Eu Não o Vi escrita por LunaLótus


Capítulo 1
O amor tem dessas coisas




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Eu não o vi.

Não o vi quando esbarrou em mim, na ida para a escola. Não o vi quando se sentou na cadeira logo atrás à minha. Não o vi quando perguntou se eu tinha uma caneta para emprestar. Eu não o vi.

Eu não o vi quando ele sorriu pela primeira vez para mim, não o vi quando nossas mãos se tocaram de leve, não o vi quando ele me guiava entre as dezenas de alunos.

Não, eu não o vi. Eu literalmente não o vi.

Mas eu o senti. Senti sua voz ressoar e entrar em sintonia com cada espaço da minha alma. Senti seu cheiro afetar meus sentidos e seu toque fazer meu coração disparar. Senti sua emoção, quando eu, finalmente, pude vê-lo através dos meus olhos. Senti lágrimas e um sorriso.

Eu não o vi quando ele disse que gostava de mim, e eu sorri, achando que ele estava só brincando comigo, que era só amizade. Eu não o vi quando ele tocou minha mão e me chamou para sair. Eu não o vi quando entrei no carro e ele disse que eu estava linda. Eu também não me vi.

Eu o ouvi. Ouvi sua respiração acelerada de ansiedade. Ouvi cada palavra doce que ele dizia. Ouvi ele dizer que eu era especial, que jamais imaginou que pudesse se sentir assim, e que sabia que eu também jamais havia imaginado. E eu o ouvi dizendo que não queria mais ser meu amigo, que ele precisava de mais, que a amizade já não lhe bastava. E quando eu o abracei, ouvi seu coração martelando seu peito, descontrolado, esperando minha resposta.

Eu não o vi, quando toquei seu rosto e segurei sua mão. Não o vi enquanto eu falava que aquilo me matava, porque eu queria vê-lo. Não o vi quando toquei seu rosto, seus olhos, sua boca, desenhando cada parte de sua face e me ergui, esperando.

E eu o provei. Provei da doçura e delicadeza do seu beijo. Provei das suas mãos me abraçando, cuidadosas, quase como se ele tivesse um tesouro em suas mãos. Provei do sabor salgado de suas lágrimas e das minhas lágrimas, que se misturavam. Eu provei do meu primeiro amor.

Eu não o vi quando ele foi me buscar em casa, no dia seguinte. Não o vi quando o leitor do computador leu em voz alta que ele havia solicitado atualização do relacionamento para Um Relacionamento Sério. Não o vi quando ele exibia seu sorriso orgulhoso, apresentando-me como sua namorada.

Não os vi quando ele foi conhecer meus pais. Não os vi quando minha mãe o abraçou e disse que formávamos um casal bonito. Não os vi quando meu pai apertou a mão dele e lhe avisou para cuidar bem da sua garotinha. Não os vi quando ele falou que aquilo era o que ele queria fazer para o resto da vida.

Eu não o vi. Não o vi pelos cinco anos que namoramos. Não o vi em cada fotografia que foi revelada. Não o vi quando se ajoelhou, segurou minha mão e pediu que eu fosse dele, e somente dele, para o resto das nossas vidas. Eu não o vi quando respondi que a minha única resposta era sim.

Porém eu o senti. Senti seu grito de vitória, como se tivesse ganhado na loteria. Senti seu coração vibrando, enquanto ele me pegava no colo e girava pela sala, enquanto nossos pais comemoravam.

Eu não o vi no dia em que nos casamos. Não o vi para saber a sua reação ao me ver vestida de noiva. Não o vi elegante, de fraque. Ou talvez com a jaqueta do time da escola. Isso não importa, jamais importou. Porque eu nunca o vi.

Eu não o vi quando me entreguei a ele e me tornei sua mulher definitivamente. Não o vi quando lia aventuras para mim, me abraçava antes de dormir, beijava minha cabeça e em seguida meus lábios e repetia que me amava. Eu não o vi nas inúmeras vezes em que trouxe rosas, chocolates. Não o vi todas as vezes em que ia me buscar no trabalho, cansado, mas feliz ao me ver.

Não o vi quando comemoramos o nosso primeiro ano de casamento. Não o vi quando eu lhe dei seu presente. Não o vi quando lhe disse que minha menstruação estava atrasada e que eu havia ido ao médico, fazer exames. Não o vi quando ele pegou o papel, as mãos trêmulas, lendo em voz baixa “positivo.”

Não o vi quando as lágrimas começaram a escorrer por seu rosto e ele me abraçou com força. Não o vi quando ele falou que eu o estava fazendo o homem mais feliz do mundo, ainda mais. Não o vi quando o beijei e fizemos amor.

Eu não o vi. Não o vi no consultório médico, quando descobrimos que uma menina estava a caminho. Não o vi comprando roupas, brinquedos, pintando o quarto, montando as peças, comprando livros e lendo para a princesa que estava em meu ventre. Não o vi quando ele me enchia de carinhos, beijos e chamegos, tratando-me com ainda mais cuidado e dedicação.

Não o vi na hora do parto. Não vi seu sorriso ao ouvir o choro forte da nossa filha. Não o vi pegá-la no colo e dizer “oi, filhotinha, aqui é seu papai.” Não o vi chegar perto de mim, beijar meus lábios e me agradecer.

Os anos foram se passando, e muitas foram as coisas que eu não vi. Meus pais, meu amor, minha princesa. Eu nunca os vi.

E, neste momento, eu ainda não vejo com os olhos do corpo. Não vejo a ausência dele, ou o meu corpo deitado sobre a cama, aguardando.

Mas a minha alma o sente. Sente quando ele vem me buscar, sente quando sua mão toca minha pele. E os olhos da minh’alma podem vê-lo claramente, com tanta luz ao nosso redor.

Mais de cinquenta anos se passaram, e ele continua lindo. Toco seu rosto e sorrio, e ele sorri também, porque ambos sabemos quanto tempo esperamos para finalmente olharmos um nos olhos do outro. E nos enxergarmos refletidos.

Eu costumava dizer que a morte nos livraria desta roupa, o corpo, e então eu poderia vê-lo de fato. Sim, a morte nos livrou. O que eu não sabia era que eu já o enxergava, e ele me enxergava. A cegueira jamais poderia me tirar os olhos da alma. E, com eles, eu os vi.

Eu vivi, senti, ouvi, amei.

Eu o amei, sem nunca tê-lo visto. Ele me amou, mesmo tendo me visto. O amor tem dessas coisas.


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Notas finais do capítulo

Hey! Primeira e única One por aqui. O que acharam? Nem sei se vai ter leitores, mas ok, está valendo! Beijoos



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