Nextra escrita por Akiel


Capítulo 1
Arquivo 0 e Arquivo 0.1


Notas iniciais do capítulo

Música de inspiração: Wars of Faith - Ivan Torrent



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Arquivo 0

Inicialização do sistema

Iniciando reconstrução de dados...

Recuperação de arquivos...

Sistema online

Despertar Nexus 3?

Não

Arquivos de memória acessados...

Sistema Nexus 3 online...

Manter Nexus 3 inconsciente?

Sim

Arquivo 0.1

Meu reflexo na janela se assemelha a um fantasma sobre a areia vermelha. Um fantasma cujo contorno se desfaz sob o toque do amanhecer. E talvez essa seja a realidade. Talvez este seja o modo deste mundo me dizer que eu estou desaparecendo em seu abraço, engolido pelo deserto vermelho e pelo horizonte escarlate. Eu estou cansado de Marte. Não sinto falta da Terra, mas estou cansado deste mundo. O contato do vidro frio contra minha palma quente é como um choque que se espalha por meu corpo, através de meus dedos e por cada nervo, cada célula que há em mim. Respiro fundo, encostando minha testa na superfície gelada. Este mundo é vazio, silencioso. Não há nada aqui além das ruínas de uma civilização destruída, arquivos a serem compreendidos, sinais de uma história contada e que luta para ser decifrada.

As marcas da guerra são claras em Marte. E muito semelhantes àquelas encontradas em Ekar. Uma fraca risada escapa por entre meus lábios. As similaridades entre os dois mundos, tão distantes um do outro, são exatamente o motivo pelo qual estou aqui. Os cientistas querem descobrir por que os dois mundos são tão parecidos, exibindo as mesmas marcas e destruição. E, como um soldado, eu estou aqui para protegê-los. Do quê? Dos fantasmas que pintam as paredes das ruínas e o silêncio que sufoca e desespera? Eu quero deixar este planeta. Quero retornar para a Terra, para alguma colônia, qualquer lugar. Qualquer lugar que não seja aqui.

O insistente bipe do monitor sobre minha mesa me tira de me meus pensamentos e arranca um suspiro de minha garganta. Afasto-me da janela e caminho pela lateral da minha cama, meu olhar sendo por um momento atraído para os desenhos que abandonei espalhados pelo colchão. Esboços monocromáticos do céu, do horizonte, das montanhas e do deserto de Marte. E até mesmo de suas ruínas, de sua linguagem tão difícil de entender. Inclino meu tronco, tocando uma das folhas, meus dedos sobre a escada quebrada, os desenhos deixados na parede. Desenhos sobre o asfalto e a parede. O som de créditos sendo deixados.

Recuo, retornando para meu caminho original. Não há nada a ganhar em recordar o passado. Dirijo minha atenção para o monitor, reconhecendo o nome que me chama. Respiro fundo e aperto o botão na tela para aceitar a chamada.

– Miranda. - digo vendo a imagem de minha tenente aparecer, o cabelo ondulado sobre os ombros cobertos pelo uniforme, um contraste entre o preto do tecido e o bronze dos longos fios. Os olhos, da cor do mel, me observam com atenção e um sorriso estica os lábios rosados.

– Capitão. - ela responde ainda sorrindo – Dr. Teinara pede que o encontre no laboratório Alpha.

– Entendido. - aproximo minha mão do botão para encerrar a conversa, mas paro ao perceber o sorriso se desfazer nos lábios de Miranda. Por longos segundos, ficamos em silêncio, apenas nos observando. Até a preocupação se revelar na expressão e na voz de minha tenente.

– Você está bem, Gabriel?

– Estou bem, Miranda. - respondo e encerro a conexão antes que qualquer outra pergunta possa ser feita.

Fisicamente, eu estou bem. Minha saúde está perfeita e eu não tenho ferimentos a serem tratados. Estou completamente apto para fazer meu trabalho. É minha mente que está desaparecendo, um pouco mais a cada novo amanhecer no Planeta Vermelho. Eu espero ansiosamente pelo fim dessa missão. Não desejo voltar para casa, pois não sei onde esse lugar fica. Eu só não quero estar aqui. Quero estar longe deste silêncio sufocante. Silêncio manchado de sangue.

Empurro a cadeira como se o movimento pudesse afastar os pensamentos que me atormentam. Vou até o banheiro e lavo meu rosto algumas vezes, mas quando estico meu braço para pegar a toalha pendurada ao lado do espelho, sou mais uma vez paralisado por meu próprio reflexo. Minha pele está mais pálida, assim como o azul dos meus olhos, quase escondidos pelo dourado escuro da minha franja. Toco o lado esquerdo da minha face, as pontas dos meus dedos tocando a fina cicatriz que se estende da minha orelha até o centro do meu lábio inferior.

O impacto do rosto contra a parede é forte e duro. Um chute no estômago rouba o ar. Uma mão segura a nunca e então a faca corta.

Enxugo meu rosto e saio do banheiro. Pego a camisa do meu uniforme, que deixei sobre a cama, e a coloco. Faço o mesmo com o colete de proteção. Minhas botas são os últimos elementos a compor meu uniforme. Saio de meu alojamento e sou recepcionado pelo vermelho que toca o chão através das janelas do corredor. Essa base científica foi construída de modo a aproveitar a iluminação natural do planeta. Um detalhe que pode ser bom, às vezes. E outras, não muito.

Desvio minha atenção do horizonte lá fora e me concentro no caminho para o laboratório Alpha. Já faz quarenta anos desde que a exploração de Marte teve início. No começo, apenas nós, humanos, estudávamos esse planeta. Mas ao mesmo tempo em que nos deparávamos com os mistérios do Planeta Vermelho, nós nos espalhávamos pela galáxia, explorando novos mundos, fundando novas colônias. E entrando em contato com raças até então desconhecidas.

O que fazíamos em Marte era exatamente o que os adassianos e os celianos faziam em Ekar, um planeta deserto localizado no sistema de Tau Ceti. As duas raças haviam se interessado nesse planeta devido às marcas de vida e morte que ele exibe. Assim como Marte, Ekar é um mundo de ruínas, com sua história contada através de símbolos escondidos em arquivos que sobreviveram a passagem do tempo e que ainda não foram totalmente decifrados. E quando nos encontramos com os adassianos e celianos e vimos que o que eles encontraram era similar ao que nós encontramos, foi decidido que as três raças dividiriam as explorações de Marte e Ekar.

Essa decisão levou quase um ano para ser tomada, muitas negociações e políticas envolvidas. Pelo menos, nós fizemos as outras raças da galáxia nos notarem e ganhamos o respeito e o voto de confiança da Junta Galáctica, formada por representantes dos adassianos, dos celianos e dos senatas. Assim, esta base em Marte ganhou novos residentes, vindos de mundos distantes. Como Marte está perto da Terra, nós ganhamos o direito de cuidar dos assuntos de segurança deste mundo e eu fui escolhido para liderar a segurança de todos os cientistas que aqui se encontram. Em Ekar, são os adassianos que cuidam da segurança por serem uma raça mais militar do que os celianos. Ainda assim, a questão permanece: por que soldados nesses mundos? Não há vida neles. Não há flora ou fauna. Só ruínas. Só vazio.

Sou tirado de meus pensamentos pela noção que já cheguei no laboratório Alpha. Coloco minha mão no painel de controle ao lado da porta e ganho acesso a instalação. Sou recepcionado pelo próprio Teinara, um celiano. Os celianos vem de um planeta chamado Cavena, de tamanho similar à Terra, mas com uma atmosfera mais úmida. Eles possuem uma estrutura física semelhante à humana, sendo a diferença mais notável a presença de três e não cinco dedos nas mãos. A pele dos celianos é rosada e possui pequenos pontos arroxeados espalhados por sua extensão. Quase como uma criança humana com catapora. Os olhos deles normalmente são claros, os de Teinara são da cor do mar.

– Tenente-Capitão Carvalho. - ele diz e sorri para mim.

– Doutor. - respondo – Tenente Villeneuve disse que o senhor gostaria de me ver.

– Sim. - o celiano caminha até um painel e toca em uma das telas. O comando abre hologramas das paredes das ruínas – Eu entrei em contato com a equipe em Ekar e, quando nós trocamos informações, percebemos que encontramos o mesmo símbolo. - Teinara seleciona um dos hologramas e o amplia com as mãos. O símbolo que ele destaca se assemelha a um 'G' repetido próximo ao seu contorno várias vezes, como um círculo que se torna uma espiral.

– O que significa? - questiono voltando meu olhar para o cientista.

– O nome desse símbolo é 'guereu'. - Teinara responde – Para os ekarins, significava 'sem vida'.

– E esse símbolo foi encontrado aqui, em Marte? Um símbolo dos ekarins?

– Sim. - o celiano responde e o sorriso nos lábios arroxeados aumenta – Isso indica o que nós já suspeitávamos: que, em algum momento, ekarins e marcianos entraram em contato. Provavelmente, em algum ponto do final de suas histórias, o que também poderia explicar as similaridades de suas ruínas.

– Eles se destruíram? - pergunto – Ou foram destruídos pela mesma coisa?

– Eu não possuo dados suficientes para dizer, capitão. - o cientista volta a atenção para o símbolo – Como você sabe, eu passei a maior parte da minha vida estudando Ekar e a linguagem dos ekarins. Guereu é um símbolo muito comum em Ekar, aparecendo em várias ruínas e mostrando que foi desenhado com cuidado. Mas aqui, nós o encontramos em poucas localidades. E sempre borrado, como se quem o tivesse feito, estivesse com pressa.

– 'Guereu' significa 'sem vida'. - começo – E o que isso significa? Morto?

– Não. Seu significado está mais próximo de 'não orgânico'. Sintético. - Teinara me explica fazendo com que me recorde de um detalhe que ouvi de outros cientistas.

– As ruínas em Ekar indicam que os ekarins eram uma civilização muito avançada, com uma tecnologia que poderia ter permitido que entrassem em contato com os marcianos. Mas a equipe em Ekar também não encontrou sinais de pesquisa com inteligência artificial?

– Está sugerindo que os Guereus marcados nas paredes dos dois planetas poderiam ser uma referência a seres sintéticos criados pelos ekarins?

– Eu não sei. - respondo dando de ombros – Só estou falando o que eu lembro de ter ouvido. Um exército sintético poderia ser a causa da destruição dos marcianos. Pelo que eu sei, a civilização marciana era avançada, mas menos do que a ekarin.

– Você está correto, capitão. E faz boas suposições. Tem certeza que a vida militar é a certa para você? - o tom de Teinara se torna mais provocativo. Eu rio.

– Eu sou um soldado, doutor. O senhor é que insiste em me tratar como um cientista. Sempre me mantendo atualizado de cada pequena descoberta que a sua equipe faz.

– Você é o responsável pela segurança de todos nós, capitão. Acho apenas justo que seja informado sobre o que nós fazemos e sobre o que você se propõe a proteger. - o cientista sorri de modo gentil – As pesquisas feitas no que restou dos arquivos em Ekar realmente indicam que os ekarins chegaram ao ponto de desenvolverem inteligência artificial. Agora, se esse é o ponto que os une aos marcianos, seja pela guerra ou outra coisa, eu ainda não posso dizer.

– O senhor passou anos estudando Ekar e agora, estuda Marte. Não fica cansado de estudar esses mundos que morreram milhares de anos atrás? - questiono sem olhar para Teinara. Meu olhar permanece no horizonte que se encontra além da janela do laboratório.

– Tenho apenas 135 anos. Tenho tempo para me dedicar a estudar o que eu quiser.

– Tão jovem... - comento deixando que um sorriso nasça em meus lábios.

– Nós temos uma expectativa de vida maior do que os humanos. Para os de minha raça, eu sou jovem. Assim como eu acho que você é para os da sua.

– Eu tenho 29 anos, doutor. Já vivi quase um terço de uma vida humana.

Permanecemos alguns minutos em silêncio. Teinara se ocupa com os hologramas das últimas expedições às ruínas e eu apenas observo. O vermelho do sol penetra pelos vidros das janelas banhando todo o laboratório em uma atmosfera escarlate. A maior parte dos computadores estão ligados, exibindo imagens de Ekar e Marte, arquivos de parte das linguagens dos dois mundos que já foram decifradas. Na mesa pessoal do celiano, eu posso ver um porta-retratos com a foto de Miraki, o filho de Teinara que também se encontra em Marte.

– Você sabe o que esse símbolo significa? - a voz do cientista captura minha atenção. Olho para o holograma que ele indica e vejo dois triângulos colocados um em cima do outro, sendo que um foi posicionado de cabeça para baixo, como um reflexo invertido do outro.

– Não. - respondo – É ekarin?

– É marciano. - Teinara responde – Pelo que pudemos decifrar dos arquivos, é 'Kerenia' e significa 'Vida'. - ao perceber que não compreendo o objetivo da pergunta feita, o cientista continua: - Vê que são duas formas iguais, porém invertidas, como reflexos? - assinto – Nossas pesquisas indicam que os marcianos acreditavam que o começo e o fim da vida eram a mesma coisa, apenas invertida. E a forma que um poderia adquirir iria influenciar o outro.

– E o que isso significa? - pergunto não compreendendo o que Teinara quer me dizer.

– Que a vida e a morte estão conectadas, são reflexos da mesma coisa. - ele responde – Do mesmo jeito, passado, presente e futuro estão conectados e se influenciam. Estudar o passado é entender o presente e se preparar o futuro, pois o que já aconteceu antes, no início, pode se repetir no futuro, no final. E é por isso que eu não me importo de passar minha vida estudando mundos que morreram há milhares de anos atrás, Gabriel.

– Entendo. - digo abaixando meu olhar para o chão e assistindo as sombras dançarem sobre as placas de metal.

– Todos temos um passado que nos marca. Eu tenho e eu tenho certeza de que você tem. - levanto meu olhar e percebo que o olhar do celiano se encontra focado na cicatriz em meu rosto – Essas marcas nunca nos deixam. E elas estarão presentes no final.

Folhas sobre o asfalto. Sangue manchando os desenhos. O corpo dói e a mente procura pela escuridão. Mas uma voz chama e desperta a alma.

– Eu estou cansado, Teinara. - digo deixando que tudo que sinto transpareça em minha voz – Cansado deste mundo. Há algo aqui, no vazio e no silêncio desse planeta que me deixa inquieto, que me desespera.

– Você mencionou isso para Miranda? - ele questiona enquanto se aproxima de mim.

– Não. Ela não precisa saber. - respondo e fecho os olhos ao sentir os dedos do celiano em meu pescoço.

– Ela se preocupa com você.

– E é por isso que ela não precisa saber. - digo abrindo meus olhos e olhando nas írises claras do celiano – O que eu sinto não irá interferir com meu trabalho. Não há por que preocupar Miranda.

Percebo que Teinara quer dizer alguma coisa, mas o bipe do monitor na mesa o bloqueia. Ele solta meu pescoço e se dirige ao monitor para atender a chamada. Aproveito a distância e respiro fundo, tentando recuperar o controle sobre meu coração, que bate desesperado em meu peito.

– Pai? - ouço a voz de Miraki – O equipamento está pronto.

– Prepare a equipe. Eu o encontrarei na entrada da base. - ouço o clique da chamada sendo encerrada e o olhar de Teinara volta para mim – Há uma câmara nas ruínas do norte que eu e minha equipe gostaríamos de examinar em mais detalhes. Você pode reunir seus soldados, capitão?

– Sim, doutor. - respondo e assinto, me dirigindo para a saída do laboratório com passos longos e rápidos. Apenas um pensamento em minha mente.

Miranda.


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Notas finais do capítulo

Por favor, deixem comentários. Críticas e sugestões são sempre bem vindas. Obrigada.