Aquele que Perdeu a Memória escrita por Ri Naldo


Capítulo 20
Historie


Notas iniciais do capítulo

Me perdoem. Espero que nenhum leitor tenha morrido nessa eternidade.



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— Já consegue se levantar? — perguntei, segurando o braço dele. Ainda parecia doente e fraco, mas forte o bastante para pelo menos andar.

— Sim, eu acho.

Dylan se apoiou no meu ombro e se levantou devagar. Andamos com passos lentos até a porta do templo. Quando eu a abri, ele imediatamente pôs a mão na frente do rosto, claramente adaptado à escuridão. Após um ou dois minutos, sua visão começou a se acostumar com a claridade, e ele pôde olhar em volta da colina dos templos.

Estávamos à frente do templo de Marte Ultor, mais ao sul. Ao norte, havia o templo de Júpiter; e ao oeste, os de Belona e Plutão.

Dei a ele mais um gole do chá, que na verdade era um elixir que trazia saúde e força, para que pudesse caminhar sem a minha ajuda. Percorremos todo o diâmetro da colina em silêncio até a ponte que atravessava o Pequeno Tibre, uma miniatura, apesar de grande, do verdadeiro rio Tibre. Então Dylan começou a fazer perguntas.

— Onde eu estou?

— Bem, é complicado. Estamos em um Acampamento, que não fica no plano dos mortais, mas a entrada é em algum lugar do Pacífico, em São Francisco, Califórnia.

O rosto dele fez um ponto de interrogação nítido.

— Plano dos mortais?

— É, o que os mortais veem e entendem.

— Então não somos mortais?

— Eu sou. Você, nem tanto.

— Certo… — ele parecia mais confuso ainda. — Então primeiro, como você está aqui se é mortal?

— Digamos apenas que existem alguns humanos que conseguem ver e entender o outro plano. Mais coloquialmente falando, ver através da cortina. Mais tecnicamente falando, ver através da Névoa.

— E se eu não sou mortal, o que eu sou? Um deus?

— Quase, mas não seja tão egocêntrico. Você é filho de um deus.

— Mas que por…

— Sem palavrões aqui — falei, tapando a boca dele antes que pudesse terminar a frase. — Você não é bem vindo aqui, Dylan. É melhor mostrar o máximo de respeito que puder.

— Se eu não sou bem vindo, por que estou aqui?

— Porque você precisa estar aqui. Lembra de algo?

Ele afagou a cabeça, tentando pensar. Então acenou negativamente.

— Eu tenho visões vagas da minha mãe.

Dylan olhou para os próprios pés, e eu percebi que ele estava escondendo algo.

— Só dela? — insisti.

— Não.

— De quem mais? — levantei seu queixo para que olhasse para mim.

— De uma garota. E de dois caras. Quando estava semiconsciente, vi cenas onde eu  lutava ao lado deles, mas sinto que isso ainda está por acontecer, como se eu estivesse vendo o futuro. Acho que se chamam Mason e Lucas. Não consigo lembrar o nome da menina, mas sei que ela tem pele branca, quase fantasmagórica, e cabelos muito pretos.

Engoli em seco. “Pele branca, quase fantasmagórica, e cabelos muito pretos”. Só podia ser ela.

Ao passarmos pela ponte, já podíamos ver o Acampamento se estendendo pelo perímetro da clareira, com suas construções antigas e ao mesmo tempo modernas. No horizonte, os aquedutos contrastavam com as colinas de Berkeley. Explosões, lanças e flechas podiam ser vistas nos campos de Marte, na parte norte do recinto. À esquerda estava nosso destino, a Via Praetoria, que levava à principia.

Quando chegamos na Via Principalis, Dylan começou a ficar desconfortável. Os campistas, vendedores, crianças — e espíritos — olhavam para ele com certa repulsa. Estava claro que ele não era romano, e era comum sentir a presença de um grego. Um ou outro gritava “graecus” e fechava a cara.

— Eu realmente preciso estar aqui? — perguntou, olhando para os próprios pés enquanto andava. — Ninguém parece gostar de mim.

— É para sua própria segurança — respondi. — Venha, a principia é logo ali. Adam e Claire estão te esperando.

Ele parecia ter vontade nenhuma de descobrir quem eram os dois.

Ψ

Estávamos encostados em uma loja de refrescos. O dia estava quente, mas esse não era o motivo de estarmos ali.

Dias atrás, correu a notícia que um grego estava usando o Acampamento como refúgio. Ninguém acreditou, porque ninguém sequer assumia que existia a possibilidade de Adam permitir tal coisa.

Então Melanie confirmou. Ela mesma era a responsável por isso.

Só um já foi suficiente para alterar o humor e a harmonia de toda a população da costa oeste dos Estados Unidos, mas agora a história era outra. O acampamento grego tinha sido destruído, e todos os filhos de Grécia estavam vindo para cá.

Na última vez que os dois Acampamentos se encontraram, a terra se encheu de sangue e o ar foi tomado pelo ruído de espadas e lanças penetrando carne e partindo ossos. Eu não estive lá porque isso aconteceu há mais de cinquenta anos, mas fiquei horrorizada o bastante com as histórias contadas pelos sobreviventes, alguns dos quais não possuíam vários membros dos seus corpos.

Ele acabara de passar por nós com a cabeça abaixada. Provavelmente por causa dos gritos de nojo e repulsa que tirava dos espíritos romanos quando passava. Mas, apesar disso, eu consegui ver seus olhos, e eles estavam… perdidos. O azul que coloria sua íris não era brilhante; era distante.

— Vamos, Tina — chamou Kevin ao meu lado. — Ele já passou, não temos mais o que fazer aqui. E se Adam descobrir que não estamos no trabalho…

Acenei para ele ir na frente que eu logo o alcançaria. Fiquei observando o garoto e Melanie atravessarem a via em direção à principia.

Tinha algo muito errado com aquele garoto.

E eu estava curiosa para saber o que era.

Ψ

    Entramos em uma sala completamente enfeitada. Ornamentos de guerra como espadas, bastonetes, escudos, lanças, adagas e armaduras estavam espalhados por todo o lugar.

— Sentem-se, por favor.

Um garoto de cabelos castanhos sentado em uma cadeira alta de ferro apontou para duas poltronas de frente a uma mesa. Ele parecia ter dezessete anos, e estava com olheiras muito escuras nos olhos também castanhos. Sua pele era um tanto amarelada, vestia uma camisa roxa com as letras SPQR bordadas à perfeição e jeans preto. Na mão, segurava uma espécie de cajado que emitia um brilho também roxo. Não restava dúvidas de que ele era o líder dessa espécie de acampamento, como Melanie chamou.

Havia uma garota sentada em uma cadeira idêntica ao lado dele, mas esta era feita de ouro. Ela tinha cabelo loiro muito curto, e olhava para nós com seus olhos cor de âmbar como se examinasse dois ratos de laboratório. Ela me dava medo, e isso me deixou desconfortável.

No entanto, sua postura intimidadora não parecia surtir o mesmo efeito em Melanie, que a cumprimentou com um “E aí, Claire?” sem resposta.

Por fim, sentamos e ficamos cara a cara com os dois.

— Qual é o seu nome? — perguntou aquele que eu acreditava ser Adam.

— Dylan — respondi, engolindo em seco.

— Só Dylan?

Olhei para Melanie, e ela se apressou em responder.

— Fletcher. Dylan Fletcher.

— Você sabe o que está fazendo aqui, Dylan Fletcher?

— Não.

— Deve saber que não é bem-vindo aqui.

— Sim, já percebi isso, obrigado.

Com um movimento rápido, ele encostou a ponta do cajado na minha testa, e ela começou a esquentar.

— Sem sarcasmo comigo. Melanie já me contou a sua situação. Vou resumi-la para você.

E então ele contou a minha própria história. Falou sobre minha mãe, orfanatos, zoológicos, garotas, harpias, bruxas, anjos, fantasmas e morte.

Melanie confirmou tudo.

— O simples fato de você estar vivo desequilibra o balanço da vida e da morte, mesmo que um pouco, e isso já é péssimo. Os campistas daqui já notaram que os monstros estão renascendo rápido demais. Quando você abriu as Portas da Morte, esqueceu de fechá-las. Só nos resta descobrir como faremos isso.

— E por que você não me levou de volta aos gregos, Melanie?

— Não temos como saber exatamente onde eles estão — ela disse. — E, além do mais, eles estão muito vulneráveis. O navio em que navegam possui proteção quase nula. Seus colegas podem ser atacados e mortos a qualquer momento. Aqui você está seguro. E até entendermos todo esse caos, não podemos nos dar o luxo de te arriscar.

— Então eu deveria estar morto, mas sou importante porque não estou?

— Exato.

— Como sabe tanto sobre mim? Sobre tudo, aliás. Você certamente não é uma campista.

Sua expressão animada e descontraída transformou-se em seriedade e aflição.

— Tenho aptidão para saber as coisas. Eu costumava ser informante dos deuses.

— Costumava ser?

— Sim, bem… — ela vacilou. — Nasci com o dom de ver através da Névoa, e isso me deu um certo destaque. Quando o informante foi assassinado na Grande Guerra, a que Percy lutou, os deuses gregos me chamaram. Rachel Elizabeth Dare seria a primeira opção, mas ela já tinha cargo de oráculo.

— Como o Octavian? — perguntou Adam, um pouco intrigado.

— Um pouco diferente, mas sim. Enfim… eu fazia meu trabalho muito bem. Sempre concluía qualquer missão que me fosse designada, e isso me deu certos privilégios. Mas acabei ficando muito próxima de um certo deus, e como qualquer mortal… fui seduzida. Acabei por engravidar dele, e isso custou meu emprego. Eu não aguentei ficar com a criança, tive que entregá-la ao Acampamento Meio-Sangue. Entretanto, como eu disse, eu era muito boa. Os deuses romanos aproveitaram e me chamaram.

— Então agora você é informante dos romanos?

— Não. Sou espiã do Acampamento Júpiter.

— Mas…

— Aconteceu de novo.

— Ah. — olhei para Adam e Claire. A expressão dos dois não mudara. Eles pareciam estar cientes daquela história.

— Você mandou sua outra filha para cá, então?

— Não. Eu soube das coisas que aconteceram com minha primeira filha. Na verdade, eu acompanhava a vida dela, mas sempre estive muito envergonhada para me mostrar. Não sei se ela me aceitaria de volta. Eu realmente não desejaria isso para Francine também, mas ela entrou no caminho dos semideuses, de qualquer jeito. Acho que iria acontecer uma hora ou outra.

Ficamos um tempo em silêncio. Eu queria perguntar várias coisas, mas senti que não deveria.

Adam e Claire se entreolharam e assentiram. Ela falou pela primeira vez desde que entramos na sala.

— Dylan Fletcher, concordamos em manter você abrigado aqui. Entendemos que são tempos difíceis, e que romanos e gregos terão que unir forças se quisermos derrotar Atena e/ou Minerva. Seus colegas chegarão em breve, e daremos abrigos a eles também. Mas, por votação unânime do conselho da Nova Roma, decidimos que é melhor que você fique preso nas masmorras da cidade.

Eu e Melanie nos levantamos simultaneamente.

— O quê?! — ela gritou. — Vocês não podem fazer isso! Ele não tem culpa de estar aqui! Ele não lembra de nada!

Claire permaneceu impassível.

— Sinto muito, Melanie. Não foi escolha minha. E vai ser melhor para ele, acredite. A maioria dos campistas ficaria feliz em arrancar um pedaço dele...

Andei para trás procurando uma saída, mas encontrei dois braços metálicos. Uma armadura de guerra que estava na sala criou vida e segurou meu peito contra o dele, impedindo minha saída. Eu me debatia e gritava em protesto, mas minha força mal se comparava à dele. Melanie suplicava para Adam voltar atrás, mas ele já tinha decidido. A armadura andou e me levou para fora do recinto, e eu virei novamente o centro das atenções, mas dessa vez as pessoas pareciam estar se divertindo com meu sofrimento.

Eu já odiava aquele lugar. Queria voltar para onde eu estava antes, mesmo que eu não lembrasse nada.

Gritei e estendi a mão para a silhueta paralisada de Melanie na porta da principia, me olhando horrorizada enquanto a armadura me carregava em direção à cidade.

“Vai ficar tudo bem”, ela dissera.

~Ψ~


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