Aquele que Perdeu a Memória escrita por Ri Naldo


Capítulo 11
Neige


Notas iniciais do capítulo

Depois de uma pausa para as festas de fim de ano (e uma dengue antes), voltamos à ativa com o primeiro capítulo do ano.

A propósito, feliz ano novo.



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SEMANAS DEPOIS

— Me passe aquele pote de farinha de trigo que tem ali. E o de açúcar também.

— Só porque eu posso andar agora você vai abusar de mim?

— Basicamente. Do que está reclamando? Estou fazendo comida para você. Deveria me agradecer. E, além do mais, se não fosse por mim, você seria um corpo em decomposição naquela casa velha.

— Não chame a casa dos meus pais de casa velha.

— Mas é mesmo.

Fiz uma careta para ela, que riu e voltou a prestar atenção na panela que estava no fogão.

O nome dela era Francine.

Sim, estávamos morando na mesma casa há algumas semanas.

Eu sei o que você está pensando, então não, não estamos juntos. Ela só me deu um lugar para ficar e me recuperar da luta que eu tive com aquela criatura que parecia o Nocturne. E, além do mais, a mãe dela não gostava de mim. Ela de algum jeito sabia que eu tinha deixado alguém importante para trás, e insistia que eu deveria voltar para ela.

Tentei explicar que essa pessoa provavelmente não queria me ver nem pintado de ouro, mas ela não entende muito bem o drama dos jovens de hoje em dia.

Bem, eu estava totalmente debilitado a ponto de ter ficado uma semana inteira só deitado na cama, gemendo de dor, então ela foi gentil comigo.

Levantei da cadeira, abri o armário e retirei de lá os dois potes que Francine pediu, mas os dois estavam vazios.

— Acho que você vai ter que ir lá no mercado — falei, batendo um pote no outro para mostrar a ela que não tinha nada dentro.

— Nessa neve, sério?

— Neve na Califórnia. Eu vivi para ver isso.

— São tempos estranhos, Peter...

Ela desligou o fogão e tampou a panela. Depois, pegou o casaco que estava pendurado na geladeira e calçou os sapatos.

— Você vem ou não?

— E a sua mãe?

— Acho que ela tem idade suficiente para ficar sozinha em casa, não é?

Dei de ombros e calcei meu tênis.

Quando ela abriu a porta, alguns palmos de neve entraram na casa, e tivemos que tirar o montinho com uma pá para poder passar. A nevasca já tinha parado, mas a neve em si ainda não tinha começado a derreter.

Andamos em silêncio por um tempo, mas ela quebrou o silêncio depois de alguns minutos. Sempre quebrava.

— É verdade o que a mamãe fala? — perguntou, sem olhar para mim.

— Sim, você vai ficar diabética se continuar comendo doce desse jeito. Não sei por que você é tão magra.

Ela levantou uma sobrancelha.

— Está bem. Sim, eu deixei uma pessoa para trás. Não sei por que você liga.

— Não ligo, mas essa pessoa deve ligar.

— Eu não teria tanta certeza se fosse você. Ela deve me odiar.

— Então você sempre é babaca assim?

— Basicamente.

— E você não se arrepende de tê-la deixado? Porque já faz algumas semanas.

— Sinto falta dela todo dia, mas a raiva é maior.

— A raiva é maior que o amor? Então nunca teve amor.

Senti uma pontada no peito, porque era verdade.

— A raiva é maior que a saudade — falei, esfregando as mãos para aquecer um pouco. — E eu não estava em muito boas condições de andar alguns quilômetros.

— Agora está.

— Agora estou indo comprar açúcar com você.

— Mamãe vai te expulsar, você sabe disso.

— Nossa, você parece ligar muito.

— Eu ligo para você. Um pouquinho de nada, mas ligo. Isso já é muito, de nada.

— Se eu fosse um doce…

— Ah, se você fosse um doce seria outra história. Provavelmente seria uma surpresa de uva.

— Uma surpresa de uva? Qual é.

— Sim, você esconde suas verdadeiras intenções embaixo da parte doce.

Franzi o cenho.

— Olha quem fala — falei, com deboche.

— É, eu seria uma surpresa de uva também.

— Ainda me deve aquela conversa sobre seu pai que vive adiando.

Ela abaixou a camisa e encarou a neve enquanto andava. Era estranho ver sinais de que ela se importava com alguma coisa. Deveria ser um assunto pesado, mas ela também tinha entrado em assuntos pesados comigo.

— Meu pai foi um bosta qualquer por aí. Ele magoou a minha mãe, e isso é pesado, cara. Ela já não era a pessoa mais feliz do mundo. Ser magoada de novo foi o cúmulo. Azar dela ter engravidado do cara. Ou sorte a sua. Talvez você estivesse morto se ela não tivesse engravidado. Escolha um lado.

— O que você quer dizer com ela não era a pessoa mais feliz do mundo?

— Não sei. Mas parece que eu tenho uma irmã mais velha. Ela não fala muito sobre isso, então eu não sei muito, e também não quero saber. Não ligo para nada que a deixe mal.

— Vai chegar o dia em que você não vai mais poder ignorar tudo ao seu redor, você sabe disso.

— E, enquanto esse dia não chega, eu como doces.

— E continua magra.

— Isso aí já não é culpa minha.

Suspirei.

— Você é chata — falei, sem olhar para ela.

— E, ainda assim, você veio comprar açúcar comigo.

Olhei para dentro do supermercado e fiquei boquiaberto com a quantidade de pessoas que estavam lá dentro. Depois, vi a grande árvore enfeitada brilhando em um dos cantos, e lembrei de um detalhe.

— É Natal.

— Muito bem observado, Detetive Peterson.

— Você veio em um supermercado no Natal só para comprar farinha de trigo e açúcar?

— Claro que não. Mamãe me deu uma lista de compras.

— Você sabe que parece uma criancinha quando fala “mamãe”, não é?

— Você sabe que eu não me importo, não é?

Era quase impossível dirigir um carrinho de compras naquele supermercado. Em qualquer direção que você olhasse estava lotado de pessoas e produtos e mais pessoas. Passávamos quase quinze minutos em cada corredor, e o único jeito de ir mais rápido era se eu levasse o carrinho na cabeça, o que cogitei fazer, mas Francine não estava afim de passar vergonha hoje.

Então, de repente, todo mundo se abaixou. Algumas pessoas ficaram de pé sem saber o que estava acontecendo, e nós fomos duas delas. Então eu percebi que haviam três caras mascarados na entrada no supermercado, apontando armas para todos e com um saco preto na mão. Os três usavam gorros de natal.

— Bom — falou um deles —, ninguém aqui é retardado, eu espero, então já sabem o que está acontecendo. Queremos que vocês tirem suas lindas carteiras e as ponham aqui nesse saco. E rápido, porque se passar de cinco minutos, um de vocês vai morrer.

Então começou o alvoroço, e as pessoas se desesperaram para chegar até o saco preto e depositar todo o dinheiro de bom grado. Mas não Francine, e não eu. Ela pegou minha mão e me puxou até a parte de trás do estabelecimento, onde ficava o frigorífico e a padaria. Abrimos a porta do frigorífico e achamos o que queríamos: uma saída. A porta dava na rua de trás, ou seja, era só virarmos uma esquina e estaríamos seguros para voltar para casa.

— Para onde você pensa que vai? — ela disse, quando eu tentei ir embora.

— Sair daqui, talvez? Caso você não tenha percebido o furto qualificado que está acontecendo na entrada.

— Mexa essa bunda mole até aqui — ela me chamou para o beco ao lado do mercado, que levava à rua da entrada.

— Por que você quereria voltar lá?

— Acho que minhas intenções são bem óbvias.

— Você quer ir atrás deles? Ficou louca? Eles têm armas.

— E você tem medo. Me pergunto qual tem mais poder.

— Eu não estou com medo, só estou sendo racional. Se você os seguir e eles descobrirem, você morre.

— Qual é, Peter, eu vivo aqui há dezesseis anos e nunca tenho a chance de participar de uma aventura, e agora que eu tenho, você quer tirá-la de mim? Vá se ferrar. Se não quiser vir, volte para casa e boa sorte tentando explicar a situação para a minha mãe.

— Você é a definição de inconsequente.

— E você é a definição de maricas, vem logo.

Andamos pelo beco, tomando cuidando para não fazer muito barulho. Quando chegamos ao fim, vimos que os assaltantes já tinham terminado de encher as sacolas, e estavam indo em direção a três motos estacionadas ao lado de uma casa velha, no outro lado da rua.

Eles montaram, ligaram o motor ao mesmo tempo e saíram em disparada.

— Ótimo. O que você pretende fazer agora? — falei.

— As ruas estão cheias de neve, idiota. Três motos daquelas vão deixar um rastro bem visível, principalmente agora que parou de nevar.

— Você vai acabar nos matando.

— Já estou morta.

Olhei para ela por um tempo.

— Era brincadeira. Vamos.

Ψ

O rastro dos pneus na neve nos levou até uma parte distante da cidade, próxima a um rio que estava começando a descongelar. Na margem desse rio havia um trailer, e, pela janela, nós vimos que era lá onde os três assaltantes estavam. Bem, as três motos paradas ao lado de uma árvore também ajudaram um pouco.

Meus dedos estavam começando a ficar roxos devido ao frio, então eu ficava esfregando as mãos o tempo todo. Francine não parecia ser afetada pelo clima.

— Então, qual o seu plano mirabolante?

— Tem um tronco de árvore caído ali — ela disse, sentando encostada na árvore mais próxima.

— E daí? Tem troncos em todo lugar.

— Ótimo, você vai precisar de um.

— Para que diabos eu…

— Socorro! — ela gritou, alto o bastante para poder ser ouvido do trailer. — Me ajudem, por favor!

Pela janela, eu vi que os três caras pararam de mexer na bolsa e foram olhar o que estava acontecendo. Antes que pudessem me ver, eu me escondi atrás da mesma árvore.

— Custava avisar? — sussurrei, com o coração batendo muito rápido.

— E que graça teria isso?

Dois caras voltaram para dentro do trailer, e um se aproximou. Eu peguei o tronco ao lado da árvore antes que ele pudesse perceber.

— Aqui, por favor! — Francine gritou de novo.

— Ei, princesinha, o que foi? — ele chegou perto e colocou a mão na bochecha dela. — Alguém te machucou?

— Não… Queria poder dizer o mesmo de você.

Saí de trás da árvore e, antes que ele pudesse entender o que estava acontecendo, bati com toda a força que eu tinha na cabeça dele.

Eu nunca acreditei nos filmes quando uma pessoa batia com força na cabeça da outra. Eu sempre achei que, se fosse comigo, eu só ficaria com uma dor de cabeça. Então claro que eu me impressionei quando o cara desmaiou na hora.

Francine se levantou e esfregou neve na bochecha.

— Nojento — ela disse.

— E agora, para os outros dois?

— Humanos são complexos, você sabe. Mas ao mesmo tempo são muito simples. Eles vão vir procurar o parceiro deles. Vou pegar um tronco também.

O trailer tinha uma escadinha que levava até a porta. Ficamos agachados atrás dela por alguns minutos, até que finalmente outro assaltante saiu de lá.

— Trevor? Cadê você, cara? Se você estiver pegando aquela garota e não tiver chamado a gente…

— Nossa — sussurrei. — Posso bater nele logo?

— Não. Deixe um pouco de diversão para mim também.

Ela saiu de trás da escada e, quando ele virou, bateu com tudo na testa dele, que cambaleou um pouco antes de cair no chão, inconsciente.

— Agora só falta um — falei.

Levantei com cuidado e olhei pela janela sem chamar atenção, mas o outro não estava lá.

— Ele não está aqui dentro.

— Ótimo — ela disse. — Deve ter ido mijar ou algo assim. Vamos pegar o saco preto e dar o fora.

Aproveitamos que a porta do trailer estava aberta e entramos.

O lugar era nojento. Tinha sujeira em todo lugar, e nenhum dos três parecia ligar muito para organização. As paredes chegavam a ter manchas pretas.

— Ali, em cima da mesa — falei, baixo.

Francine foi até a mesa, juntou as carteiras e o dinheiro que estava nela e jogou dentro do saco que estava embaixo. Depois, pôs o saco nas costas e foi até a porta, onde eu estava, mas o terceiro assaltante pareceu, apontando a arma para a cabeça dela.

— Nem mais um passo. E se você se mexer também, ela morre. Ponha o saco de volta na mesa.

— As pessoas do supermercado precisam disso mais do que vocês — Francine disse, insensível para o revólver calibre 38 na têmpora dela.

— Ah, é? E como vocês sabem? Quem garante que não são só filhinhos de papai?

— Cara, mesmo se fossem, você não tem o direito de roubá-los. É errado — falei.

— Olhe bem para mim. Era isso que você esperava?

E não era mesmo. O cara era loiro, tinha olhos verdes, barba rala e rosto redondo. Era o esteriótipo de um executivo politicamente correto, não um assaltante de supermercado.

— Você esperava ver o que embaixo da máscara? — ele continuou. — Um negro?

— Não necessariamente, mas…

— Mas nada. Eu herdei isso do meu pai, mas a minha mãe era negra. Você não tem ideia de como era andar com ela na rua. As pessoas olhavam estranho para nós, e alguns até vinham para mim e perguntavam se eu precisava de ajuda com alguma coisa. Tem ideia do que é isso? Tem ideia de como eu odeio a sociedade depois de ver o que a minha mãe sofreu só porque a pele dela é mais escura do que a dos outros? Eu acho que não. Você não tem o direito de me dizer o que é certo e o que é errado, porque nesse mundo só tem o errado.

— Você não pode sair por aí roubando todo mundo só porque uma minoria ainda é racista. Nem todo mundo é igual.

— Todo mundo é igual sim! — ele gritou. Francine começou a suar. — São todos um monte de merdas, agora coloca esse maldito saco em cima da mesa antes que eu…

Ela bateu a parte de trás da cabeça na boca dele e puxou o braço para baixo, tirando a arma da cabeça dela. Mas o dedo dele ainda estava no gatilho, e o tiro foi disparado. Ouvi Francine gritar, e corri para cima do cara.

Ele tentou apontar a arma para mim, mas eu usei o tronco da árvore para arrancá-la da mão dele. Depois, bati na cabeça dele, como fiz com os outros dois, e fiquei aliviado quando os olhos dele fecharam.

— Você está bem? — perguntei.

— Melhor impossível — ela respondeu, ofegante.

— Onde foi o tiro?

Ela tirou a mão para mostrar a ferida na parte de baixo do braço. Tinha um buraco de entrada e de saída, então a bala não estava lá dentro, o que era bom.

— A bala já saiu. Só precisa fazer um curativo agora.

— Dói muito — ela fechava os olhos e apertava o cenho para suportar a dor.

— Eu imagino.

Peguei o saco no chão e uma camisa que estava perto da pia. Peguei o braço dela para enrolar a camisa, mas ela me deu um tapa.

— Eu não vou tocar nisso.

— E eu não vou rasgar a minha camisa. É uma das poucas que eu tenho. Fique tranquila, não vai pegar AIDS.

Ela sorriu.

Saímos do trailer e fomos para a rua. Já era noite, e nenhum carro estava passando por lá, então aproveitamos que a neve não iria derreter tão cedo e seguimos a trilha dos pneus de volta para o supermercado, e então fomos para a casa dela.

Ela piscou o olho para mim enquanto a mãe dela gritava conosco sobre responsabilidade e inconsequência.

Mas, senhora, sua filha é a definição de inconsequente.

~Ψ~


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