Heróis de Cristal - Cidade em Chamas escrita por Ricardo Oliveira


Capítulo 14
Mickey




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Honsü, Japão
2014


— O que você vai fazer quando tirarem esses sentidos de você? – Keiko perguntou, irritada, quando ele desviou instintivamente de um galho arremessado por ela.


— Agradecer? – Ele ironizou. Não tinha pensado muito sobre o assunto. Carregava aquilo na cabeça desde os oito anos. Era uma extensão de si, como um braço ou uma perna. Ele não era capaz de se imaginar sem eles. – Eu não acho que isso seja possível.


— Todo pilar pode ser tirado. E quando eles tiram de você, você cai. – Ela falou com paciência, embora sua voz tivesse um quê de irritação. – Eu não tenho poderes. Pareço indefesa para você?


— É, nem todos nós somos super samurais. – Oliver se defendeu. Keiko não o entendia. Sempre tinha sido uma grande guerreira. Ele não. Era só o cara que tinha ganhado poderes ao acaso.


Ela lhe deu um olhar misterioso em troca e balançou a cabeça: - Mesmo “super samurais” estão preparados para lutar sem suas espadas.


Perth
Agora


O veneno entorpecia seus sentidos cada vez mais na mesma medida que seu corpo deixava de obedecê-lo, mas Jellyfish não se incomodava, golpeando-o cada vez mais enquanto ele tentava debilmente se defender com os braços que mal levantavam. Os golpes, contudo, eram sentidos na mesma intensidade de sempre.


Quanto mais os punhos embebidos do veneno gasoso o atingiam, mais difícil se tornava para ele virar o jogo. “Seja um super samurai, seja um super samurai”, pensou consigo. Era difícil. Seu radar interno tinha sido desligado e tinha se livrado dos equipamentos que carregava. O que ainda podia fazer que Jellyfish fosse incapaz de prever?


Last Christmas, I gave you my heart.— Cantou enquanto saltava por cima dele, desviando de um soco mesmo não podendo vê-lo. – But the very next day you gave it away.


Ele se sentia prestes a desabar. Ficar de pé exigia toda a sua vontade e concentração enquanto ele sabia que Jellyfish investia sobre ele novamente. De quantos combates tinha participado cantando aquela música? Jellyfish se mexia em velocidade regular e atacava principalmente com as mãos, que eram essenciais para o seu poder. Ele podia fazer aquilo. Podia ser como Keiko.


This year,— “Cruzado de direita”, pensou, levantando o braço um pouco mais firme em tempo de segurar o soco do inimigo. - to save me from tears I'll give it to someone special.


Oliver se apoiou no próprio lado direito, não teria outra chance. “Once bitten”, dizia, enquanto seu cérebro gritava para que se lembrasse da sensação de derrubar alguém com um soco. Era tudo o que restava entre ele e a morte. “And twice shy”, era a hora. Não importava que sua mente estivesse devastada e seus sentidos nublados desde que o seu corpo lembrasse como fazer. De cima para baixo, seu punho cerrado viajou sem destino pelo que pareceu uma eternidade até tocar a máscara animada de Jellyfish, depositando toda a sua força restante nela.


Ele se encostou numa parede, sem enxergar. Não sabia se tinha vencido ou não. Não sabia nada, exceto que não queria morrer ali, embora o veneno discordasse. Suas mãos tatearam a parede até encontrar a janela onde tinha jogado suas roupas. Era uma queda longa. Não sabia. Não lembrava. Mas não podia ficar ali. A polícia viria. Eram seus inimigos. Não lembrava o motivo. Mal lembrava o que deveria fazer.


E então deixou-se cair até o chão, sem pensar em mais nada.


Antananarivo, Madagascar
1 de janeiro de 2009


— Não está funcionando. – Observou inutilmente Eddie. Ele tinha esse hábito de falar coisas óbvias ou desnecessárias. Incomodava a maioria das pessoas. Sandy não parecia se importar. Inclusive, ele tinha razão.


Atacar em dupla parecia uma boa ideia ainda que seus poderes não fizessem uma combinação tão boa. Entretanto, Chaos era muito forte. Ela tinha uma ideia do poder dele. Imaginava alguém praticamente invencível quando ouvia falar sobre o Vigia, mas, na verdade, ele era muito pior. Ela mal conseguia movê-lo quando sua habilidade praticamente envolvia mover coisas. E criar coisas. E abrir portais para outras dimensões. Entre outras coisas. Era complicado ser uma maga. Trocaria tudo aquilo para ter um cristal. Talvez uma vida normal, ela repensava quando Chaos sorria após seu último ataque.


Mas seu sorriso se transformou numa careta mesmo que por um segundo. Ele colocou as mãos nas costas como que se procurando algo e removeu um projétil. Seu sorriso retornou: - Arno.


— Acho que as coisas nunca saem como o planejado. – Sara reclamou, transformando a própria mão em uma grande viga de aço. – Plano Z então. – Falou, atingindo o rosto de Chaos.


— Sempre na minha vez. – Thalia resmungou, checando se Eddie e Sandy estavam ok. – Arno! – gritou para o companheiro que estava no alto de um prédio próximo. Se não tinham chamado atenção até agora, não teriam mais tanta sorte. – Eu realmente espero que Gael faça isso valer a pena porque nós vamos todos morrer.


— Não vamos morrer. – Sandy sorriu, tentando se manter otimista. Definitivamente tinham mais chances agora. – Nem mesmo ele pode lutar contra cinco de nós ao mesmo tempo.


— Não posso, bruxinha? Você não faz ideia do que eu posso fazer. – Chaos abriu um sorriso ainda maior. – Isso vai ser divertido. Tentem fazer durar.


Perth
Agora


Oliver abriu os olhos. Ele nunca tinha sido atingido por um trem, mas já tinha sido soterrado por cinzas vulcânicas e sabia que as sensações eram similares. Sua cabeça ameaçava explodir mais do que o habitual e isso significava alguma coisa. Seu corpo estava dolorido, mas não era nada além do que ele esperava. Tinha tomado uma surra.


Olhou ao redor, estava deitado em um sofá com roupas que não eram suas. Ele sabia de quem eram. Conhecia o lugar bem o suficiente para se sentir seguro, mas não para saciar a própria curiosidade enquanto milhões de questões pipocavam em sua mente. Contudo, ele podia se dar ao luxo de perder alguns segundos para agradecer por continuar vivo.


Ele se levantou, indo até o único quarto do apartamento que por si só era muito bagunçado. Traquitanas tecnológicas (feitas por ele mesmo) com funções desconhecidas enchiam o chão do lugar. A porta do quarto estava aberta e dali ele pôde ver as costas de Mickey que assistia a algum tipo de clipe musical com pessoas fantasiadas de gatos.


— Mickey. – Oliver chamou, sem ser notado. Já esperava aquilo. Mesmo que não tivesse uma audição aprimorada perceberia que os fones de ouvido do amigo estavam ligados no máximo. Ele se aproximou o suficiente para tocá-lo no ombro.


Mickey se sobressaltou, pulando da cadeira e mexendo os braços como se tentasse espantar alguma coisa enquanto gritava. Oliver não reagiu vendo aquilo. Anos enfrentando ameaças de verdade faziam aquele espetáculo digno de nota.


— Mickey. – Ele repetiu, notando o cabo desplugado do fone no processo de reação do amigo. – Oi.


— Ei, Oliver. – Mickey respirou fundo de alívio. – Uau. Você me assustou. Eu não costumo ter pessoas aqui em casa.


Oliver olhou ao redor. Caixas de pizza vazias acumuladas, mais máquinas esquisitas que provavelmente não funcionavam e centímetros de poeira. Era surpreendente que o próprio Mickey vivesse ali. Era surpreendente que qualquer um vivesse ali: - É, eu imagino. – Resumiu Oliver. – Por que eu estou aqui?


Mickey se fingiu de pensativo: - Essa é uma boa pergunta. Eu estava tranquilo numa maratona de Game of Thrones quando chovem mensagens do tipo “ataque terrorista no Brookfield Place”. E eu penso “Ei, espere. Isso é Perth. Não tem ataques terroristas em Perth.”. Então eu vou até lá porque eu sei que você estará envolvido. E eu te encontro. Numa lata de lixo mais fedorenta do que os peixes podres do mangá Gyo. Vestido de roupas esquisitas com suas roupas do lado. Morrendo. Você consegue imaginar isso?


— Bastante. – Admitiu Oliver, olhando de relance para o relógio do computador do amigo. Tinham se passado mais de doze horas desde o incidente. – Quem eram eles?


A irritação de Mickey desapareceu. Adorava explicar as coisas: - Essa é a parte curiosa. – Comentou vagamente, se voltando para o computador. – Semanas atrás eles eram um grupo de revoltados na internet. Reclamavam de questões ambientais, problemas políticos, organizações corruptas…


— É, a maioria era de adolescentes. O que aconteceu?


— Eu não sei. Os sobreviventes não dizem nada. – O tom de irritação voltou para a voz dele. – Sim, eu disse sobreviventes. O que deve soar estranho após a sua pequena chacina.


— Você preferia que fosse Molly ou Mortimer ou Kylie em um caixão? – Protestou, embora se sentisse culpado. Sempre se sentiria, mas era capaz de viver com as decisões que tomava. – Eles tinham armas. Eu fiz o que podia, não o que queria.


— Foi Chaos, não foi? – Ele perguntou, a irritação assumindo um tom de culpa. Oliver percebeu que ele também tinha visto o vídeo do seu pai e, de algum modo, não ficou bravo. Os dois tinham sido amigos por mais tempo do que Oliver tinha vivido.


— Não. – Oliver respondeu brevemente. – Eu conheci o verdadeiro Chaos. Pandora nunca mandaria alguém sozinho contra Chaos. Esse cara é um impostor.


— Mas o seu pai…


— Ele disse que Chaos estava diferente. – Oliver interrompeu. Lembrava da mensagem palavra por palavra. – Chaos tem milhares de anos. Ele não muda. Nunca mudou. Ele envenena figuras de poder nas sombras. Derruba países e impérios através de políticos e da imprensa. Esse cara novo? Ele corrompeu a polícia e recrutou mafiosos e desajustados. Chaos queria a caneta, esse cara quer uma espada. Ele está montando um exército.


— E o que ele pretende com um exército? – Mickey perguntou, um pouco assustado.


— Eu não sei. – Confessou. – Ainda. Jellyfish escapou. – Oliver observou, passando o olho pelas notícias que Mickey rolava pelo computador. – Ainda quer me ajudar?


— Depende. Você tem um plano ou vamos acabar em contêineres de lixo?


— Eu honestamente não sei, mas definitivamente tenho uma ideia. Pode ser perigoso.


— Olhe para esse quarto. Deve ter um rato morto atrás das cortinas. – Mickey protestou. – Tudo aqui é perigoso. Qual a sua ideia?


— Eu tenho agido errado. Os menores não vão saber sobre Chaos, mas eu sei quem vai. – Oliver não pôde evitar sorrir. - Nós vamos capturar Jellyfish.


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