Cidade Zero-Hora escrita por Yellow


Capítulo 6
Anjos de Concreto


Notas iniciais do capítulo

- Olá, pessoal! sei que demorou um pouco, duas semanas, mais ou menos. Mas eles voltaram!
— Queria dedicar esse capítulo a Fernanda, e, apesar de existirem várias nesse país, essa Fernanda que estou falando, vai saber que é para ela!
— O Prisma: https://fanfiction.com.br/historia/656285/OPrisma/



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Levi não dormiu quando chegou em casa, exausto.

Havia apenas caminhado pelas ruas frias da cidade, desbravando aquela fortaleza gélida que parecia ser tão simples como um quebra-cabeças de duas peças. Enquanto andava, pensava de como se colocaria naquela sociedade. Em um dado momento, entrou em um bar de lobisomens, e comprou o que ninguém ali compraria, um simples refrigerante. A atendente — uma mulher de olhar cansado e roupas amarrotadas. — quase riu dele, mas conteve-se e expressou apenas um pequeno sorriso.

Ela — que mais tarde Levi descobriu chamar-se Barbara. — perguntou se era novo na cidade. Com toda a educação e calma do mundo, Levi respondeu.

— Podemos dizer que sim — apesar dessas típicas palavras serem ditas com certa graça, Levi não o fazia. As palavras eram sólidas e rígidas.

Barbara se assustou pela sua seriedade. Ficou receosa em continuar a conversa.

— Você vende artigos mágicos? — perguntou. As suas mechas escorriam pela lateral do rosto, o deixando fino. Mas suas bochechas eram acentuadas, e com sardas avermelhadas. Uma cicatriz cortava o rosto pela esquerda, e quando ela percebeu que ele encarava, a cobriu. Era uma jovem bela, no final de sua adolescência, se sujeitando a ser obrigada a trabalhar, já que não podia se encaixar na sociedade diurna. — Melhor, você confecciona?

Levi pensou antes de responder. Abriu a lata de pepsi, e ela chiou alto. Todos ali o ignoravam, mesmo que no primeiro instante ali terem lhe lançado olhares desconfiados.

— Sim — não soube se era mentira ou verdade, não sabia como fazer, mas era um feiticeiro, não deveria ser difícil para ele. — Eu faço.

Ela sorriu, satisfeita. As covinhas evidentes no final do sorriso.

— Eu estava precisando de umas folhas de mensagem por fogo. — ela solicitou. — Quanto fica?

— Podemos acertar o preço amanhã. — falou, seu tom indiferente ferindo o sorriso dela. — Vai estar aqui?

— Mas é claro.

E a conversa acabou por aí. Levi não prosseguiu, apenas se focou no relógio pendurado atrás do balcão, em uma parede ao fundo. Era de madrugada, e pensou se Ian estaria o esperando em casa, assim como ele estava antes de sair. Mas era claro que não. Sabia que Ian não faria aquilo.

Um sujeito engomado entrou, atropelando os próprios passos. Ele esbarrou na porta, o que fez o baque ressoar em todo estabelecimento. Todos o olharam. Ele pingava suor, e sua pele negra estava lustrosa. Os olhos cansados e caídos. A boca arfante.

— Samuel foi morto! — anunciou.

Um burburinho inundou o local. Todos começaram a falar, gritar e reclamar. Alguns levantaram e foram em direção a porta. Barbara o deixou, indo em direção ao homem recém-chegado.

Levi não quis saber quem era Samuel, por isso foi embora.

O dia amanheceu com o sol entre nuvens, novamente naquela semana.

A cidade era um monumento cinzento e sem vida, e os cidadãos apenas peças naquele xadrez sem vontade e razão. Pessoas objetivas preenchiam as ruas do Centro da cidade, cruzando ruas e avenidas. Pareciam manequins sem vida, apenas correndo para seus objetivos naquela dança sem lógica. As nuvens ameaçavam chuva, e os vendedores de guarda-chuvas, que já anunciavam seua produtos, afirmavam que ela viria, de certo.

Daniel odiava a visão que tinha de seu quarto. Sua janela dava direto para a avenida principal do bairro, onde podia apenas ver o sol, mais prédios, carros, sujeita, poeira e muito barulho dos congestionamentos. Preferia a paz do campo, ao invés da vida urbana. Adorava quando viajava com o pai e a irmã mais velha para o interior, para a fazenda dos avós, onde assistia o amanhecer em uma coluna de feno. Aquele frescor da inocência rural, adorava aspirar aquilo.

Em contra parte, seu pai adorava o caos da cidade. Não totalmente, já que caos da cidade dava-lhe apenas mais trabalho. Era o delegado, e lidava o dia inteiro com marginais e baderneiros. Daniel quase não o via nos últimos dias, que ele, incansavelmente, estava trabalhando no caso de pessoas desaparecidas. Pelo que ouvia, não haviam padrões para o sequestrador.

Mas já estava acostumado a isso. Daniel quase não crescera junto ao pai, devido a sobrecarga de trabalho. Via ele apenas nos finais de semana, quando não ia para escola e ficava acordado até tarde, pelo contrário, quando acordava o pai já não estava em casa, e nunca via quando chegava, pois ele já ia direto par a cama. A irmã mais velha já não morava mais com eles, estando no interior cursando medicina.

Fez o que fazia todos os dias quando acordava: a higiene. Tomava um rápido banho e escovava os dentes. Viu se reflexo no espelho. Seus cabelos loiros desarrumados, e seus braços fortes que ele não costumava alimentar com exercícios, apesar de todos dizerem ser mentira. Seus olhos cor ciano refletindo no espelho, herdados da mãe. Não estava com fome naquela manhã. Viu o violão no canto do quarto, a instrumento repousando calmamente. Lembrou-se do sucesso que fizera na casa de shows há dois dias. O povo delirando com seus acordes e a voz de Eliza. Apesar de serem ex-namorados, sua relação com ela era amena. Todos diziam coisas sobre ela, alegando ela ser uma bruxa, mas ele nunca deu ouvidos, era completamente bobagem.

Não demorou muito para Daniel ir matar o tédio no único lugar onde conseguia o fazer. Os jardins do prédio ficavam no térreo, atrás da garagem. Lá os moradores podiam ter plantas maiores e regá-las sem restrição alguma. Gostava de tocar para as folhas, brincando e dizer que elas dançavam conforme sua dança. Sempre foi uma terapia observar aquilo, e em determinado momento de sua adolescência, juntou as duas coisas que o acalmavam.

Cantava calmamente, mesmo sabendo que não tinha uma voz tão doce e agradável de se ouvir como a de Eliza.

Me sinto só

Mas quem é que nunca se sentiu assim?

Procurando um caminho para seguir uma direção

Resposta.

Parou de tocar quando ouviu um vazo colidir contra o chão. Um estalo rápido e agudo. A terra se esparramou no piso, manchando os ladrilhos bege com a terra negra. Uma figura estava ao lado do acidente, a causadora. Uma menina pálida e magra, com cabelos castanhos com pontas arrepiadas. Seus olhos verdes eram em tom esmeralda, e fizeram Daniel analisá-los com cuidado. Nunca tinha visto nada como aquilo, eram lindos, nunca vira um verde tão verde, sempre que via, eram em tons caramelos. Vestia-se como qualquer outra jovem de sua idade — parecia ter a mesma idade que Daniel, no auge da vida, os dezoito anos. — um jeans delicado e uma blusa de cor roxa.

— Desculpas — ela disse, sem jeito. Sorriu, com os lábios rosados. O rosto levemente avermelhado. — Não queria atrapalhar.

— Sem problemas — respondeu Daniel, se levantando. A encarou, e viu a delicadeza dela ao pegar a planta. Não tinha como salvar nada do que um dia foram as lindas tulipas de Dona Dolores. — Ela vai ficar uma fera, mas não ligue, o que sempre tem aqui é isso. — Riu sem jeito, tentando confortá-la. — Então você é a nova garota. A menina do 310?

— Se é assim que me chamam, então eu acho que sou. — Ela deu de ombros.

Daniel estendeu a mão para ela, que apertou em seguida.

— Daniel — disse, mesmo sem ela perguntar.

— O filho do delegado Sales — ela falou, com calma na voz. Daniel a olhou desconfiado. — Ah, claro, todo mundo daqui fala de seu pai. Ele é influente, então… não quero parecer uma sequestradora…

Daniel riu.

— Nina. — ela se apresentou, dessa vez. — Ou, a garota do 310, como preferir. — ela virou o rosto para dar um sorriso mais aberto, e uma mecha de cabelo caiu entre os olhos, deixando-o despojada. Ela se apressou em colocá-la atrás da orelha.

— Prefiro Nina. — anunciou.

Ele viu seus brincos de lua, e que a orelha possuía outros furos, com mais enfeites. Um piercing transversal atravessava cartilagem de um lado ao outro, tinha desenhos esculpidos. Ela tinha uma pulseira de tiras de couro, que folgavam no pulso magro, com uma lua cheia pendurada.

Certamente se dariam bem.

Ele precisava que dessem.

Depois daquela noite, Ian precisava descansar.

Passou dez horas de seu dia dormindo, e logo depois saiu, na esperança de se livrar das memórias ruins. Sangue, matança, prata, carne podre, tudo o assombrava ainda. Pensou no quão frio foi aquele ato, e se deveria fazer de novo.

E eu tenho escolha?

Se pegou se perguntando isso, entre um devaneio e outro. Não, não tinha. Morreria de fome, caso parasse. Já havia conseguido pagar duas contas com o que recebera na noite passada, mesmo achando que fora pouco, comparado ao seu esforço. Teve os ombros rasgados por um lobisomem desenfreado, e quase teve seu pescoço destroçado pela segunda vez naquela semana. Não soube dizer quando acordou com os ombros curados, teve certeza que fora Levi, mas não entendeu o ato do irmão. Levi estava o usando para treinar suas habilidades, ou havia feito aquilo por que gostava dele?

Comprar um picolé com um vendedor ambulante em uma praça não o fazia o sentir menos culpado, apesar de estar o fazendo para se sentir mais humano, mais ordinário. Tinha de ser um ordinário, acima de tudo. Via o mundo diferente, enxergava vampiros nas esquinas noturnas, e lobisomens furiosos em locais abandonados, além de carniçais sombrios pelo cemitério. Apesar de ainda não ter visto uma, sabia que as bruxas viviam ali também, sedutoras e fatais.

O ar a sua frente começou a queimar, e não soube o que fazer quando migalhas começaram a se juntar e formaram um bilhete ao se lado, no banco onde sentava enquanto observava o movimento de pessoas. O papel se formou de forma contrária a um incêndio, sendo as partículas se unindo e se apagando. Logo, um bilhete estava a sua frente, soltando um fio de fumaça que desaparecia com o vento.

As coisas não deram muito certo. Os lycans estão com raiva. Preciso falar com você, hoje a noite.

– So”

E a enorme marca de batom ao lado. Afastado das letras emaranhadas, havia um desenho de um lobo, que fez Ian soltar leves risos. Lembrou-se da forma despojada que Solange colocou seu número de celular entre as notas, com as palavras “me liga” em vermelho. A sua frente, uma pequena garota caiu, e Ian desejou ser como ela, sem responsabilidades, e, acima de tudo, de não saber o que o mundo realmente era.

Uma garota se sentou ao seu lado. Tomou um susto, quando a reconheceu. Cabelos tingidos com mechas azuis, olhos finos e orientais. Pele lisa e sem acne alguma. Eliza realmente era bonita.

— Então você é o caçador de recompensas?

Ficou sem reação quando aquela voz doce disse aquilo. Como ela sabia? Não era algo que pretendia mantar como identidade secreta, mas ainda sim, como Eliza sabia? Descobriu quando olhou para ela por um todo, não apenas de soslaio. Os chifres saiam to topo da cabeça, meio tortos.

— Você.. — começou a dizer, sem reação.

— Uma bruxa, eu sei. — Eliza revirou os olhos, sem paciência. — Você até que conseguiu me enganar. Todo ordinário, mas bem que eu dizia. Filho de peixe, peixinho é.

— Você também conheceu meu pai?

— Infelizment. — seu tom calmo caiu para um frustrado. — Ele me odiava, dizia que eu era muito nova e implicava comigo, ele era um saco. Mas com você é diferente, crescemos juntos, mesmo que distantes, Ian, te conheço desde que me mudei para essa cidade.

— E nunca falou comigo, me achava um idiota. — Se lembrou das fofocas que ouvi das garotas do colégio, e Eliza nunca fora flor que se cheirasse.

— Em partes. — Riu.

— Então você vem até aqui para me ofender e ofender meu pai? — perguntou, incrédulo e com raiva.

— Não. — falou, voltando a ser calma como a brisa. Além dos chifres, nada nela remetia a um demônio, seu sorriso e olhar eram tão puros. — Vim aqui te alertar. Os vampiros, fique longe deles.

Ian se levantou, impaciente.

— Obrigado pela preocupação, Eliza, mas receio que sei o que estou fazendo.

— Não, você não sabe. Acha que está brincando de super-herói, mas isso é perigoso, Ian, isso é real. — Seus olhos se abriram, e suas pupilas dilataram. Ela estava apelando para ele, realmente tinha de dar ouvidos a ela. Mas o tom em que ela entoava as palavras, como se ele fosse uma criança, isso tirava sua paciência.

— Então acha que eu deva confiar em quem? — inquiriu, ríspido. — Em uma menina demônio como você?

Ela se levantou, franzindo o cenho.

— Isso não me afeta, eu sei o que eu fiz quando bebi sangue de demônio, e sabia das consequências. Mas você não sabe, e quando Mikael tentar algo, já vai ser tarde demais.

Ele se virou para ir embora, mas ela o puxou pelo pulso. Suas últimas palavras foram sombrias e geladas, Ian sentiu seu peito esfriar por dentro conforme as palavras o atravessavam como a lâmina de um assassino sem coração.

— Tome cuidado. — a boca dela mexia para cima e para baixo, e ele só conseguia prestar atenção naqueles lábios de batom azul. — A cidade nunca esteve mais perigosa. Ontem mesmo, perdi um dos meus garotos, e fiquei sabendo da morte de um menino lobisomem, que não era da alcateia. Os ghouls andam falando que há algo nas ruas, algo muito ruim e sem piedade. Eu não quero saber que a notícia deles é concreta quando ver seu corpo em uma rua qualquer.

E assim ela se foi, soltando o pulso dele, calma, da mesma maneira de como chegou. Eliza caminhava como toda garota, era como toda a garota, com a diferença dos chifres que apenas ele via. Ela não olhou para trás, não hesitou em voltar e explicar. Ele matara o lobisomem, mas e o garoto dela?

Ian novamente se sentiu um inútil perto do mundo a sua volta, não sabendo de nada. Era tão inocente, e tinha de dar razão para Eliza, pena que já era tarde demais.

Levi perdeu a noção do tempo quando se trancou no quarto com o grimório pesado de Beth.

Com folhas de papel surrado, ele elaborava fórmulas de feitiços com runas. Quase queimou as mãos quando não soube aplicar certamente uma runa de fogo no papel, mas conseguiu apagar o fogo com o cobertor. Não foi difícil formular algo que desse certo, e tinha de admitir que era bom com aquilo. Fez cerca de dez papéis para Barbara, e, de certo modo, sabia que eram mais que suficiente. Para ele era tão fácil passar mensagem por fogo, apenas tinha de desenhar as runas certas na ponta de um papel, mas imaginou como lobisomens não podia fazer aquilo, o quão complicado era, apesar de já existir mensagens de texto, e ele não saber o uso certo daquilo.

Não iria perder seu tempo perguntando, quando seu trabalho era apenas fazer.

Esperou o crepúsculo chegar, e então partiu.

Apesar de ser apenas começo da noite, de alguma forma sabia que Barbara entrava cedo em seu expediente. Comparada a todos os lobisomens brutos ali, ela era uma peça a parte. Fina e delicada, a voz calma e curiosa.

Enquanto ia, pensou em Alex. Não tinha coragem de encará-lo sem dizer o que realmente era, mas, se o fizesse, Alex ficaria curioso. Se envolveria em problemas com aquelas infernais, e acabaria, de algum modo, morto.

— Olá. — ela disse, contente, quando ele chegou. Estava com roupas parecidas, e ainda assim surradas. Era um pouco rústica, tinha de admitir, mas ainda sim muito bonita. Os olhos escuros e abertos, concentrados no que Levi levava no pequeno envelope.

Ele se sentou em um dos bancos, se apoiou no balcão.

— Boa noite. — anunciou, com seu tom frio a fazendo recuar.

Esticou o braço e entregou a ela os papéis. Folhas e mais folhas, com runas e encantamentos escritos nas beiradas. Barbara sorria, sem nem mesmo entender metade do que estava escrito ali. Ela pegou algumas notas do bolso. Levi recebeu sem reclamar sua nota de cinquenta.

— Só isso? — perguntou, apressado após abrir a lata de pepsi. Ela agradeceu, e lhe deu um refrigerante por conta da casa. Ele não recusara, e agora apreciava. — Mais alguma coisa?

— Não. — ela recusou, guardando as folhas no bolso.

Um sujeito corpulento encostou no balcão ao lado de Levi. Era moreno dos pés a cabeça. Ele estava bravo, ou, pelo menos, aparentava. As veias pulsavam nos braços fortes.

— Um uísque. — exigiu, ríspido.

Barbara deu a ele o pedido, e logo depois se virou para Levi quando ele deixou o balcão.

— As coisas não estão nada boas. — disse, brevemente. — Depois que Samuel, nosso Beta, morreu.

Levi levantou o olhar, ela prosseguiu:

— Há um novo caçador de recompensas na cidade, ouvi dizer. Pode ter sido ele.

— Sim. — Levi disse, vago. Se perdera nas palavras dela, enquanto encarava fixamente a parede marrom na sua frente.

— Mas não faz sentido, ontem mesmo morreu um garoto vampiro…

Levi caiu no chão quando ouviu um zumbido explodir seus ouvidos. Gritou de agonia, quando encontrou o solo gelado e sujo. Se contorceu logo depois que pode sentir o sangue escorrendo entre os dedos. Era uma dor insuportável, que chegara do nada. Alfinetava a cabeça com uma frequência que o fazia gritar, mais e mais.

Sua visão embaçou por alguns segundos.

Enquanto a recobrava e o zumbido parava, pôde ouvir um sussurro no pé do ouvi:

Ajuda.

A mão de Barbara foi rápida ao o pegar pelo braço.

— Você está bem? — perguntou, com seu olhar brilhoso contro o dele.

— Sim. — afirmou com incerteza, o ouvido ainda doía bem pouco.

Viu que estava sendo olhado por todos ali, e que dos dedos vazavam as fagulhas cor de esmeralda, se ressaltando no ambiente escuro. Barbara se afastou, com medo de se machucar.

Levi se desfez dela e rumou para a saída.

O feitiço da mãe já havia acabado, não havia sentido em ainda ter aquelas manifestações inesperadas. Saiu aos tropeços, se enrolando nas próprias pernas e pés. Andar era mais complicado do que nunca. Esbarrava no corredor de homens e mulheres que o viam, e gritavam, querendo resposta.

Caiu de joelhos na calçada, zonzo.

Solange não parecia nada bem quando Ian a encontrou, parada, na frente do beco onde ficava o Estrela. Estava estressada, e isso era claramente visível. Mordia o lábio com frequência, assim como balança os pés quando apoiada na parede.

Ela o pegou pelo pulso, de súbito. Entrou sendo arrastado e com a mesma sensação de desconforto do dia anterior, de todos ali olharem para eles. Entre fumaça, luzes verdes e rosadas, e o cheiro de álcool, perguntou:

— Posso, pelo menos, saber o que está acontecendo?

Os dedos dela soltaram o pulso dele. Sentiu que, mesmo controlando, era forte. Haviam marcas das juntas. Ela não explicou, e continuou seguindo. Chegaram até uma grossa porta de madeira mais afastada de todos. Ela empurrou-a, sem hesitar em entrar e o que encontrar do outro lado.

Era uma sala pequena, de paredes pintadas de preto. Carpete, cadeira, uma mesa no centro. Armários ao fundo, com um balcão com bebidas, obviamente, caras. Uma figura estava a frente do balcão de madeira avermelhada, empunhando uma garrafa de vinho e enchendo uma taça.

Um homem. Cabelos louros, rosto pálido, mas bem-apessoado. Vestia-se com um terno formal, o que Ian duvidar se ele realmente era um vampiro. Ele tinha um sorriso malicioso e um olhar fino. Solange saiu do lado de Ian e atravessou o cômodo com uma rapidez que fez Ian perder o norte da situação. Logo, ela estava ao lado desse homem, com uma das mãos em seu peito, falando palavras no pé de seu ouvido.

Ele se virou para Ian.

— Agora eu posso saber o que está acontecendo? — Ian tornou a perguntar à Solange, tentando escapar do olhar desconfortante do homem.

O sujeito se sentou em uma confortável poltrona. Deu um gole generoso no vinho, analisando Ian por inteiro. Mexeu cabeça em positivo.

— Aceita um vinho? — perguntou, sua voz firme e sólida assolou o local.

— Eu aceito respostas.

Solange deu um passo a frente.

— Ian, esse é o nosso líder, Mikael. — ela o apresentou, e tomou um gole da taça dele. — Contei a ele sobre o que houve ontem.

— E as coisas não estão nada boas. — ele falava com desprezo na voz. — Aqueles cachorros da lua, eles estão com raiva. Muita. Ontem você matou o segundo em posto, já era de se esperar

Ian olhou para Solange. Em parte, era inocente naquela história, mal sabia quem o sujeito era. Nem ao menos sabia se era um homem ou uma mulher, fora descobrir depois. Mas se lembrou da raiva que teve, e de como seu sangue ferveu, e não se sentiu mais tão inocente, nem tanto.

— Sim, matei. — Ian concordou, frio. O jeito que Mikael o olhava, o encarava com seus olhos escuros e vazios, que trasbordavam apenas desprezo, o estressava.. E ver Solange, que na noite passada parecia tão espetacular, ao lado daquele sujeito, o deixava com mais raiva ainda. — Mas não sabia quem era.

— Mas é claro que não sabia, essa era a intenção. — Mikael aflorou mais o sorriso, os dentes incisivos transbordando boca afora. — Poucos são os caçadores de recompensas que gostam de ser estopim para uma guerra, ainda mais quando essa guerra é de vampiros contra lobisomens. Se soubesse, o faria, Ian? — ele estreitou o olhar, querendo o intimidar.

Ian engoliu em seco, soprou uma resposta que fora exatamente como Mikael esperava.

— Não. Um homem de verdade luta suas guerras.

Mikael soltou um ruído seco com a garganta, e seus olhos arderam em vermelho. Os dentes pareceram dobrar de tamanho, e as mãos cuidadosa que seguravam a taça fina, quebraram o objeto quando se contorceram. Ele emendou uma risada seca após o descontrole repentino.

— Fala exatamente como seu pai. — dizia, entre risadas abafadas.

Solange deu um passo a frente, se colocando entre os dois.

— O motivo de o chamarmos aqui, Ian, além de te avisar, é que temos outra tarefa para você.

— Você foi muito bom no seu primeiro trabalho conosco, e não parece do tipo que desaponta na segunda. — Mikael emendou a conversa logo quando Solange parou de falar. — Há dias atrás, eu a encontrei perdida, estava em trapos. Cuidamos dela por alguns dias. Ela já está melhor agora.

— Eu vou chamá-la. — Solange disse, já na porta, enquanto se retirava.

Ian analisou o cômodo uma segunda vez. Além do cheiro de bebidas destiladas, Mikael adorava apenas outra coisa: si mesmo. Havia um quadro com uma grande moldura dele na parede, e fotografias antigas penduradas em outros lugares. Em todas as imagens ele era o mesmo homem misterioso, pintado ou fotografado à luz do luar, banhado pelo brilho das estrelas. O mesmo terno escuro, os mesmos dentes safados escapando da boca.

— Ela quem? — Ian soltou a pergunta retardada, que havia ficado tempo demais na boca. — Vocês querem que eu seja babá?

— Nina. — ele disse o nome dela, mas Ian permaneceu sem entender ou identificar quem era. — É a última remanescente de um clã de bruxas, atacados por demônios há três semanas. Ela é muito habilidosa, e pode ser considerado um tesouro com as habilidades singulares que possui. — Os olhos de Mikael brilhavam quando falavam sobre a garota, como um banqueiro que acabara de fazer seu investimento que o deixaria milionário. Não era algo normal, podia-se descrever maníaco. — Você não precisará ser a babá dela, apenas vai observá-la por mim. As bruxas não aceitariam que ela se juntasse a nós, e não a elas. E, na situação que estamos, não podemos comprar outra guerra.

— Se essa garota é tão forte, por que não se defende sozinha? — Ian perguntou, excedendo os limites impostos por Mikael, mesmo não sendo ditos.

— Pode ficar tranquilo, ela não é uma encrenca ambulante. Além do mais, vamos te pagar para protegê-la caso algo ocorra com ela, e vamos te pagar muito bem, caçador. Por tanto, não vejo a sua necessidade de fazer perguntas. Aceite seu dinheiro logo.

Ian trincou os dentes enquanto Mikael, com toda sua irreverência e babaquice, dizia as palavras. A mão envolvia o machete no cinto, e a vontade de atravessar o peito do vampiro era enorme, mesmo sabendo que aquilo não o mataria. Poderia repetir o ato várias e várias vezes, apenas para causar dor para o vampiro.

Solange entrou novamente, rápida e quase invisível nas sombras. Trazia consigo uma outra pessoa. A garota chamada Nina. A garçonete de cabelos curtes e castanhos, de pontas arrepiadas. A menina de olhos cor de esmeralda e bochechas com sardas polvilhadas. Elas pararam ao lado de Mikael, e ele levantou o queixo, os apresentando.

— Nina. — a chamou. — Esse é Ian, o caçador de recompensas que falei para você. Ian, essa é Nina, a bruxa que você protegerá. — Eles sorriram um para o outro, porque naquela ocasião, não podiam se cumprimentar normalmente. Mikael continuou, frio e distante, como um jogador de xadrez apenas dizia as ordens para mexer nos seus peões.

Ele continuaria a sorrir e dizer mais ordens, se Ian não o interrompesse.

— Preciso falar com Solange. — e quando a vampira se virou para ele, surpresa, e Mikael descontente, completou: — Em particular. — franziu a testa, indo contra a desaprovação de Mikael e debochando do vampiro.

— Tudo bem. — O vampiro líder não perdeu a compostura, e apenas continuou sorrindo, com seu olhar em um rubro apagado. — É o tempo perfeito para Nina pegar suas coisas nos fundos.

A não ser por Mikael, todos saíram da sala. Em uma fila robótica e sem jeito. Nina ia na frente, seguida de Ian e logo após Solange, que apaziguava com olhar a situação entre os dois. Mikael não cessava com seus olhares recheados de desprezo, mas felizmente, Ian sabia como revidar. Logo abariam no chão, com sangue de ambos os lados, apesar da vitória de Mikael ser mais do que óbvia. Ele era o que chamavam de vampiro ancião, o tipo de vampiro que havia transformado todos os outros dali, incluindo a própria Solange.

— O seu chefe é um bosta. — disse para ela, quando engoliu em seco o uísque que ela havia o servido de graça. O líquido desceu queimando, uma sensação familiar de quando ia se embebedar com Tália, quando estavam com muita raiva. — Um completo babaca.

— Todos os homens são. — ela sorria enquanto bebia, dizendo: — Uns mais do que outros. E aposto que ele tem a mesma opinião sobre você.

— Eu quero que ele se exploda!

O dedo rápido de Solange correu até a boca de Ian, fazendo um sinal para ele se calar. Ela o fitou com seu olhar nebuloso e cheio de segredos. O sorriso escarlate se destacando na pele sem vida. Ela balançava a cabeça em negativo, mas não parecia estar o reprovando

— Você é tão lindo quando está calado. Mas é um pecado o calar — ela o admirava, dizendo as palavras que o deixavam surpreso. — ainda é jovem, cheio de vida e alegria. Faça um favor para si mesmo, não compre briga com Mikael, eu não gostaria de ter que arrancar sua cabeça.

Ian recuou quando ela disse as palavras frias.

Quando Mikael tentar algo, já vai ser tarde demais.

As palavras de Eliza faziam um pouco mais sentido agora.

— Você está cheirando a bruxa… — ela murmurou. — Não transou com uma, por acaso, transou? Consigo sentir o cheiro desse sangue demoníaco de longe. Sangue podre.

— Eu encontrei uma velha conhecida. Ela me disse para ter cuidado com certas pessoas, e eu acho que devo confiar em Eliza, ela nunca falaria isso para meu mal.

— Eliza? — ela repetiu, com amargura na voz. — Você a conhece?

— Há alguns anos, na verdade. — Ian disse, e Solange se surpreendeu. Era uma sensação boa quando ele conseguia surpreender um vampiro, que, em geral, achavam que sabiam de tudo apenas por serem imortais. — E você também a conhece, presumo.

— Infelizmente. — resmungou. — É a única que compra essência demoníaca na cidade. Tenho que ver a chifruda cada vez que quero faturar uma grana extra. Ela é uma vadia chata, com um ego do tamanho do mundo.

— Como uma versão feminina de Mikael? — Ian brincou, e ela riu. Um riso sincero e despojado, mas ainda sim misterioso. Não podia se encantar por ela, não era justo para os dois. Ele seria apenas mais um nas décadas de existência dela, e Solange apenas mais uma paixão platônica de Ian, que, dentro dele, sabia que nunca alcançaria.

Nina não era do tipo de menina que Ian conversava.

Era quieta e reservada, apesar de guardar um bom humor, soltando pequenas e sutis piadas quando a oportunidade lhe dava chance. Tinha um jeito de rir atrás da boca, era tímida, pelo o que se percebia. Ian só fora notar depois de muito tempo, enquanto faziam o trajeto de volta para a casa dela, na madrugada remota, a garota portava uma quantidade excessiva de piercings e argolas prateadas, que a deixavam a beleza ainda mais acentuada. A orelha era enfeitada aqui e ali com argolas que pendiam, pinos que atravessavam e pedras dos brincos simples.

Os colares e pulseiras de luas brilhavam com as luzes dos postes. Ela portava um anel de dourado e fino no dedo anelar, era comprometida?

— Por que tantas luas? — Ian perguntou, logo após ele cruzarem a avenida deserta. — Eu sei que é porque gosta, mas acho que tem um significado… — completou, sem graça.

— E tem. — ela concordou, lentamente. Sua voz era firme, apesar de baixa. Via um pilar de concreto por debaixo de uma lona suave. Nina podia ser o que garotas chamariam de fofa, mas, os olhos esmeraldas escondiam algo que nem Ian podia pensar em imaginar. — Irmã Umbra, filha da lua e rainha da noite. Soror Umbra, luna filia, et Reginam Noctis. — a dicção dela na língua estranha era perfeita, soava tão natural que Ian estranhou quando ela voltou a falar as palavras que ele entendia. — É latim. É um juramento que nós, Umbras, temos que fazer. Mas sim, as luas são porque eu gosto. — Sorriu para ele.

— Pelo que Mikael me contou, você é uma bruxa. — ele a analisou dos pés a cabeça novamente, e não viu o que faltava. — Mas você…

Ela fechou os olhos, relutante. Suspirou.

— Eu sei. Não está vendo a Assinatura. — ela admitiu. A Assinatura demoníaca era algo que todos os bruxos tinham, justo por terem ingerido sangue de demônio, que havia os possibilitando de usar e manipular magia a bel prazer. Dependendo do demônio, eram estapafúrdias, como pele em tons diferentes, ou olhos a mais. Algumas eram mais sutis, como a de Eliza. — É porque, na verdade, eu não tenho. Sei que pode ser muito confuso, uma bruxa sem assinatura, mas eu sou apenas… digamos, 25 por cento bruxa.

— Você é o que chamam de difundida, então?

— Não. — ela enchia a boca ao negar, ela gostava de ser uma bruxa, apesar da sociedade ver aquilo com outros olhos. — Difundidos não chegariam perto de fazer o que eu faço. Morreriam só de desenhar um pentagrama no chão. Eu posso acessar dimensões demoníacas.

— Então essa é a sua habilidade que Mikael tanto disse?

— Sim, as outras bruxas nunca aceitaram meu clã, por motivos de inveja. Há muita história por detrás disso, e não é muito claro explicar as coisas em uma noite só. O que precisa saber, Ian, é que sou uma invocadora, e que todos que eu possa conhecer invejam esse dom. Principalmente agora, que a irmandade morreu. — Ela disse as palavras com o peso que Ian achou extremamente desconfortável.

— Ele também me disse disso… Meus pêsames.

— É o que todos dizem. — Ela revirou o olhar. — Agora vem a hora que você pergunta como é se sentir assim, tão sozinha. É como andar em uma calçada lotada de pessoas, eu te respondo, com todos indo em uma direção, e você na direção contrária, e não conseguindo evitar isso. É como ser uma aberração.

— Nunca perguntaria isso. — ele a vetou. — Sei exatamente como se sente, Nina, e sei que é mais confuso quando você um dia já andou na direção junto das pessoas, e agora, não consegue mais.

Ela parou de andar, subitamente.

— Parece que chegamos. — ela disse, olhando na da base para um prédio meio velho no centro da cidade. Ian tinha a impressão de que o edifício não era estranho em sua memória, mas não gastou seu tempo lembrando quem mais morava ali. Nina sacou a chave do bolso, e abiu a porta ao lado da farmácia, já fechada a essa hora. — Uma dama solteira não deve chamar um cavalheiro, também solteiro, para subir com ela, deve? — ela brincou.

— Eu acho que não. Mas, se a dama se sentir a vontade de convidar o cavalheiro, ele não acharia ruim. — ele rebateu com outra brincadeira. Ela riu baixo.

Já estava fechando a porta, quando ela o chamou.

— Ian?

Ele se virou, já estava indo embora.

— O quê?

— Volte amanhã. Já que vamos passar bastante tempo juntos, temos que ao menos nos conhecermos melhor.

E, por um segundo antes de responder, Ian contemplou o olhar dela. Sóbrio, sincero e encantado. Havia um brilho que ele não sabia como interpretar, uma meia lua de luz que tingia as duas esmeraldas expressivas. Ela sorria como uma criança esperançosa, e Ian esperava não estar fazendo o mesmo, pois sabia que ficava parecendo um tapado quando fazia.

— Tudo bem, dama.

Ian ouviu o toque do celular, alto na madrugada silenciosa. Viu uma mensagem de Solange, e quase se esqueceu que trocaram os números enquanto bebiam no balcão, reclamando de Mikael.

O endereço que ela o mandara no recado era tão simples.

Um prédio pequeno dentre outros iguais, numa rua de construções semelhantes. Os jardins eram todos iguais, nada mudava. As mesmas plantas rubras, e as figueiras altas invadindo as calçadas.

Ela o esperava embaixo de uma árvore. Estava como sempre, uma estrela no meio da noite. Jaqueta escura, botas de salto alto, cabelos soltos e batom rubro. Lançou-lhe um olhar matador, que o fez gelar por dentro.

— O que houve? — ele perguntou, cansado. A única coisa que mais queria agora era ir para casa e descansar, eram tantas coisas para uma noite só. E, uma coisa que Ian não gostava de admitir, mas era um fato, quando Solange aparecia, era mais uma tarefa. — Aconteceu alguma coisa?

— Aconteceu, mas, na verdade, não hoje. — ela também estava fadigada, apesar de vampiros não expressarem tão bem o cansaço. Talvez por não estarem vivos de fato, isso os deixavam pálidos, não se viam quando estavam enrubescidos, mal suavam. — Há poucos dias, um vampiro do clã morreu. Queimado, o apartamento inteiro. Seja quem for, não queria nenhum vestígio.

Ian coçou a cabeça enquanto imaginava.

— Mas isso é um problema dos vampiros. — reclamou. — Mikael não pode lidar com isso?

— Ele está ocupado se embebedando. — ela reclamou, revirando os olhos. — Como eu sou a segunda em posto, assumo o lugar dele. Além do mais, ele está ciente disso, e sabe que eu o chamei. Ele vai te pagar, não precisa reclamar.

— Ah, claro. — Riu. Por mais que Solange fosse linda e adorável, Ian não era seu cachorrinho que realizava serviços sem pagamento. — Por onde começamos?

Ela chutou a porta do apartamento sem remorso algum, não se importando nada com a vizinhança, que, aquela hora da madrugada, estava dormindo. Os corredores eram tão estreitos que mal puderam ir um ao lado do outro, e o apartamento ficava no terceiro andar, as escadas todas atrofiadas.

Quando a porta caiu no chão, a poeira voou do chão para o ar. Cinzas e fuligem de dias tomaram conta do local desgastado por chamas. Era impossível não se afirmar que houvera um incêndio ali. Os cômodos eram irreconhecíveis, e, os poucos pertences que sobraram, Solange examinava com a ajuda dele.

— Droga. — ela murmurou. — Nenhum traço de magia.

Ian se virou para ela e deixou cair no chão o que seria cabos elétricos.

— Não acha melhor chamarmos alguém que realmente entende de magia? — sugeriu. — Não me leva a mal, mas você é só uma vampira, isso seria mais apropriado para uma bruxa, ou um feiticeiro…

— Eu vivi mais de 400 anos, garoto. — ela disse, e havia uma certa imponência na fala. Era como se quisesse impressioná-lo. — E já fui casada com um bruxo, sei quando há magia em um lugar ou não.

Ian levantou as sobrancelhas, fingindo estar impressionado. De certa forma, já imaginava isso dela. Solange era uma caixa de surpresas, e Ian não podia deixar surpreender-se por tudo que ela dissesse.

— Foram os lobisomens. — ela anunciou, entredentes. — Malditos.

— Certeza?

— É a única explicação plausível. — ela disse, apertando os lençóis queimados. — Não há mais nada que prove o contrário. Esse bairro é território deles.

E com isso já iam saindo. Desde que subiam as escadas, Ian escutava um ruído baixo, que, a princípio, achou que fosse o ronco de alguma moto, mas o barulho continuou. Isso o fez crer que era algo mais. E agora esse murmuro estava mais alto do que nunca. E ele soou tão alto que fora praticamente um grito quando explodiu.

Solange se virou em cima dos saltos para ver o que era.

Um ser de forma estranha, parecia um feto prematuro, mas com garras pontudas e asas atrofiadas, além de uma incomum pele roxa e orelhas enormes. Ian se espantou por nunca ter visto nada do tipo. Um líquido que escorria do buraco que ele tinha na face — onde deveria ficar sua boca — pingava no chão, derretendo o piso de madeira aos poucos.

Rapidamente, Ian não hesitou em descarregar o pente na criatura, que recebeu os disparos gritando de dor. Os tiros atravessaram a carne, expondo a parte inteira. O sangue preto jorrou para todos os lados, banhando as cinzas. O demônio caiu aos poucos, as asas furadas por balas falhando e não conseguindo mais o manter de pé.

Mas a criatura não se deu por vencida. Começou a se rastejar até eles.

Solange vetou os movimentos dele com apenas uma pisada de sua bota, e Ian pôde descobrir porque dos saltos serem tão finos. A cabeça do monstro explodiu, e ela sujou toda sua roupa.

— Que merda é essa? — ele perguntou.

— Um imp. — ela respondeu, sem olhar para trás — Um demônio menor. Costumam comer restos de infernais. Deve ter comido o que sobrou de Cássio. Vamos. Não tem mais nada ver aqui.

Ela pegou Ian pelo pulso e juntos desceram as escadas correndo. Ele se perguntou o porque da pressa repentina dela, mas as respostas começaram a aparecer. Os vizinhos começaram a acordar, um a um, assutados com os barulhos dos disparos de Ian. O segundo motivo, Ian só soube quando saíram do prédio. Nas montanhas ao longe, atrás de todas, o sol já estava para sair.

— Até. — ela dizia, apressada. — E obrigada por vir comigo.

Ela o deixou pegar em sua mão por uns instantes, e Ian sentiu a carne dura e fria da vampira, antes dela ir embora, correndo no final de madrugada como um morcego.

Levi não sabia onde estava.

Ou, melhor, sabia sim. Não estava na cidade, essa era a única informação que dispunha. Ao seu redor, as árvores verdes escuras se erguiam, rugosas e com o típico cheiro de planta, que, em sua opinião, era enjoativo. A terra molhada e fofa aos pés atolava os sapatos aos poucos.

Depois de fugir no bar dos lobisomens, não viu para onde rumou, descontrolado. Correu para uma direção aleatória, e quase fora atropelado por um carro em alta velocidade. Por um reflexo, conseguiu se jogar para frente, escapando do veículo. Ainda ouvindo o zumbido, começou a seguir a direção que ele cessava. Em um ponto de sua noite, adentrou na mata, um pouco inconsciente. Tudo era distante, como se estivesse em um segundo plano, apagado e fosco ao olhar

Pelo menos não era mais uma vela que incendiava em esmeralda, as faíscas já não vazavam mais das pontas dos dedos. Em compensação, sua mágica parecia ter o abandonado de vez. Não sabia se deveria jogar a culpa na magia, ou nele mesmo, que não sabia nenhum feitiço para situações como aquela.

Algo ainda o guiava, curiosamente. Os pés não paravam de andar, e o zumbido, apesar de baixo, estava prestes a cessar.

Ajuda! Gritou novamente a voz dentro de sua cabeça.

Levi correu na direção que pensou ter ouvido a voz. Mas corria apenas em uma direção aleatória, já que, como nas outras vezes, a voz havia exalado dentro dos pensamentos, sem direção certa. Chegou a uma clareira, ou, pelo menos, o que poderia ser chamado de uma. A vegetação baixava ali, e era uma área mais visível. No centro, havia uma enorme rocha, e, em cima da rocha, como nos filmes de terror que Levi costumava assistir, havia uma garota. Seus cabelos escuros escorriam como uma cortina sobre a face, a tornando um mistério. Vestia-se apenas com uma camisola branca, e, mesmo desacordada, parecia passar frio.

Levi chegou mais perto, e colocou a mão no ombro dela. Sentiu o corpo frio, que diria estar morto, caso ele não se mexesse. Ele recuou no mesmo instante que ela se ergueu, completamente assutada. Ela se colocou de pé, e a única coisa que ele pôde ver em sua face eram seus olhos tão escuros como a noite sem estrelas.

Levi gritou, quando um fulgor dourado a contornou, e logo seus olhos brilharam, como duas lâmpadas.

Ela ergueu um dedo na direção dele, e seu olhar pesado já decretara o que viria a seguir.

Mas nada aconteceu.

Levi se levantou, e, com seus dedos ágeis, manipulou as mãos dela para que fossem uma contra a outra, para trás do corpo, em uma espécie de algema invisível.

— Me solte, feiticeiro! — ela gritou, com sua voz aguda e ríspida. — É uma ordem do paraíso!

— Quem é você? — perguntou Levi. — Por que pediu ajuda para mim?

Ela se contorceu, e quando finalmente cansou de espalhar terra e percebeu que não se livraria da mágica de Levi tão fácil, disse:

— Meu nome é Tati. E eu fui enviada por Miguel, para uma missão.

— Do que está falando?!

— O que você não está entendo? — Ela inquiriu, impaciente. — Eu sou um anjo!

E apagou no mesmo instante que disse isso.


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Notas finais do capítulo

- E aí, o que acharam? Muita coisa?
— Com esse capítulo chegamos ao fim da primeira parte!



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