Garu escrita por Sam McQueen


Capítulo 1
Prólogo




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Dizem que você pode conhecer muito sobre um lugar observando os nomes que os seus moradores dão a ele.

Ailim tem vários nomes bonitos. Os primeiros moradores da ilha foram bem generosos com os lugares que encontravam em suas expedições. Cada nova descoberta era batizada em homenagem ao momento que eles estavam vivendo.

As Cataratas da Salvação foram descobertas quando o que as pessoas mais procuravam era água. O Vale foi nomeado em um momento de exaustão, quando tudo o que as pessoas precisavam era um lugar para descansar. O Lago das Lágrimas foi batizado assim para marcar o momento em que os moradores descobriram onde iriam morar pelo resto das vidas. E assim foi, por toda história.

Mas Ailim não é formada apenas por maravilhas naturais com nomes bonitos.

Ailim também tem a Cicatriz.

A Cicatriz é um rio que não teve sempre esse nome. Antes de ser chamada assim, a Cicatriz era conhecida como o Rio de Todos. O Rio partia do Lago das Lágrimas e cortava a ilha ao meio, terminando seu trajeto na praia, misturando-se com o mar. O ponto onde o Rio de Todos desembocava no mar era um lugar muito bonito: alguns moradores de Ailim deslocavam-se até lá todo dia só para ver o sol se por no fim da tarde. Mas foi na nascente do Rio, no Lago das Lágrimas, que começou a maior tragédia de Ailim.

Em outros tempos, antes da Cicatriz, Ailim era um lugar belo e bom de viver. As pessoas plantavam, colhiam e agradeciam diariamente pelos bons frutos e pelo tempo bom. Mas com o tempo, as pessoas começaram a se questionar de onde vinha tudo aquilo.

Alguns moradores passaram a dizer que Ailim devia ser criação de uma grande força. Uma flor, por mais bela que seja, não floresce sem cuidado. Algo devia estar por trás da criação dos campos verdes, das flores perfumadas e das pessoas felizes em Ailim. Mas quem?

A história se alterou em anos de tradição oral, mas o que os antigos contam é que de tanto falar que devia haver uma grande força por trás de tudo, uma grande força cuidando de todos, os moradores da ilha começaram a cultuar... a Grande Força. Em uma terra de nomes fortes, esse era um bom nome para se confiar.

As pessoas começaram a construir pequenos altares dentro de casa para cultuar e agradecer essa força invisível. Os moradores desenvolveram o hábito de recolher qualquer coisa diferente que viesse do mar e adorar, como um legítimo presente da Grande Força. Se a terra firme era dos homens, o mar com certeza era divino: qualquer coisa que viesse daquela imensidão azul vinha da Grande Força.

Com o tempo, alguns incrédulos começaram a aparecer. Queriam provas, vestígios mais prováveis de que havia uma força superior, pistas que fossem maiores do que conchas e pedras que amanheceram na beira-mar. Os que acreditavam na Grande Força diziam que não haveria prova maior do que a prosperidade que circulava a todos. Mas os incrédulos não desistiram mesmo assim. Eles queriam ouvir a Grande Força. Queriam ver.

Os que acreditavam naquela força invisível começaram a duvidar deles mesmos. Alguns inclusive passaram para o outro lado. Queriam provas também. Depois de um tempo, os ânimos começaram a se exaltar. Quando todos perceberam, o Rio de Todos estava dividindo a ilha, com os incrédulos de um lado, os que acreditavam, do outro, e o Lago das Lágrimas no meio. Faltava pouco para a Cicatriz ganhar seu nome

Foi então que, em uma manhã, o sol não apareceu. O dia amanheceu com o astro coberto pelas nuvens. As pessoas logo estranharam: aquilo nunca havia acontecido em Ailim! Os crentes na Grande Força logo acusaram os incrédulos de terem enfurecido a sua divindade. Os incrédulos responderam dizendo que aquilo era prova de que nunca existiu nenhuma Grande Força. Uma chuva leve passou a cair no fim do primeiro dia sem sol.

Os incrédulos passaram a fazer provocações. Diziam que a Grande Força ia causar um dilúvio e que, enquanto a chuva caía, os crentes virariam peixes para nadar melhor. Os crentes, por sua vez, diziam que seriam salvos pela Grande Força, mas só seriam poupados por causa da sua fé. A chuva passou a engrossar. E os crentes passaram a rezar mais alto, só por garantia.

Os climas se exaltavam cada dia mais, assim como a chuva. O Lago das Lágrimas começou a transbordar e o nível do Rio de Todos subiu. As populações ribeirinhas tiveram que se deslocar para dentro da ilha para não correr risco de morte. Apenas os defensores mais ferrenhos dos dois lados continuavam no Rio, prontos para brigar sobre quem estava certo assim que fosse necessário.

No décimo dia de chuva ininterrupta, uma flecha disparada de um dos lados começou o combate. Não se sabe de que lado partiu o primeiro ataque, mas não importava. Alguns soldados mais afoitos cruzaram o Rio de Todos para brigar do outro lado, transformando o próprio rio em um campo de guerra. Dezenas de pessoas dos dois lados se envolveram na disputa. A notícia logo se espalhou entre a população que havia fugido para escapar da chuva. Um campo de batalha estava formado.

Não durou muito tempo. Ao fim daquele décimo dia de chuva, uma tempestade torrencial tomou os céus de Ailim. Os que brigavam no Rio tentaram voltar para dentro da ilha para se proteger, mas não houve tempo o suficiente. Raios partiram árvores ao meio, que caíam nas florestas como gravetos. Pedras começaram a desmoronar das colinas mais altas, atingindo as casas no pé dos morros. Incêndios queimaram boa parte das florestas, deixando os animais assustados e violentos, que passaram a atacar os seres humanos para sobreviver.

Os crentes logo enxergaram aquilo como prova da existência da Grande Força: a água purificadora iria lavar os pecados e erros do homem e começar tudo de novo. A Grande Força era sábia e iria salvar aqueles que acreditavam nela. Os incrédulos logo responderam, dizendo que somente aqueles que confiavam em si mesmos conseguiriam sobreviver. Os dois lados logo descobririam que estavam errados.

No décimo-quarto dia de chuva ininterrupta, a última tromba d’água deu o recado da Grande Força: ninguém estava a salvo. A água reformulou a geografia da ilha. Um dilúvio derrubou montes e destruiu vilas inteiras, sem deixar nada pelo caminho. Quando o Lago das Lágrimas finalmente transbordou, as margens do Rio de Todos invadiram floresta adentro. Os corpos dos combatentes mortos foram levados pela correnteza. O rio virou uma cicatriz, rasgando o chão, tornando-se uma marca para que ninguém esquecesse o que aconteceu ali.

Apenas dez pessoas conseguiram sobreviver ao dilúvio. Elas foram salvas por um caçador misterioso, que nenhuma das dez conhecia. Ele levou todos para uma caverna no meio da selva, onde tinha guardado comida e provisões. Os Dez Sobreviventes e o caçador ficaram seguros na caverna enquanto o dilúvio não passava. Depois que a terra se acalmou, na primeira manhã de sol, o caçador morreu.

A história conta que, entre os Dez Sobreviventes, um deles não acreditava na Grande Força. Os outros nove crentes, quando puderam sair da caverna com segurança, foram até a praia agradecer ao mar pela vida poupada e velar o caçador. A tradição dizia que toda vida começava e terminava na água, por isso seu corpo foi preparado para ser jogado na imensidão azul do oceano. Enquanto os ritos fúnebres eram executados e o caçador era levado pelo mar, uma nova surpresa chegou junto com as ondas.

A princípio, os Dez Sobreviventes não sabiam o que pensar daquelas pequenas criaturas. Elas eram pequenas e peludas, do tamanho de uma maçã, e pareciam inofensivas. Vieram em dez, uma para cada sobrevivente. Os nove crentes logo interpretaram que aquelas criaturas eram o sinal de uma nova aliança entre a Grande Força e os escolhidos que ela salvou. O incrédulo aceitou com ressalvas aquele ser que parecia ter sido destinado a ele. Em um acordo silencioso, Os Dez concordaram em cuidar cada um de sua criatura, mesmo sem entendê-las ainda.

A vida a partir dali resumiu-se em reconstruir a ilha. Os Dez Sobreviventes se organizaram e começaram a construir casas, procurar outros moradores que pudessem estar vivos e tentar voltar suas vidas ao que era antes. Diferenças foram esquecidas por um tempo, mas nunca apagadas. A ilha tinha agora uma Cicatriz para que seus moradores nunca esquecessem o que havia acontecido. Naquele momento, o que todos precisavam eram uns dos outros, mas eles nem imaginavam que aquelas criaturas que tinham em mãos definiriam o destino de toda pessoa na ilha a partir dali. Definiriam e dividiriam. Mais do que a Cicatriz.

Como mandava a tradição de Ailim, os Dez Sobreviventes precisavam de um nome forte para batizar aquela criatura, um nome que marcasse o momento. Eles não tiveram que pensar muito. Em uma decisão unânime, as criaturas foram batizadas com o nome do caçador que salvou a vida de todos naquela tempestade.

Elas foram batizadas de Garu.


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