Tudo começou com o AI 5 escrita por MaiDragneel


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

É uma história triste. Mas a Ditadura Militar no Brasil não foi feliz.



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Brasil 1969

Uma garota corria por uma viela escura na madrugada em Belo Horizonte. Seus longos cabelos negros haviam soltado-se do coque bem feito que outrora fora seu penteado, o vestido azul estava rasgado devido às inúmeras vezes que caiu na ânsia de fugir para bem longe e não mais ser vista. Sangue seco cobria seus cotovelos, joelhos e mãos, oriundo das quedas.

Caiu novamente, desta vez, não se dando o trabalho de levantar-se. Chorando intensamente lembrou-se dos motivos que a levaram a fugir correndo de casa. Seu pai, capitão do exército, homem respeitado, havia recebido a visita de um colega de trabalho e este chegou parabenizando-o por dar uma lição nos rapazes que haviam desrespeitado o novo Ato Institucional do presidente. Ela sabia exatamente o que significava “dar uma lição”, baixou os olhos e permaneceu em silêncio pelas famílias em luto, mas sua expressão mesclou-se em horror e desespero quando ouviu a frase seguinte.

--- Mas capitão, fiquei realmente surpreso por alguém tão influênte quanto o senhor Felipe estar no meio dos rebeldes. Ele não estava de casamento marcado com sua Elizabeth?

Seu pavor foi crescendo à medida que a cascata de lágrimas escorria por suas bochechas. Ajoelhou-se aos pés de seu pai e segurou suas mãos, fazendo com que olhasse em seus olhos.

--- Pai! Diga-me que não deu lição alguma em Felipe, por favor! Pelo amor que tem por mim, diga!

--- Me desculpe, querida. Mas ele estava junto leis são feitas para serem seguidas.

--- Não é verdade! Ele não estava!

Viu-se socando o peito de seu pai, mesmo faltando-lhe forças. Olhou ao redor, tanto seu pai quanto o amigo dele olhavam-na com pena. Sua mãe mirava o chão.

Foi nesse momento que correu, perdendo os sapatos no caminho.

Voltou ao presente, ao que parecia havia dormido, e pelo que ouvia não estava mais só.

--- Elizabeth? Beth! Meu Deus, que será que aconteceu?!

Ela conhecia essa voz. Lhe trazia a lembrança de um balanço solitário, um sorriso e o sol brilhando sobre sua cabeça. Seria... Daniel? Havia meses que não via seu melhor amigo de infância, temeu que estivesse morto, chorou noites a fio por sua causa. Mas sim, era sua voz que ouvia agora. Levantou-se rapidamente ficando zonza no processo.

--- Dan! É você?

--- Beth! Que está fazendo?

--- Dan!

Ela pula nos braços do belo homem de porte atlético e cabelos negros um tanto grandes jogados para trás. Dan tinha a aparência de aventureiro. E ela adorava sua aparência.

--- Beth! Que está fazendo? Suas roupas, elas... Oh, meu Deus, você está sangrando! Seu joelhos, suas mãos... Beth o que aconteceu? Me responda!

--- Dan... Eu senti tanto a sua falta. Você sumiu, achei que estivesse morto! Oh céus! Morto! E agora meu pai matou meu noivo! O que vou fazer! Me tire daqui Dan! Me tire daqui!

--- Olha, você está muito nervosa, vou lhe levar até sua casa e então conversamos calmamente, tudo bem?

--- Não! Minha casa não. Por favor.

--- Tudo bem, então onde você quer ir?

--- Para qualquer outro lugar, só me tire daqui.

--- Venha, meu carro está logo ali.

Ele conduziu-a ao carro, não acreditando no que estava acontecendo. Estava voltando para sua casa quando a viu na rua jogada e maltratada. Tinha agora ao seu lado uma garota inconsolável com as vestes rasgadas e sujas de seu próprio sangue, o cabelo bagunçado com montes de grampos em lugares diferentes e a face suja de poeira e lágrimas, as quais ainda escorriam.

--- Beth, se importa se eu levá-la para minha casa?

--- Não.

A viagem seguiu em silêncio, cortado apenas respiração de ambos. A dela acelerada pelo choro e a dele pelo desespero e a ansiedade de vê-la segura. Chegaram então em uma casa simples mas bem bonita na qual entraram. Ele a entregou uma toalha e mostrou-lhe um quarto e o banheiro, deu-lhe roupas limpas que outrora fora de sua falecida mãe e uma escova de cabelos. Quando ela saiu do banheiro já vestida e se dirigiu ao quarto penteando os cabelos, ele se encontrava sentado na cama, aguardando pacientemente. Ela colocou a escova sobre a cômoda e sentou-se ao seu lado.

--- Obrigada.

--- Que aconteceu Beth? Você disse de um noivo ao qual eu não sabia da existencia e que seu pai o matou. Seu vestido está irreparavelmente estragado e está toda machucada. A Elizabeth que eu deixei na porta de casa a seis meses sorria e dizia estar feliz mesmo com tudo o que acontecia ao nosso redor e eu a admirava por isso. O que causou essas lágrimas?

--- Quando você parou de ir me ver a seis meses, eu achei que estivesse morto com suas idéias revolucionárias e tudo mais. Fui até sua antiga casa e me disseram que lá não morava mais ninguém, que o proprietário havia apenas sumido. Então pensei... Mais um desaparecido. Pensei, já não é ruim o suficiente que estes castigos terríveis e inumanos do exército e agora as pessoas estão desaparecendo de suas casas como se fosse mágica. Pensei que estivésse morto. E eu chorei, chorei por dias. Estava abatida na faculdade. Medicina já não era tão interessante quanto antes.

Ela fez uma pausa. O suficiente para ouvi-lo dizer “Desculpe”.

--- Um garoto do último período de faculdade percebeu que eu estava péssima e me confortou, ele ia conversar comigo todos os dias e eu adorava sua presença. Seu nome era Felipe. Nós acabamos nos envolvendo e a pouco mais de três meses ele pediu a minha mão. Ele era tão atencioso, tão alegre e brincalhão, me lembrava a você, Daniel. Eu senti que poderia ser feliz novamente se ele estivesse por perto. No último mês ele estava animado e tinha as mesma idéia que você em mente, democracia. Temi que ele desaparecesse também. Meus raios de sol se apagando, um a um, até que não sobrasse mais nada.

“Hoje um colega do exército foi visitar meu pai, ele disse que meu pai fez muito bem em dar uma lição nos rapazes que desrespeitaram o novo Ato Institucional do presidente. Que estava surpreso que Felipe estivésse envolvido já que estávamos de casamento marcado. Eu perguntei se ele havia dado alguma lição em Felipe e ouvi que... Leis foram feitas para serem cumpridas.”

“Então corri o máximo que pude, caí algumas vezes, pisei no vestido e acabei rasgando-o. Fiquei tão desesperada. Na minha casa, a frase “dar uma lição” tem um significado bem diferente do habitual, como você já sabe. Dar uma lição, é torturar e matar. Destruir famílias. Quebrar corações. Enterrar histórias. Achei que não teria mais ninguém para me entender, me abraçar e dizer que tudo ficaria bem.”

Quando ela terminou olhou nos olhos do rapaz e este viu que nenhuma lágrima desceria mais. A fonte havia secado.

--- Me desculpe Beth. Eu achei que me afastando de você, você ficaria segura. Atualmente estou cada vez mais envolvido com o que o exército chama de ações rebeldes. Eu quero um futuro sem dor para meus familiares e amigos. Para todos nesse país. Eu descobri que os desaparecimentos são obra do exército. O desaparecimento da minha mãe, é obra do exército. Estava andando com alguns rebeldes e eles me mostraram as coisas horríveis que antes, mesmo com meus olhos inconformados e minhas idéias de mudanças, eu não enxergava. Como pode ver eu até mesmo me mudei.

Ela o puxou para um forte abraço e este deixou-se ser consolado por aquela que ele devia consolar.

--- Me deixe ajudar Dan.

--- O quê?

--- Me deixe ajudar. Eu não quero que mais ninguém sinta a dor que eu senti.

--- Você vai se machucar Beth. Não posso permitir.

--- Não fique tentando me proteger!

--- Tudo bem, só não... Se envolva demais. Eu não aguentaria perder você.

--- Você me deixou.

--- Foi diferente, eu costumava segui-la até sua casa da faculdade e da sua casa até a faculdade. Só para ver se estava viva e saudável.

--- Não muda a situação.

--- Beth. Você amava Felipe?

--- Se eu... O amava?

Ele assentiu e ela fez uma longa pausa pensando em seus sentimentos.

--- Eu o amava, mas nunca estive apaixonada por ele. Mas eu tentava. Tentava apaixonar-me e retribuir todo carinho e amor que ele me dava. Era aquele que me ajudava a não desmoronar, que me quis mesmo chorando por outro.

Ele sorriu e colocou a mão no rosto da garota que abriu um sorriso com o toque.

--- Você se lembra que antes de sumir, eu disse que tinha algo muito importante para dizer e que tinha de contar-lhe mesmo que me custasse a vida?

--- E como esqueceria? Fiquei dias imaginando se havia realmente custado-lhe a vida.

--- Eu gostaria de dizer-lhe, que lhe amo desde os meus doze anos. E que sou loucamente e incondicionalmente apaixonado por você Beth. Sei que é cedo pra você que acabou de perder o noivo mas eu realmen-

Foi interrompido por um beijo, longo e incrivelmente apaixonado. Quando finalmente se separaram ela lhe sorriu.

--- Eu espero por essas palavras desde os meus quinze anos, quando me tornei mulher.

Ele então puxou-a para mais um beijo e o casal deixou-se levar na cama macia de penas.

*

No dia seguinte eles acordam cedo e se dirigem para uma das bases do exército em Belo Horizonte. Sobem em uma árvore e com um binóculo observam a movimentação dos militares. Havia algum evento, o presidente estava lá. Costa e Silva e olhava a todos com autoridade e parecia aguardar algo. Logo ele entrou no forte e assim que a porta se fechou um grupo com oito estudantes que o casal reconheceu ser da engenharia apareceu escoltado por militares. Foram obrigados a ajoelharem-se próximo à parede manchada de vermelho, era uma execução. Um a um foram morrendo, a cada estudante que morria Daniel riscava seus nomes da lista de desaparecidos que tinha. Elizabeth viu seu pai, ele dirigia um carro no qual estavam amarrados alguns civis que gritavam por socorro, um deles era da sua sala.

--- Não reconheço o garoto de blusa azul no carro. Droga!

--- Ele é Lucas Faria. Da minha sala. Chegou a Belo Horizonte a poucos dias vindo do Rio de Janeiro.

--- Obrigada.

--- Espero sinceramente não reconhecer mais ninguém.

--- Eu também Beth, eu também. Mas infelizmente nossa parte é descobrir o fim daqueles que desaparecem.

--- Thomás de Melo despareceu de dentro da faculdade na semana passada.

--- Foi morto a dois dias. Enterraram-no até o pescoço e passaram com o carro por sobre sua cabeça. Foi uma cena horrível, ele deve ter feito algo bem ruim para matarem-no dessa maneira.

Elizabeth balançou a cabeça.

--- Ele disse em alto e bom som na sala de aula que o presidente era um grande estúpido. Que livraria o país de idiotas como ele.

--- Ele devia ter sido menos imprudente. Resistir é diferente de ser suicidar-se.

--- É suicída dizer a verdade?

--- No nosso país, atualmente, é sim.

--- Quantas centenas de pessoas será que foram mortas pela veríssidade?

--- Algumas centenas, querida. Algumas centenas.

--- Estão olhando para cá, Dan.

--- Quê?

--- Estão olhando para cá!

--- Não se mova. Vamos fingir que estamos apenas namorando aqui.

--- Oi?

--- Me beije. Anda!

Ela beijou-o e quando finalmente se separaram olharam para o forte. Os militares já não estavam mais lá.

--- Estão vindo, esconda os binóculos Beth!

Ela esconde os binóculos em um buraco no tronco e eles veem militares correndo ao encontro deles e se beijam.

--- Lugar estranho para namorar. --- Diz um militar, estava claramente tentando olhar por baixo das saias de Elizabeth.

Ela pula para o chão e Daniel pula logo atrás.

--- Perdão. Estávamos apenas brincando. Atrapalhamos algo senhor?

--- Não. Só estranhamos o local.

Ela sorriu e os militares voltaram aos seus carros, em direção ao forte.

Daniel subiu rapidamente na árvore e pegou os binóculos. Correram para a UFMG, onde entraram no Quartel General da resistencia.

--- Ei, ei! O que é isso? --- falou brincando um garoto loiro de olhos claros.

--- Foi mal! Estávamos fugindo.

--- Avistaram você Daniel? Que droga! Precisamos de um novo local para espiar, eles sempre descobrem e... Quem é esta? Espere, é Elizabeth Souza?

--- Sim Matheus. Minha namorada, não ponha os olhos.

--- Cara, o pai dela é militar!

--- Eu sei.

--- E não se preocupa?

--- Não mais.

--- Digamos, que ele clicou no botão fodas da vida. --- Elizabeth entrou na conversa.

--- Claro, sei realmente o tipo de foda.

--- Não envergonhe a moça Matheus! --- Uma mulher de longos cabelos ruivos entrava.

--- Não se preocupe Juju, eu só tenho olhos para você. --- Isso a fez revirar os olhos.

--- Júlia, descobriram a árvore.

--- Como escaparam?

--- Fingimos que estávamos apenas namorando ali, o presidente está no forte.

--- Sabemos. Ficará somente até domingo então precisamos pensar em como proceder.

--- Acha realmente que um ataque ao presidente é cabível em nossa atual situação.

--- Por que não seria?

--- Júlia! Estamos com diversas baixas, já não tem quase ninguém vivo para contar a história. E se seguirmos com esse plano não terá.

--- Nada vai acontecer conosco Daniel! Temos a inteligencia ao nosso lado!

--- Só inteligencia não basta para vencer armas de fogo!

--- Eles mataram o Gilberto a mando dele!

--- Aja menos com o coração e mais com a cabeça! É uma missão suicida!

Ela pôs-se a chorar e Elizabeth acalmou-a do jeito que pôde.

--- Dan. Dê um tempo para ela. --- Pediu Matheus. --- O irmão dela desapareceu a apenas uma semana e sabemos que está morto a três dias. Sumiu do CEFET como se fosse fumaça. Provavelmente por que ele estava defendendo a irmã. Ela se sente culpada.

--- Eu sei Matheus. Eu sei. E é por isso que preciso tirar essa idéia suicída da cabeça dela. Gilberto gostaria de vê-la viva e feliz.

--- E eu gostaria, --- Começou Júlia. --- que vocês não falassem de mim como se eu não estivesse aqui.

--- Isso foi mal educado meninos. --- complementou Elizabeth.

Daniel respirou fundo e afundou-se na cadeira mais próxima.

--- Aconteceu algo novo? --- perguntou Daniel.

--- Sim, infelizmente. --- respondeu Matheus.

Elizabeth e Júlia chegaram mais perto para ouvir também. E Matheus continuou.

--- Só hoje de manhã vinte e seis civis desapareceram de suas casas deixando família e filhos, Mariana e Roberto parecem ter sido pegos para interrogatório e o Lúcio foi encontrado morto próximo a casa dele. Estão dizendo que ele estava envolvido com drogas e essa foi a causa da morte, mas testemunhas oculares disseram que ele tinha um tiro no peito quando o encontraram. Típico de militar novo. Eles não tem nenhuma noção de como esconder corpos, estão anestesiados pelo poder e obviamente vamos ter problemas com eles. Foram recrutados mais cento e vinte ontem e aposto dez mil pratas que esse militar tinha algo pessoal contra o Lúcio e não sabia que ele estava sendo investigado. Ele o matou e espancou, já que disseram haver lesões no rosto dele. Não fez interrogatório algum. Foi pessoal.

--- Quantos estudantes daqui deixaram os estudos para se alistar?

--- Entendo seu raciocínio Elizabeth. Muito bom, vou verificar e ver os históricos. Talvez encontremos o assassino no Lúcio ainda hoje.

--- Desculpem, mas não entendi o raciocínio.

--- Júlia, se esse novo militar tem algum problema com Lúcio é muito provável que estudasse aqui, então se verificarmos na lista de pessoas que deixaram os estudos para o alistamento alguém que tenha algum tipo relação com o Lúcio, achamos o assassino.

--- Obrigada, Elizabeth. Faz sentido, realmente.

--- Hoje Elizabeth reconheceu um novato entre os que estavam sendo torturados até a morte pelo exército, eu não tinha o nome dele na lista.

--- Lucas Faria, quinto período de medicina, veio do Rio de Janeiro a poucos dias para terminar o curso aqui, ao que parece ele estava apenas fugindo. Era da minha turma.

--- Tudo bem, terei que puxar a ficha dos novatos com mais frequência pelo visto. Não quero gente sumindo sem que saibamos. Dan, onde está a lista de pessoas mortas hoje pela manhã?

Daniel pega um papel e anota os nomes para Matheus, entregando a lista em seguida.

--- Nossa! Tudo isso? Bom, hoje estamos fazendo mais preogresso do que fizemos na última semana. Vamos continuar monitorando por enquanto, acho que até o fim da tarde temos o assassino de Lúcio nas mãos. Meninas por favor, estão vendo aquelas rosas ali no armário, entreguem uma em cada endereço que tiver na lista que eu vou passar agora para vocês. É o sinal de luto que podemos mostrar às famílias que perderam seus parentes hoje.

--- Elizabeth não pode andar por aí na cara de pau, então sejam discretas. --- Diz Daniel.

--- Por que não?

--- Por que fugi de casa, Júlia.

--- O pai dela é militar. --- diz Matheus.

--- Compreeensível. --- conclui Júlia. --- Vamos?

--- Claro.

Elizabeth dá um beijo em Daniel e sai com Júlia, levando as rosas e a lista. Matheus aproveita e se aproxima de Daniel.

--- Não quis dizer na frente dela para que não ficasse abalada. O pai está atrás dela e todos os militares estão de olho. Espalharam que foi raptada por rebeldes e provavelmente estaríam espancando-a. O homem enlouqueceu, a filha era preciosa. A mãe está despedaçada já que ela não voltou para casa, teme que tenham usado-a para vingança contra seu pai. Proteja-a Dan! Se ele a pegar vai trancá-la em um quarto e matar você. Não a deixe escapar garanhão. Fujam!

*

Mais tarde, já em casa Daniel contou à Elizabeth das palavras de Matheus. Ela apiedou-se da mãe e resolveu fazer-lhe uma visita e explicar tudo, escondida de Daniel, é claro. Quando o amado dormiu ela pulou a janela como uma gata e esgueirou-se pelas ruas até sua casa sem que ninguém a visse. Aproximou-se da janela do quarto de sua mãe. Eles estavam conversando.

--- Não pensei que ela reagiria tão mal. --- Era a voz de seu pai.

--- Você não deveria ter dado lição alguma em Felipe! Que arranjasse alguma desculpa e o livrasse. Poderia até mesmo forjar uma fuga! Agora Beth sumiu e não tenho mais a minha menina. --- a voz da mãe era falha e chorosa, ela estava mal.

--- Eu... Eu vou tomar banho para dormir, amanhã continuarei as buscas. Preciso acordar cedo.

Ouviu a porta abrir e depois fechar. Era sua deixa. Esgueirou-se pela janela. A mãe quando a viu quase gritou, mas ela tampou-lhe os lábios com um mão e pediu silêncio com a outra. Girou a chave na porta e sentou-se próxima a cabeça da mãe.

--- Está tudo bem mamãe.

--- Minha filha. Onde você foi? Fiquei tão preocupada que alguém fizesse algo com você... E está machucada!

Ela olhava dos cotovelos aos joelhos de Elizabeth.

--- Não se preocupe. Eu apenas caí algumas vezes quando corri. Infelizmente perdi o vestido, rasguei na correria, você gostava dele não é?

--- Onde você estava Beth, não mude de assunto.

--- Eu fugi e um amigo me encontrou, estou na casa dele e não direi onde é. Eu não quero voltar mais para cá mamãe. Vou ficar por lá, protegida, onde não tenho que olhar para o meu pai e me lembrar que é um assassino. Hoje eu estava vendo o que eles fazem no forte... São apenas assassinos e vilões, tão cruéis quanto qualquer monstro. Inumanos. Gente de bem foi abatida lá.

--- Beth querida, você sabe que é assim, não podemos mudar as leis, apenas amar aqueles que são obrigados a cumpri-las mesmo sem querer.

--- Eu não vou ficar. Na verdade preciso ir, deixei meu amado dormindo e quero-o junto a mim.

--- Não ia se casar com Felipe?

--- Nunca estive apaixonada por ele, sempre fui apaixonada por outra pessoa, e a senhora sabe disso.

--- Daniel? Mas ele não havia sumido?

--- Escondido nos confins do inferno, juntamente comigo. Por favor não conte ao papai que estive aqui. Esse é um segredo nosso. Tudo bem?

--- Sim querida.

--- Tchau mamãe.

--- Tchau Beth.

Pulou novamente a janela, bem em tempo se querem saber, o pai assustou-se com a porta que ela esquecera de destrancar e a mãe correu para fazê-lo dizendo que havia trancado por medo de que entrassem na casa durante o banho do esposo. Correu de volta à casa, à Daniel. Deitou-se com ele e este a envolveu com os braços fortes.

*

Os dias seguintes ocorreram com tudo dando certo, acharam o assassino de Lúcio, Mariana e Roberto conseguiram de algum jeito fugir do cativeiro em que estavam e encontravam-se atualmente escondidos no quartel general rebelde da UFMG, Elizabeth cuidava deles o melhor que podia apenas com cinco períodos de medicina e Daniel que havia feito apenas quatro fazia o possível para auxilia-la. Mariana tinha uma infecção que não melhorava e Elizabeth já não sabia mais o que fazer. Quando a garota finalmente dormiu e parou de gemer ela sentou no pequeno sofá da sala com as mãos na cabeça tentando pensar em como a ajudar, como salvar a vida da garota. Ela chamava por Lúcio mas este estava morto. Ao que parecia ambos namoravam. A garota tinha sinais de estupro, e ficaram pensando se talvez o militar não o tivesse matado por causa dela. Puxaram novamente a ficha do rapaz e realmente, Bruno de Freitas, o militar, e Mariana eram vizinhos desde pequenos e namoraram por dois anos para então a garota terminar e seis meses depois começar a namorar Lúcio.

Após alguns dias Mariana veio a falecer, Elizabeth culpou-se por não saber o que fazer, não ter corrido atrás o suficiente.

--- Beth, está se culpando a toa. Você não dorme a três dias tentando salvar Mariana, não comeu quase nada durante esse tempo. Vai acabar se matando assim. Vamos, vá para casa, coma e descanse. Não queremos perder você também.

--- Obrigada Jú. Eu vou tentar. Júlia... Eu sinto muito por não ter conseguido salvar a sua amiga.

--- Eu sei que sente Beth, eu sei.

Elizabeth saiu com Daniel para descansar, mas os dias seguintes ainda exigiram dois dois uma cota paciência quase inesgotavel. Os nervos de todos estavam a flor da pele. Acontecia tanta coisa ao mesmo tempo que eles nem repararam que estava, sendo seguidos e no dia antes da tragédia acreditavam veementemente que tudo daria certo dali em diante, quando acordassem no dia seguinte ele seria produtivo e em pouco tempo a ditadura na qual viviam não existiria mais.

Como estavam enganados.

*

Alguém batia na porta, a esmurrava na verdade. O casal acorda assustado e quando se preparam para sair da cama a porta do quarto se escancara. Haviam arrombado a casa e agora o exército se encontrava naquele quarto, com ambos nus na cama. O pai da garota chega na frente dos outros e vê a cena, sua face se avermelha e ele pega a arma apontando para Daniel.

--- Filho da puta! --- Grita o pai.

Ouve-se um tiro, mas garota havia entrado na frente da bala e agora seu seio esquerdo sangrava. Ela caiu nos braços de Daniel e permaneceu imóvel, um filete de sangue escorria de sua boca para o peito do amado. Daniel fica em choque, passa a mão no seio da amada e olha o sangue como se nunca tivesse visto nada parecido. Ele olha para o pai da garota, mas é a última coisa que vê antes de ser atingido na cabeça. O casal apaixonado morreu, um nos braços do outro.

Dias depois, ninguém mais parecia lembrar-se que o casal Souza tinha uma filha ou que na simples casa próxima à UFMG houve um assassinato. Mas os chamados rebeldes lembravam-se. Júlia Prado, Matheus Carvalho e Roberto Rocha lembravam-se. E o casal Elizabeth Souza e Daniel Fontes ficou imortalizado no coração da resistência.


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Notas finais do capítulo

Nunca escrevi desse jeito, espero que tenha ficado bom.



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