é só... Aos meus leitores, desculpem-me ter abandonado minha conta aqui no Nyah!... Estou sofrendo de uma grande crise de preguiça, mas prometo que vou me esforçar pra agitar um pouco as coisas.
That's All folks! o//