Lisboa escrita por Atenas
Sempre que eu coloco a cabeça no travesseiro, vem à minha mente as três coisas mais importantes do dia seguinte, raramente penso no que se passou. Existem exceções, é claro. Como aquela vez em que uma bomba explodiu na Suíça e eu fiz uma estimativa das mortes, o que as pessoas pensaram antes delas e depois fiz algumas vibrações, uns mantras silenciosos no fundo do meu quarto.
Eu não a via fazia algumas semanas, e eu não conhecia muitos namorados que não tinham notícias de sua garota por tanto tempo. Mas sempre que eu a visitava de moto, ela não me deixava entrar na casa e íamos a um deque próximo onde dava pra se ver o pôr do sol e ela cantarolava uma canção enquanto eu sorria com a minha sorte.
Ela não estava bem mas geralmente me fazia acreditar que estava, ela me contava o seu dia e eu contava sobre os torneios de motocross, sobre a próxima viagem e, é claro, sobre tudo o que havia de mais entediante em ser eu. Ela geralmente ria ao fim das conversas e por um minuto ou dois eu sentia que nada havia mudado e éramos apenas jovens adultos perdidos no tempo com meras preocupações que logo drixariamos de lado.
Mas dessa vez foi diferente. Lembro-me que o dia se passou como um qualquer para o resto da população mundial. Pra mim não. Era sexta-feira, dia de jogo entre os protagonistas da minha cidade. Ela me ligou por volta das 19h, torciamos para os times rivais um do outro e eu presumia que ela ligaria, faria uma piada ou duas sobre o meu goleiro e depois me convidaria pra beber alguma coisa.
– Alô, você está com tempo?
– Se isso for uma piada, saiba que aquilo foi um impedimento muito injusto! E estamos empatados, não perdendo!
Ela não riu;
– Posso te buscar em casa?
Hesitei, mas concordei em me aprontar e em minutos ela me pegaria em casa. Eu devia ter ouvido meus instintos, ter desligado o telefone ou não ter me arrumado coisa nenhuma. Mas eu me conhecia o suficiente pra saber que não dormiria se não resolvesse a situação.
Trinta minutos depois e estávamos perambulando pelos bairros ao sul, a parte mais quieta e nobre da cidade.
– O que houve? - tomei coragem para questionar, supondo que ela me enrolaria antes de ir direto ao ponto. Porque ela era assim, nunca dizia como chegar em algum lugar, te entregava um mapa.
– Precisamos conversar. As coisas não estão boas.
– Que coisas? - o tom de brincadeira saíra da minha voz.
Ela não respondeu, apenas balançou os cabelos loiros negativamente, os olhos cinzentos estavam perdidos pela estrada. Eu reconheci o caminho, estávamos indo para o vazio parque das serras boreal, onde comemoramos os primeiros meses de namoro, quando ela ainda não tinha um carro e eu andava de moto por aí, sem preocupações além das contas do PlayStation pra pagar.
– Aurora?
Ela me olhou, havia círculos vermelhos ao redor dos olhos que sempre estavam contornados por lápis preto. Hoje não. Só havia inchaço e vermelhidão. Ela desviou o olhar, girou o volante e estacionou no parque. Saímos do carro ainda num silêncio impaciente.
Caminhamos por uns dez minutos até chegarmos à um dos mirantes mais altos onde havia apenas um casal e três seguranças enormes. Assim que nos sentamos no chão com os cotovelos apoiados nas grades de madeira olhando a vista como sempre fazíamos, o casal saiu de cena e os seguranças começaram um diálogo sobre os resultados do jogo; meu time estava perdendo.
– Olha, eu... Sei que andei afastada nessa última semana. - concordei com a cabeça sem olhá-la - Mas há uma explicação. - suspiro - Minha família tomou uma decisão. Nos mudaremos em duas semanas.
Bum.
Senti que as grades se desfizeram em minhas mãos e eu fui lançado pra frente. Senti-me caindo num abismo infindável, o meu coração estava perdido entre a minha boca e meu olhos, minha cabeça doía.
– Não.
– Olha, isso não está aberto à discussão. Vamos pra... Portugal, Lisboa.
Agora era como se eu tivesse caído, eu estava entre as árvores, arranhado e quebrado, não sentia mais minha cabeça.
Levantei-me.
– Não.
Repeti.
Ela se levantou com uma calma revoltante e colocou a mão em meu ombro. Desvencilhei-me.
– Não.
Mais uma vez; era só essa palavra que eu conhecia naquele instante.
– Não, não, não!
Ela se afastou, sentou-se em uma das pedras e deu um sorriso amarelo aos seguranças que nos olharam com desconfiança:
– Está tudo bem por aqui, senhorita?
– Sim. Tudo bem...
– Não - interrompi. - Não está nada bem! Como pode fazer isso? Como consegue manter essa máscara, Aurora? Não seja hipócrita! Não está nada bem! Nada!
O segurança virou as costas conversando com o amigo que assentiu como se compreendesse, que se explodam os seguranças!
– Nico, não faz isso.
Eu ri. Que ironia! Ela estava me pedindo alguma coisa!
– Aurora... Como pôde? Quer ir embora? Como pode ir e me deixar aqui?
Ela secava as lágrimas com a ponta da blusa de lã branca;
– Isso não é sobre você.
Já não havia mais um abismo, ou o coração entre os olhos, acho que não sentia mais o meu coração nem a minha cabeça.
Eu não sentia mais nada.
– Você quer ir?
– Eu tenho que ir.
– Mas e se nós...
– Nada mais importa, Nicolas. Eu vou e... Isso é um ponto final.
– Nada mais importa?
– Não, eu já tomei a minha decisão.
– EU TE AMO, DROGA! Como... - respirei mais fundo, havia tanta árvore e tão pouco ar! - Como isso pode não importar?
Ela se levantou, caminhou até mim e segurou os meus ombros inclinando-se para um abraço que eu não dei. Eu neguei assim como ela me negou tantas e tantas vezes. Não.
Ela não chorou, em seus olhos havia um acumulo de agua que não caiu. Ela virou-se voltando o caminho como se esse dano fosse irreparável e eu fosse só uma bicicleta quebrada que ela deixou na estrada.
E eu a via ir... Caminhar em cima da minha dor. Andar por entre o que me restou. Eu caminhei atrás dela, segurei-a pela mão e a puxei pela nuca. Beijei-a como se não houvesse mais ninguém no mundo, como se uma bomba tivesse me explodido, como se o jogo pudesse mudar o placar.
Quando nossos lábios se desprenderam, eu sussurrei em seu ouvido a única coisa que pulsava em mim, em cada glóbulo vermelho, em cada centímetro da minha pele arrepiada, em cada nova sinapse; Eu amo você e não há milha que enfraqueça o que eu sinto.
Ela me abraçou apertou meu braços e minhas costas, levou-me pra casa e não mais me ligou.
Naquela noite, quando deitei a cabeça no travesseiro, não pensei nos três planos futuros. Eu só conseguia pensar em como a cor dos olhos dela mudavam com a posição do sol ou da lua, em como o cheiro dela ainda estava em minha roupa em como o meu coração latejava, e em como a minha vida pôde explodir. Era nisso que eu pensava antes de morrer, ela fez um mantra pra mim e eu, vibrações pra nós.
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