Heróis de Cristal - Cidade em Chamas escrita por Ricardo Oliveira


Capítulo 9
Máscaras


Notas iniciais do capítulo

"We are back, we are back"

Obrigado pela paciência! Uhu!



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Keiko costumava dizer, e Oliver lembrava bem, pois recebia tapas dela quando não estava prestando atenção, que cada pessoa tinha uma zona especial dentro si. Um lugar onde não existiam apenas trevas ou apenas luz, mas ambos. Ela dizia também que a pessoa que alcançava um lugar de harmonia com essa zona, ou seja, consigo mesmo, se tornava mais completo.


Ela nunca usava a palavra “perfeito”, pois conhecia bem o peso daquilo. Ninguém era perfeito. Oliver nunca tinha alcançado sua zona especial. Foi o único momento em todo o seu treinamento com a velha espadachim que Keiko lhe permitiu recusar alguma lição. Ser completo não era ser melhor, era se desprender de todas as máscaras, identidades e mentiras que tinha criado para si. Só pessoas sinceras podiam ter aquele luxo.


Mas, por mais que ele tentasse, por mais que ele corresse, fugisse e se escondesse, o que ele fazia muito, não tinha como fugir da própria família. Talvez fosse coincidência ou um ardil bem elaborado do destino, mas Oliver, ao contrário do que acreditava ser correto, estava resgatando cada vez mais os seus laços pessoais. Tinha decidido muito tempo atrás que cada pessoa importante em sua vida era um peso grande demais. E ele não era responsável, ou forte, o bastante para manter tudo aquilo.


E agora? Quem ele era depois daquele tempo? Um pensador? Um herói? Um filho? Tendo isso em mente, cada vez mais ele se aproximava de seu destino e mais a música familiar crescia em seus ouvidos, embora mais abafada do que deveria. Seu cérebro não tinha um botão de volume, contudo ele sabia como se concentrar em outros sons bem o suficiente para, de certa forma, enganar a própria percepção do som. Mesmo ele não era imune às tendências cognitivas e peças que a mente humana pregava, só sabia aproveitá-las de forma diferente.


E ali ele estava. Parado diante do estúdio de som que tanto visitara no passado. A fachada estava diferente, como tinha que ser. Tudo mudava, de um jeito ou de outro. Árvores que antes não existiam agora preenchiam a avenida, casas de cores diferentes que pareciam ter crescido da terra como algo vivo, em uma nova calçada que cercava o novo asfalto da rua. Ainda assim, tudo conseguia soar tão familiar como sempre. Ainda era a Perth que ele sabia amar.


Respirando fundo, Oliver empurrou as portas de vidro e caminhou para dentro. O tempo tinha feito bem ao lugar. Tudo estava mais… moderno. Além de terem adicionado um espaço de honra na recepção. Prêmios e conquistas preenchiam o canto dedicado. E é claro que ela estaria lá. Ele sorriu quando viu a foto, emoldurada entre outras do outro lado da parede.


“Bonita como sempre.”, pensou consigo, notando o sorriso de felicidade que ela estampava na foto antes de se dirigir para o recepcionista que o encarava surpreso.


— Henry. – Ele o cumprimentou com um aceno, encostando-se logo em seguida no balcão que os separava. Henry o fitou tanto, um pouco desconfiado, que seus olhos se apertaram. Algumas pessoas considerariam aquilo invasivo. Aquele olhar que tenta te medir e rotular. Decidir quem você é. Mas ele, como alguém que enxergava mais do que o normal, sabia que aqueles olhares eram, na verdade, muito rasos.


— Oliver? – Henry perguntou em um tom que praticamente confirmava as próprias suspeitas. Oliver concordou com as sobrancelhas rapidamente exibindo uma expressão de obviedade no rosto. – Você…


— Estou diferente? Estive sumido? Eu juro, já ouvi todas as versões possíveis dessa conversa. – Ele suspirou. Não era exatamente verdade, pois ele sabia que ainda tinha pessoas para ter aquela conversa. E isso o assustava um pouco, considerando de quem se tratava. Ele apontou para a sala à prova de som (desejando que elas fossem totalmente à prova de som para ele) mais próxima, de onde captava a música familiar. – Ela está lá?


Henry confirmou com a cabeça: - Ela vai ficar feliz em vê-lo. Assim como eu estou. – Ele sorriu, enquanto entregava o passe eletrônico da sala.


Sobre o Oceano Índico
Janeiro de 2009


— Vocês podem parar?! – Thalia gritou como um trovão. Não literalmente como um trovão. E para Oliver era assustador que a possibilidade de alguém naquele avião ser, literalmente, capaz de gritar como um trovão fosse algo bem real. Ele tinha acabado de esmagar a cabeça de uma pessoa que tentava estrangulá-lo. Pelo menos a cabeça se encheu de novo, mas seu pescoço ainda doía e provavelmente estava vermelho onde tinha sido apertado.


— Eu não faria isso, Thalia. – Arno argumentou. Ele não tinha se mexido quando Eddie atacou, embora Oliver suspeitasse que ele poderia, se quisesse. Na verdade, ele suspeitava que qualquer um dos presentes no avião poderiam ter impedido aquilo, mas apenas Thalia se importava o suficiente. – Você deveria ter deixado eles brigarem.


Ela olhou de um jeito esquisito para ele. Sua expressão estava levemente enojada: – Sério? E por que eu faria isso?


— Todos nós temos uma missão aqui. Eu não me importo com os grupos que vocês formam, mas enquanto estivermos em Madagascar somos um time só. Quero ter certeza de que posso confiar em todos aqui. Portanto, se esses dois têm diferenças, que eles resolvam aqui enquanto podem. – Ele olhou para o resto dos passageiros. – Isso vale para todos vocês.


— Sugestão anotada. – Thalia respondeu com um brilho de desafio nos olhos, ainda segurando a camisa de Eddie, embora ele não se movesse, apesar do olhar maligno que carregava na direção de Oliver. – Arno tem razão. Enquanto estivermos em Madagascar, somos um time só. E eu sou a líder, quero que se lembrem disso. Esse é o Oliver e ele está aqui para nos ajudar. Gostem vocês ou não.


Ela esperou por alguns segundos, olhando de pé para todos os assentos como se esperasse alguém contestar a sua decisão. Felizmente, todos pareceram concordar ou não se importar o suficiente para discordar. Ela se voltou para Oliver, finalmente largando Eddie: - Venha comigo, hora de te explicar porque estamos aqui.


Agora


“War, children, it's just a shot away, it's just a shot away”, ele ouvia mais claramente agora. A música preferida dela, é claro. Sempre fã dos clássicos.


“Imagino que algumas coisas não mudem”, pensou consigo antes de abrir a porta da sala acústica. A guitarra parou, assim como a voz. A dona de ambas estava surpresa, e como ele gostava de surpreendê-la.


— Olá, Luna. – Seus ombros relaxaram quando ele falou com ela, após tantos anos. Era como se alguma coisa presa dentro de si finalmente saísse, e supersentido nenhum podia detectar aquilo. Alguns poderes vinham do coração.


Ela pulou do pequeno palco, ainda com a guitarra presa no corpo pelo ombro, e o abraçou: - É você! – Exclamava, animada e chorosa.


— É, eu. – Concordou, embora não pudesse deixar de pensar: “Mas quem sou eu?”. Pensador? Herói? Filho? – Seu irmãozinho voltou para casa.


Ele viu o soco vindo quase em câmera lenta, mas não fez nada até que ele batesse em seu ombro. Supôs que deveria estar feliz que ela não o acertasse com a guitarra.


— Onde é que você estava?! Seis anos! - “Sete”, ele corrigiu mentalmente, mas ela parecia muito brava para discutir aquilo, embora estivesse decididamente feliz. – Pessoas normais ligam! Pessoas normais procuram a família no Facebook!


— Eu não posso ser uma pessoa normal e seu irmão ao mesmo tempo. – “O que eu posso ser? Irmão? Pensador? Herói? Filho?” – Você precisa escolher um. – Falou para Luna. “Ou falei para mim?”.


Ela riu, o que o deixou aliviado. Sem mais socos ou “guitarradas”, pelo menos. Então a expressão dela ficou um pouco mais séria: - Papai…


— Eu sei. – Ele respondeu, virando o rosto para o lado. “Mais do que você, talvez. Mas menos do que deveria.”


As coisas ficaram um pouco tensas por alguns segundos. Não apenas pela ferida daquilo ser tão recente que a simples menção do acontecido machucava, mas pelas palavras que não eram ditas.


Oliver e Luna eram, na verdade, meio-irmãos. Ela havia nascido três anos antes de Oliver, e dois antes de Vicent, o pai de ambos, conhecer Lilian. Por insistência do pai, os dois tinham ficado tão próximos quanto poderiam, mas Lilian não era uma grande fã de Luna. Ela era a personificação do que Lilian desaprovava, e olhando-a de perto, Oliver notava o motivo.


Sua mãe Lilian sempre tinha prezado a ordem, tendo as maiores batalhas da vida sendo sido travadas contra partículas insistentes de poeira e roupas amassadas. Não aprovava demonstrações de rebeldia ou qualquer coisa fora da etiqueta. Oliver fazia um trabalho razoável tentando agradá-la. Luna nunca tentou.


Desde os cabelos de mechas multicoloridas até a calça rasgada e, claro, a guitarra, Luna tinha se tornado uma amálgama cultural dos anos 70 e do mundo atual e não tinha vergonha disso. Pelo contrário, exibia orgulhosa cada recorte de jornal em que aparecia e guardava cada ingresso amassado dos pequenos shows que participava. Não era nenhuma rockstar, mas amava o que fazia.


Ela sempre tinha sido um exemplo para ele, de certa forma. Sua determinação em seguir os sonhos, independentemente dos problemas que isso trouxesse, era um incentivo no caminho que ele tinha escolhido. E, agora, perto do fim de todo esse caminho, revê-la era a dose de incentivo que precisava para continuar.


— Ele estava feliz. – Luna acrescentou, tentando animá-lo. – Tão feliz quanto podia. Ele falava de você, é claro, e tossia muito. Mas todo dia tinha uma piada nova e idiota de hospital. Eu não ficava muito tempo com ele, sabe… Sua mãe…


Oliver acenou compreensivo com a cabeça. Os dois sabiam que a mãe dele não a expulsaria diretamente, mas ela definitivamente faria de tudo para deixá-la desconfortável: - Eu devia estar lá.


— Deveria. – Ela concordou, séria, antes de abraçá-lo mais uma vez. – Mas você está aqui agora, ok? Ele ficaria feliz do mesmo jeito. Talvez até te contaria uma piada de hospital. – Passando a mão no rosto, ela enxugou as lágrimas que restavam. – Eu quero sorvete. Você vem?


— Você paga? – Arriscou. Não tinha um centavo no bolso. Há muito tempo não andava com o próprio dinheiro. Ela sorriu, enquanto removia o cordão de apoio da guitarra do ombro. Aquele sorriso que a deixava tão linda quanto ele se lembrava do tempo que passavam juntos. Mas ele não era mais aquela pessoa. Era agora um pensador? Um herói? Um filho? Um irmão?


Sobre o Oceano Índico
Janeiro de 2009


Thalia fechou as cortinas que separavam a cabine de onde estavam da outra. Ela se sentou na poltrona mais próxima dele e entrelaçou os dedos: - Então?


— Então…? – Repetiu, cauteloso. Tinha quase sido estrangulado por fazer perguntas há menos de cinco minutos.


— Você tem perguntas. Faça-as.


Com tantas coisas estranhas, ele não sabia por onde começar. Decidiu ir pelo mais simples: - O que é um vigia?


— Existem três… - Ela hesitou desconfortável, como se não tivesse uma palavra melhor para usar. - …pessoas que nós chamamos assim. São, aparentemente, imortais. Nossa organização os rastreia desde que existimos. Estão sempre presentes em momentos históricos de grande importância, sempre vigiando. Daí o nome.


— E vocês existem desde…? – A coisa mais surpreendente para ele era não estar realmente surpreso. “Imortalidade, por que não? Vou colocar na lista junto com sentidos apurados e telecinese tátil.”


— Muito tempo. - “Ela também não sabe.”, Oliver percebeu.


Ele fez uma pausa durante alguns segundos. Não tinha muita certeza do que queria saber a seguir.


— Por que vocês os rastreiam?


— Normalmente, eles são os causadores desses eventos. Normalmente, tentamos impedi-los. – Thalia respondeu, enfatizando o “normalmente” sem notar. Oliver franziu uma sobrancelha.


— É o que vamos fazer hoje? Impedir alguma coisa de virar um momento histórico?


— Entre outras coisas. – Replicou, de forma extremamente vaga.


— Que seriam? – Indagou, levemente preocupado. Thalia certamente tinha sido aprovada na “escola de respostas vagas” de Jennifer Moore. Pelo menos ele ainda não tinha apanhado.


— Resgatar alguns dos nossos companheiros, se estiverem vivos. Chaos, o vigia que vamos encontrar, os capturou em nosso último encontro. Com sorte, ele não os matou. - “Com sorte?!” – É onde você entra. Com seus sentidos, pode encontrá-los mais rápido que qualquer um de nós.


— É um voto de confiança enorme. – Ele murmurou, pensando em todas as pessoas que estavam ali. Cada uma delas tinha um cristal brilhante e, ainda assim, estavam tensos em encontrar aquele Chaos novamente.


— Como você pode ver, não temos tantas opções assim. – Ela ficou mais séria, se é que era possível. – Escute. Eu acabei de dar uma bronca em todos aqui para te defender, mas eu não quero que você se engane. Te colocar aqui não foi ideia minha e eu certamente fui contra.


— Retiro o que eu disse sobre o voto de confiança. – Comentou, desapontado, mas não surpreendido. – Sobre os cristais…


— Não. – Ela cortou. – Você não é membro da nossa organização ainda. Não pode saber sobre os cristais.


— Você confia em mim para salvar seus amigos, mas não para saber sobre um pedaço de vidro roxo? – Retrucou em um tom indignado, aquilo sim o surpreendia.


Thalia deu um sorriso penoso: - Isso certamente mostra o quanto eles valem.


— É, mas é uma via de mão dupla. – Ele se levantou, decidido. Não tinha mais nada para perguntar. Não para algum deles. – Porque agora eu também sei o quanto vocês valem.


Agora


Oliver tinha se esquecido como era bom conversar com Luna. Estiveram sentados durante horas nas mesas colocadas do lado de fora da sorveteria, vendo pessoas e carros passarem enquanto conversavam sobre tudo. O tempo passava sem que ele notasse, o que era uma coisa rara, mas ele não via sentido em lamentar por aquilo.


Saber quantas coisas tinha perdido na vida da irmã não era fácil, mas por algum motivo ele ficava mais chateado quando ela citava seus amigos. Luna era sua irmã e sempre seria. Tinham um vínculo inabalável determinado desde que nasceram, mas a amizade era um fio mais fino e ele sabia que as coisas não era mais as mesmas:


— Você pode visitá-los hoje de noite. – Ela comentou, como se soubesse o que ele estava pensando enquanto ele observava o sol se pondo. – Mortimer vai arrecadar fundos para o Salve Perth. Todos estarão lá, vai ser um grande evento. Eu adoraria ter você como meu acompanhante.


— Salve Perth… - Ele repetiu, se perguntando o que Chaos pensava daquilo. Se o movimento estivesse fazendo a diferença, o vigia certamente teria tomado alguma medida para sabotá-lo. Ele não pôde deixar de cerrar os punhos por debaixo da mesa de metal ao lembrar do que tinha acontecido em Madagascar na última vez em que se encontraram. – Eu não acho que devo estar lá.


Luna colocou sua mão sobre a dele gentilmente: - Eles são seus amigos. Que você abandonou por razões obscuras e sinistras… você disse, não eu! – Ela retrucou quando ele franziu as sobrancelhas. – O ponto é, eles gostam de você. Não deixe isso para trás.


Pensador? Herói? Filho? Irmão? Amigo? Mesmo ele não sabia dizer quem era quando aceitou o convite da irmã e se despediram apenas para se reencontrarem dentro de algumas horas. No caminho para casa, tentou se convencer de que estava esperando encontrar Chaos por lá. Proteger os amigos e a cidade. Cumprir suas ordens e o pedido do pai.


Mas nada daquilo era verdade. Ele não era completo. E quantas máscaras ainda cabiam no seu rosto, antes que todas caíssem? Oliver preferia não descobrir, embora sentisse que, em breve, não teria escolha. 


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