Deuses Entre Nós escrita por Lirah Avicus


Capítulo 5
Um Homem Sem Fé




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“A fé sem obras é morta.”

Assim havia lido o padre, com sua voz potente e dicção perfeita, no alto do púlpito para um grupo de cerca de 30 fiéis. Com seu livro sagrado nas mãos ossudas, uma Bíblia grande versão Rei Jaime, ele palestrava sobre a importância da fé. Dizia que esta era uma qualidade imprescindível para quem quisesse agradar ao Senhor, e que era preciso não apenas possuí-la, mas demonstrá-la aos olhos dos homens e de Deus. Não só preciso, indispensável. Sem fé, sem salvação. Esta era a regra.

“Protesto!” exclamou Franklin “Foggy” Nelson em sua mente. Força do hábito. Ele se acostumara a se contrapor a qualquer declaração que não fosse sua. Estava distraído com uma pequena borboleta rondando o chapéu florido de uma das fiéis, torcendo para que ela pousasse de uma vez, quando ouviu as últimas palavras do padre, e sua afirmação sobre a fé.

“A fé sem obras é morta.”

A igreja era ampla, porém, naquele dia, um tanto vazia. Poucos fiéis, poucos ouvintes, o que não tirou a animação do padre em prosseguir com seu discurso. Lembrava um advogado de acusação que sabia que iria vencer seu caso e mandar o réu para a cadeia. No caso do padre, para o inferno.

Foggy remexeu-se na cadeira. Afrouxou um pouco sua gravata, tal começara a enforcá-lo. Ouvira o padre, e refletiu. Sabia que aquilo poderia estar correto. Afinal, fazia sentido. Apenas dizer que se tinha fé não significava nada. Eram necessárias provas palpáveis e confiáveis para que a afirmação fosse abalizada. Provas circunstanciais. Era assim no tribunal... Pelo visto era assim também na igreja...

Ele ergueu as sobrancelhas, quase convencido. Imaginou o tribunal celestial. Imaginou Deus sentado na cadeira do juiz, e talvez um anjo ao lado agindo como meirinho. Outros anjos mais musculosos seriam os esbirros. Mas no meio, Deus. O Juiz Supremo. Daí imaginou o padre como advogado de acusação. E se imaginou no banco dos réus. Engoliu em seco. Estaria perdido. Pecara demais para ter uma absolvição. E teria de passar o resto da eternidade sendo tostado no fogo ardente.

Foggy admirou a oratória do padre. Preciso, elucidativo, certo do que dizia. Daria um ótimo advogado. Ele mesmo sendo advogado, não iria querer aquele padre no lado oposto ao seu numa sala de julgamento. Ele era extremamente convincente, tanto que os 30 fiéis tinham seus olhos colados no servo do Senhor, absorvendo cada palavra e balançando a cabeça em concordância.

O padre disse mais. Disse que uma pessoa sem fé é absolutamente inaceitável aos olhos de Deus. Para obter sua aprovação, esta pessoa tinha de crer que ele existia, e estar decidida a servi-lo sem reservas. Do contrário, seria queimada.

“Sem fé é impossível agradar a Deus.”

Foggy cruzou os braços, pensativo. Permaneceu pensativo pelo resto do sermão. Pensou tanto que esqueceu-se de levantar no momento do hino. Ergueu-se atrasado, limpando a garganta, começando a cantar e emendando-se como podia. Cantava com os lábios, mas xingava mentalmente todos que o olharam com reprovação no momento em que se levantou. Mas mesmo no meio da cantoria não deixou de pensar. E saiu da igreja pensando, sua mente absorta em raciocínios profundos. Saíra sem cumprimentar ninguém.

Por que a fé era tão importante? Muita gente não acreditava em fatos provados, mas isso não tornava estes fatos mentiras. Só por que alguém não acreditava em algo não queria dizer que aquilo não existia. Existia muita gente ignorante. Mas elas não mudavam verdades fundamentais. Não era assim também no caso do Todo Poderoso?

Ele colocou as mãos no bolso, caminhando pela calçada a passos calmos. Não levara Bíblia, o padre já tinha uma, e isso já estava de bom tamanho. Olhou a rua, as árvores, as residências.

Afinal o que era fé? Seria uma qualidade? Um sentimento? Você já nasce com ela ou precisa desenvolvê-la? Será que pode perdê-la?

Foggy respondeu a última pergunta. Mentalmente, é claro. E a resposta o fez andar mais devagar.

Aluno de direito da Universidade de Columbia, brilhante na arte de advogar, adorava permitir que o lado oposto apresentasse tudo o que tinha, para só depois colocar em xeque algo que o faria vencer o caso. Adorava entradas e saídas espetaculares. Adorava estar num tribunal.

Sua mente viajou para o passado. Passou por flashes de sua infância, sua adolescência não muito agradável, seus tempos de faculdade, quando conheceu seu melhor amigo...

Ele baixou a cabeça. Chutou uma pedrinha, que saiu quicando para o meio da rua. Cerrou os olhos. Por que as coisas mudavam tão rapidamente? Parecia que havia sido apenas ontem que tudo estava bem, e de repente não estava mais. Tudo era normal, daí não era mais. Foggy jamais entendera o porquê. Queria viver tudo de novo e talvez entender, talvez mudar e fazer tudo melhor. Mas ele não tinha uma máquina do tempo nem nada parecido. Talvez algum daqueles retardados de capa e cueca para fora da calça pudessem conseguir algo do tipo, levando-se em conta o que já haviam feito anteriormente. Mas ele não. Ele era uma pessoa normal que só conseguia prosseguir em frente no tempo.

Atravessou a rua, chegando a uma área mais movimentada e menos residencial. Hell’ s Kitchen. Seu bairro. Sua casa. Haviam carros buzinando nos semáforos. Pessoas caminhando apressadas na calçada. Pássaros nos fios elétricos. Vendedores ambulantes em seus quiosques. Um louco do outro lado da rua com uma placa que dizia “O Fim Está Próximo”.

Foggy observou-o alguns instantes. O homem andava para lá e para cá na calçada oposta, vestindo um casaco marrom e luvas que deixavam os dedos para fora. Era ruivo, e tinha um ferimento feio na maçã esquerda do rosto. Ele parecia ter fé no que anunciava. E estava tentando avisar as pessoas. Isso poderia ser considerado uma obra.

Uma placa surgiu ante seus olhos. Não uma placa sobre um fim apocalíptico, mas uma placa pequena, numa porta, anunciando uma prestação de serviços.

Nelson & Murdock.

Foggy entrou por aquela porta. Subiu as escadas, amaldiçoou a falta de elevadores e chegou ao escritório. Seu escritório. Seu e de seu melhor amigo.

Á sua frente, muita tralha antiga comprada num leilão, uma mesa e atrás desta mesa uma jovem loira que assistia TV. Na TV, notícias de última hora sobre a iminente posse de Tony Stark como senador.

—Como puderam votar neste babaca? — ele resmungou.

—Ei Foggy! — exclamou Karen Page, se levantando. — Não se preocupe, ele não será nem melhor nem pior que todo o resto.

—Tem certeza? Ele é um deles.

—Um deles?

—Sim, um deles. Um daqueles palhaços que destroem a cidade a cada dois meses. Quebram tudo e depois recebem a chave da cidade pela boa ação. Eu deveria receber essa maldita chave, afinal sou eu que defendo todos os pobres coitados que tem suas casas destruídas e a seguradora não quer pagar. Eu deveria ter uma chave, aliás, várias chaves... Centenas de chaves... Um chaveiro.

—Se serve de consolo, eu lhe daria uma chave.

—Seria do seu apartamento? — ele abre um sorrisinho malicioso.

—Não, — ela ri. — da cidade, por que ela é gigante e não abre nada.

—É algo simbólico, não tem que abrir nada! É um reconhecimento, e eu mereço muito mais do que aquelas aberrações voadoras. E agora uma aberração é senador. — ele abre os braços. — Parabéns, Nova York. Você me surpreende mais uma vez. Alguma ligação?

—Hmm, ainda não.

Foggy liga a impressora, e dá um tapa nela quando esta não acendeu a luz.

—Claro que não, por que alguém ligaria para cá? E o Matt?

—Passou por aqui, disse que veria um possível cliente num café próximo. Ele queria te esperar, mas você demorou.

Foggy se ajoelha, estudando a impressora por todos os ângulos.

—Eu estava na igreja...

Karen levanta uma sobrancelha.

—Isso não faz seu tipo.

—Eu sei, mas nunca se sabe o que pode acontecer... — ele cutuca a máquina com uma caneta. — Talvez aquele retardado ruivo esteja certo, e não quero ser destruído.

—Fala daquele cara que anda por aí com uma placa dizendo que o fim está perto?

—Esse mesmo.

—Ele é doido.

—Eu sei. — ele se ergue num suspiro. — Mas não custa prevenir. Você pode fazer esta senhora idosa funcionar? Eu preciso imprimir alguns documentos.

—Claro. — ela vai até a impressora.

—Eu ainda quero te esganar por você ter comprado toda essa tralha.

—Se fosse comprar equipamento novo ia custar muito mais do que eu paguei.

—Sim, mas pelo menos ia funcionar.

Karen bate com força na máquina, que começa a chiar e acende as luzes.

—Viu? Está funcionando!

—Imitar um gato não é o mesmo que funcionar.

Karen revira os olhos, voltando a sua mesa.

—Não seja exigente, cale a boca e imprima seus documentos.

—Isso foi indelicado vindo de uma secretária.

—Ei Matt! — Foggy vira-se para ele. — Como foi no café?

—Não foi. Não veio ninguém. — Matt Murdock colocara sua bengala no canto esquerdo da parede, como sempre fazia, e agora caminhara até a mesa de Karen, colocando sobre esta uma sacola de papel. — Mas comprei donuts. Onde você estava?

—Eu... — Foggy pensa um pouco. — Tinha um compromisso.

—Ele foi na igreja. — diz Karen, sorrindo, fuçando na sacola de donuts.

O queixo de Matt endureceu. Foggy logo tentou se emendar.

—Foi curiosidade, me entregaram um folheto convidando e... Aquele cara da placa me assustou com aquelas mensagens de fim do mundo, então...

—Então você foi fazer as pazes com o Criador?

Foggy soltou um suspiro cansado. Sentira um sarcasmo pesado naquela frase. Pegou um donut, mastigando e falando.

—Você podia arranjar uma placa também. Escreva uma frase que destile todo o seu ódio ateísta e saia passeando pela cidade.

—Não é necessário, os fatos mostram por si mesmos que estou certo.

Foggy balançou a cabeça, apontando o donut na direção do amigo.

—O padre falou exatamente disso hoje.

—Não estou interessado. — Matt vai para a outra sala, e Foggy o segue.

—Ora, vamos, não vai ficar bravo comigo só por que eu...

—Foggy, se você quer gastar 2 horas de sua vida ouvindo asneiras isso é com você. Eu só não quero que repasse elas para mim... — Matt baixa a voz. — Ou para qualquer outra pessoa decente.

—O que quer dizer?

—Que é neste tipo de lugar que as pessoas são enganadas, prostradas, forçadas a fazer o que não querem e a não fazer o que desejam, tratadas como animais de abate, e ainda iludidas com a esperança vazia de uma vida sem fim. E você foi lá.

Foggy morde mais um pedaço do seu donut.

—Você está bravo?

—Não.

—Você parece bravo. Você está bravo. Eu estou vendo isso.

—Não é por que você foi à igreja, Foggy, e sim por que não foi comigo ver um cliente.

—Claro, afinal você visivelmente não tem nada contra a religião. E não achei que ia demorar tanto. E, além disso, o cliente não foi, não é mesmo?

O rosto de Matt se suaviza.

—Não perca mais compromissos por causa disso, por favor.

—Não vou, eu prometo. Sinto muito. — Matt respirou fundo, sentando-se e dando de ombros. — Você parece tenso. — Foggy baixa a voz. — Aconteceu algo?

—Ainda não sei.

—Sabe alguma coisa até agora?

—Sabe o encontro no café? Ninguém foi, mas parecia que havia alguém me observando.

—Vindo de você eu não duvido... Tem ideia de quem seja?

—Não. Os batimentos cardíacos dele ou dela acompanhavam meus movimentos, assim pude localizá-lo, tentei segui-lo baseado neles, mas o perdi rapidamente. Provavelmente ele ou ela percebeu que eu o seguia, e é muito bom em se camuflar na multidão.

—Tem alguma ideia de quem seja?

—Você já me perguntou isso, Foggy.

—E a resposta é...

—Vocês ouviram falar de um novo vigilante aqui em Hell’ s Kitchen?

Karen estava parada na porta. Parecia ansiosa em contar para alguém o que descobrira.

—Novo vigilante? — diz Matt.

—Sim. Esqueci de falar antes, eu estava falando com uns vizinhos e eles me contaram ontem que sei lá quem encontrou três corpos num beco perto da 50˚ com a 11˚. Disseram que eles estavam tão machucados que só foi possível a identificação pelos dentes.

—Ai... — murmurou Foggy.

—Tem uma ideia da natureza dos machucados?

—Me disseram que estavam com vários ossos quebrados, cortes fundos e tantas marcas roxas que pareciam uvas gigantes. Falaram que era como se um gorila os tivesse atacado.

—Como sabem que é um vigilante?

—Os três homens eram bandidos. Bandidos perigosos.

Foggy encarou Matt.

—É... Parece que o nosso diabo agora tem amigos.

Matt respirou fundo, virando-se e dando as costas para Foggy e Karen. Karen solta uma risada.

—Fala do Diabo de Hell’ s Kitchen? Ele não é visto à anos.

—Dois anos. — murmura Matt. — Dois anos... — ele se levanta, saindo da sala, pegando sua bengala e desaparecendo.

—Ei, Matt! — antes que Foggy terminasse a frase Matt já havia sumido. Ele levanta os braços, derrotado. — Deixa, deixa ele ir!

—Como ele está ultimamente?

—Ele tem altos e baixos. Pelo visto hoje ele está baixo. Logo melhora.

—Você podia tentar levá-lo á igreja...

—Ele não iria nem arrastado por um pelotão. Não quer mais saber dessas coisas, não quer nem ouvir menção delas. Ele... Ele não tem mais fé.

***

—Eu acho que foi um daqueles idiotas com superpoderes. — disse o Sgt. Brett Mahoney, escrevendo qualquer coisa num documento qualquer. Matt Murdock estava na delegacia, que estava praticamente vazia, tinha respingos de sangue no balcão e cheirava a banheiro sujo. — Uma pessoa normal não faria aquilo com aqueles caras.

—O que houve exatamente?

—Um grupo de jovens estava andando na calçada. Baderneiros, não servem nem para respirar. Eles bebiam e enchiam o saco de quem passava quando, segundo eles, um vulto cruzou seu caminho. Eles disseram que parecia um fantasma. Daí eles foram espiar o beco de onde o “vulto” saíra, e encontraram três corpos tão machucados que três deles vomitaram ali mesmo.

—Natureza dos ferimentos?

—Golpes bem dados. O cara era profissional em alguma luta, ou em várias. Membros quebrados, órgãos perfurados, poucos dentes ilesos. O rosto de um deles estava afundado, eu nunca tinha visto algo assim. Tem ideia de como foi difícil identificar os corpos?

—Quem eram as vítimas?

—Traficantes. Barra pesada. Do tipo que mata você e todos que você gosta. Mas eles não tiveram chance, foi como ser atropelado por um rinoceronte.

—E o tal vulto? Algum detalhe sobre sua aparência?

—Os meninos estavam completamente bêbados, e tão apavorados que mal balbuciavam frases inteiras. Diziam que era um demônio, um fantasma, uma aparição, falaram de tudo. Sabe como é, quando parte para o lado da supertição, é melhor esperar que se acalmem e fiquem sóbrios para tirar algo mais elucidativo.

—Sim, claro. Pode me manter informado?

—Tudo bem.

—Obrigado, sargento.

—Mais uma coisa... Um bandido veio aqui hoje. Ele chorava como um bebê. Disse que o diabo o visitou ontem a noite. Ele quis ser preso por que não queria vê-lo de novo.

—Seria o diabo...

—Não, esse era diferente. Ficava nas sombras, e seu rosto parecia se mover como uma névoa leitosa. Disse que tinha uma voz tão rouca que parecia vir direto do inferno.

—E qual é a relação com os três bandidos mortos?

—A mão esquerda de um deles foi parar em cima do criado mudo do coitado. Daí a sombra disse que era melhor ele sumir ou ela o faria desaparecer. Ele e todo o resto.

—Obrigado, sargento.

—Até a próxima, advogado.

Matt sai andando.

—Dê lembranças minhas a sua mãe.

—Eu dou as lembranças, mas se seu amigo aparecer com charutos eu não vou dar e ainda prendo ele por um dia!

Matt abre um sorriso, voltando a andar.

—Eu o aviso, prometo.

Ele saiu da delegacia, parando na calçada, sintonizando-se com os ruídos da cidade. Podia ouvir tudo, cada murmúrio, cada fôlego, cada passo sobre o cimento quebrado. Ouvia os martelos de terrenos em obras, as conversas no celular dos carros passando, o mastigar das pessoas dentro de lanchonetes. Ele reconhecia cada pessoa por seu batimento, a sequência de sua respiração. Sabia quem se machucara recentemente. Sabia tudo ao seu redor. Ele podia ser cego, mas enxergava... A seu próprio modo.

Caminhando a passo lento, ele organizava as informações.

Ele já estava há algum tempo notando um certo padrão nos acontecimentos. Desaparecimentos estranhos, porém nunca investigados, cadáveres de criminosos em becos, com difícil identificação. Silêncio por parte das autoridades. Algo estava acontecendo. E as vítimas de desaparecimento tinham sempre algo em comum. Na verdade, um gene em comum.

Eram mutantes, ou meta-humanos. Matt prosseguiu pela calçada, absorto naquele assunto. Sempre que um meta-humano desaparecia, algum cadáver de um drogado ou bandido não-identificado surgia. Um coitado, assim ninguém dava atenção. Corpos mutilados, seria impossível até mesmo atinar o gênero. Não faltavam motivos para que Matt suspeitasse que alguém, um grupo ou uma organização, estava silenciosamente matando mutantes. Não todos. Não era um genocídio. Mas alguns, talvez os mais especiais. Talvez os mais poderosos. Mas se eles eram tão poderosos, por que não se defendiam? Aquele ataque da noite anterior quebrara o ciclo. Desta vez, não era um corpo de um drogado, cortado em pedaços e dentro de um saco. Eram três traficantes conhecidos, Matt vira seus nomes, e eles morreram de tanto apanhar. Será que haviam atacado alguém forte demais para seus corpos normais? Será que alguém resolvera revidar?

O ódio a mutantes não era coisa nova. Existia antes mesmo de Matt nascer. Mas o que se desenrolava naquele momento, desaparecimentos que não estavam incentivando ninguém a levantar a voz, isso sim o incomodava. Por que ninguém perguntava nada? Ele já vira algo parecido, quando Wilson Fisk decidira tomar a cidade, e começara eliminando poucas pessoas, desconectadas umas das outras, mas que juntas formavam um quebra-cabeça que tinha de ser destruído. Ele percebera o padrão daquela vez, e estava percebendo de novo. Alguém queria eliminar alguma ameaça. E talvez a ameaça fossem os meta-humanos. E talvez por isso, estavam sendo eliminados aqueles que poderiam fazer alguma diferença no resultado final.

—Mutante nojento! — exclamou um homem de meia idade, partindo para cima de um jovem que passava pela calçada. O jovem esquivou-se a tempo, apertou o passo, e sumiu numa esquina. — É por causa de sua raça que Hell’ s Kitchen não se recupera!

Matt presenciara a cena, mas como o jovem se safara de possível ataque, permanecera sem reação. Ele passou pelo senhor, que voltou para dentro da loja de onde saíra, e imaginou quantos não pensariam como ele e apoiariam se uma matança generalizada de pessoas geneticamente modificadas começasse. Ele não entendia todo aquele ódio. E talvez nem quem o sentia conseguia entender.

Matt passou o resto de seu dia sem novas informações sobre o assunto. Seu mau humor veio disso, mas como não queria comentar a respeito Foggy continuou achando que era por que tinha ido à igreja. Eles fizeram algumas pesquisas sobre casos pendentes, a noite chegara e Foggy quis ir ao bar onde se servia bebida de alto teor alcoólico acompanhada de uma enguia.

—Você devia ir, é muito bom ficar bêbado de vez em quando.

—Não, obrigado. Leve a Karen, vocês dois já tem prática em engolir essas... Coisas viscosas.

Foggy dá de ombros.

—Você é quem sabe. Vamos, Karen?

—Vamos lá. Tchau, Matt.

—Vê se reza um pouco!

—Suma daqui, Foggy. E podem apagar a luz quando saírem.

—É claro que eu vou apagar, você não precisa dela. Tchauzinho!

Os dois saem, rindo alto como se já estivessem bêbados, e Matt se senta em sua cadeira, sentindo a escuridão ao redor de si. Ouviu a conversa de Foggy e Karen até eles virarem a esquina, daí pôs-se a ler algumas ordens de prisão escritas em braile.

Ele amava aquele escritório. a cadeira de madeira compensada, a wifi péssima cujos pulsos vibravam sob a pele dele, o cheiro de toda parafernália velha na outra sala, as partículas de escuridão que ele quase podia tocar com os dedos. Ele amava aquele lugar por que lhe era perfeitamente reconhecível.

Neste momento, ele sentiu outra presença no escritório.

Matt ergueu a cabeça, sondando cada canto daquele cômodo. Logo detectou outra pessoa. Reconheceu-a imediatamente. A respiração, o batimento, os ossos colados de golpes antigos. Tudo era igual. Era a mesma pessoa do café.

—Seja quem você for... — disse Matt para a escuridão. — Sei que está aí, como se veste e o que carrega. Acredite, não sou a melhor escolha para um oponente.

—Não procuro por oponentes. — respondeu o outro com uma voz rascante, rouca, vinda de cordas vocais terrivelmente gastas. — E sim aliados.

—Quem é você?

—Quem é você?

—Você está no meu escritório, deve responder primeiro.

—E eu sei quem você é.

Matt abre um sorriso.

—Isso não é difícil, meu nome está numa placa lá fora.

—Não... — suspirou a sombra. — Não, Sr. Murdock, eu não falo de seu disfarce. Eu falo de quem você é. Sua verdadeira face.

Matt permaneceu em silêncio alguns instantes. Sentiu que o homem usava uma máscara poída, e uma substância que não conseguia identificar dançava sobre o tecido. O homem usava luvas de couro, e seu casaco era gasto. Usava também um chapéu.

—Tudo bem, senhor, você tem minha total atenção.

A sombra se moveu, e parecia falar consigo mesma.

—Todos temos uma verdadeira face. Aquela que escondemos, capaz de fazer coisas terríveis. Ela surge no escuro, no desconhecido, no anonimato. Esta cidade esconde sua face, mas não de mim. Eu a vejo, e ela não consegue me ver, e isso a apavora.

—Você é quem matou aqueles três homens.

—Não era meu intento. Mas eles me atacaram e tudo o que vi foram animais ferozes. Você conhece o procedimento. Animais violentos devem ser sacrificados. É a regra.

—E os matou na base da surra?

—Eu tenho uma arma, mas não gosto dela. Se dou conta de alguém, não a utilizo. Acho justo, pois a outra pessoa pode revidar, e vencer, caso mereça. Uma luta justa é o que qualquer pessoa merece antes de morrer, até mesmo a mais vil da humanidade.

—E o que fazia naquele beco?

—Você consegue ver o que está havendo? Estamos às portas do apocalipse, e ninguém sequer nota. Pessoas morrem, pessoas desaparecem, pessoas choram, ninguém se importa. Mas quando o céu cair sobre suas cabeças será tarde demais para buscar redenção.

—Fala dos desaparecimentos de meta-humanos?

—Acha mesmo que eles foram levados para outro lugar? Há cães espalhados por esta cidade, e foram treinados para fazer apenas uma coisa: matar quem é diferente. Não todos. Aqueles que podem fazer a diferença. Aqueles que, se lutarem, penderão a balança.

—Quem está fazendo isso?

—Se eu soubesse estaria atrás dele e não aqui no seu escritório.

—O que você quer?

—Onde está sua face?

—Minha face... — Matt ri num suspiro. — Eu não a tenho mais.

—Não acredito nisso.

—Eu a queimei, junto com uma cadeira quebrada e restos de alimentos. Queimei-a junto com tudo o que um dia ela representou. Foi uma fogueira e tanto.

—Não falo de pano e fibra, isso vai além desta matéria. Você ainda treina, no mesmo lugar, na mesma hora, com as luzes apagadas.

—Tem me seguido.

—Você afunda seu verdadeiro eu para dentro do peito, mas ele vez por outra consegue aflorar. Preciso disso agora.

—Eu não faço mais isso.

—Mais um alvo. Consegui arrancar do animal de quem arranquei a pata. Preciso que encontre e proteja.

—Eu não faço mais isso.

—Aqui está o nome. Deve encontrá-la e mantê-la a salvo.

—Eu não faço...

—Todos morreremos. No fim. Agora, quer morrer feito um carneirinho, ou vai cair batendo?

Matt se remexe na cadeira.

—Por que você não faz isso?

—Sem tempo. Preciso angariar mais ajuda. Preciso de você. Não posso lutar esta guerra sozinho.

—Não é uma guerra.

—Ainda não. Mas será. Estão organizando suas peças. Precisamos organizar as nossas. Eu vi você, você não concorda com o que há de podre neste mundo. Já quis mudar as coisas, mas se desiludiu e desistiu. Mude isso.

—Procure aquelas aberrações que destroem prédios e atiram carros.

—Eu não preciso de poderes, preciso de ideologias. Estas sim fazem a diferença. Uma ideia não pode ser destruída, uma crença não morre.

—Eu... Eu não acredito mais.

—Não precisa acreditar. Apenas aja. A crença vem depois.

—Mas eu não... — Matt deixou de sentir a presença da sombra. Levantou-se, concentrando-se em cada som ao seu redor. Mas não a achou. Caminhou até a janela, que ainda estava aberta, pegando um pedaço de papel que ali estava. À sua mente veio centenas de lembranças, algumas felizes, outras dolorosas, outras insuportáveis. Tudo o que o fizera desistir da humanidade, e consequentemente de quem a criou. Abriu o papel, sentindo a tinta nele impressa e decifrando as formas que tomava. Sabia o nome que estava lá. Mas não sabia o que fazer depois disso.

Ele respirou fundo, repentinamente ouvindo os sinos da igreja. Um padre lia a Bíblia. Era a passagem em que Jesus caminha sobre as águas, e Pedro o imita. No entanto, olhando para a tempestade, sente medo e começa a afundar.

Matt tirou seus óculos avermelhados, e lágrimas tímidas molhavam seus olhos.

“Ó, homem de pouca fé, por que cedeste à dúvida?”


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