Além do Caos escrita por Um Alguém


Capítulo 5
Capítulo 5




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– Rachel! Rachel! - reconheci a voz antes mesmo de abrir os olhos e encontrar o Dexter sacudindo meu ombro gentilmente. - O que houve? Você está bem? - perguntou ele com a preocupação estampada no rosto.

– Eu estou bem. - respondi ainda meio sonolenta.

– Você estava se debatendo e gritando. - disse ele com seus olhos azuis se derretendo sobre mim.

– Pesadelo. - disse-lhe por fim abandonando as imagens que fustigavam-me.

– Quer falar sobre…

– Não.

Dexter me olhava com atenção enquanto eu me sentava. Por um momento achei que ele fosse insistir para falarmos do meu pesadelo, mas tudo que ele fez foi ficar lá sentado, me olhando, em silêncio.

– Como você está? - perguntou ele depois de algum tempo.

– Bem.

– Ótimo, ótimo. - disse ele parecendo um pouco hesitante. - Sobre aquilo que conversamos ontem, bom, você mudou de ideia?

– Eu não vou ficar com vocês. - pontifiquei impassível.

– Rachel… você sabe que isso é ridículo. Sabe que não ficar com a gente por medo do que possa acontecer…

– Dexter. - interrompi-o. - Você não sabe nada sobre mim, muito menos sobre meus medos, então cala a boa. - ordenei. Ele ficou um pouco aturdido, mas logo se recuperou.

– É uma pena você ser assim. - ele comentou com tranquilidade.

– Assim como? - questionei desconfiada.

– Tão fechada. Você é uma garota incrível, mas não deixa as pessoas verem isso. Criou um muro entre você e o resto do mundo e não deixa ninguém se aproximar.

Abri a boca para responder-lhe, mas tornei a fechá-la. Não tinha o que dizer. Ele estava certo. Eu realmente mantinha as pessoas longe de mim. Mas não fazia isso porque gostava, e sim porque era preciso.

– Conhece o mito do rei Midas*? - perguntei-lhe.

– O do toque de ouro? - ele parecia confuso.

– Sim, esse mesmo. Sou como ele, Dexter. Só que ao invés de virar ouro, tudo que eu toco morre.

– Midas consegue reverter a situação no final da história. - lembrou-me.

– Não exatamente e eu não tenho como reviver os mortos.

– Mas tem como viver com os que ainda estão vivos. - contrapôs. - Nós estamos nos aprontando para ir embora. Venha conosco, Rachel. Esqueça o que quer que tenha acontecido. Comece de novo.

– Eu não posso, Dexter.

– Bom, então acho que é isso. - disse ele ficando de pé. - Vou pedir para Sally dar uma última olhada em você antes de irmos. - ele fez uma pausa e me lançou um sorriso soturno. - Tchau.

Dexter virou-se para subir a escada, mas não subiu nem um degrau quando um forte barulho veio do andar de cima. Sua postura relaxada foi logo substituída pela tensão.

– O que foi isso? - perguntei-lhe preocupada.

– Eu não sei, mas é melhor se proteger. - disse ele me ajudando a levantar. - Se esconda atrás de algumas caixas e não saia. - ordenou ele correndo para a escada.

– Assim que fiquei sozinha peguei minha mochila e fui para trás das caixas de papelão. Ouviam-se tiros e gritos do andar de cima. Barulho de coisas quebrando e pancadas. Abri a mochila e peguei meu canivete assim que ouvi passos na escada. Preparei-me para atacar, mas recuei quando vi que era o Dexter.

– Precisamos ir. - disse ele com urgência me puxando pelo braço para mais para o meio das caixas, em um quase labirinto.

– O que está havendo? - perguntei-lhe tensa.

– Aqueles malucos estão aqui. Tem tiro para todo lado. - paramos enfrente a uma porta só o tempo necessário para o Dexter arrombá-la com um forte chute.

– E o Luke? A Sally? - quis saber preocupada imaginando o Zeke pegando o Luke, ou pior, matando-o.

– Vão ficar bem. Agora temos que sair daqui.

Sua mão era quente no meu braço ainda febril. Segui ele para fora do porão. A tal porta que ele arrombou dava para uma ruazinha. Saímos correndo lado a lado. As ruas estavam tão destruídas quanto qualquer outra. O grande problema eram os carros e barris pegando fogo dos quais tínhamos que desviar.

Um ronco de motor me sobressaltou. Olhei para trás e vi o Jeep do Zeke vindo em nossa direção. Dexter e eu começamos a correr mais rápido ainda, entrando e saindo de belos e vielas. Mas sempre que parecia que tínhamos despistado o Jeep, ele retornava.

Viramos em uma rua que nem um caminhão conseguiria passar. Haviam enormes pedras de concreto, árvores caídas e carros pelo caminho. Zigue-zagueamos por entre os obstáculos e eu estava quase aliviada, imaginando que enfim o Zeke desistiria. Erro meu. Como o Jeep não conseguia passar, Zeke colocou um fuzil para fora da janela do carro e começou a atirar. Os tiros passavam raspando, atingindo tudo ao nosso redor, até que um acertou minha coxa.

Soltei um grito de dor e caí no chão. Dexter rapidamente puxou a pistola presa no seu cinto e começou a atirar na direção do Zeke. Os tiros acertaram a lataria e o vidro do Jeep, fazendo Zeke parar de atirar, pelo menos momentaneamente. Dexter me ajudou a levantar e voltamos a correr, bem mais devagar. Estava me apoiando no Dexter enquanto mancava, com ele ainda atirando ocasionalmente.

Entramos em um mini mercado, depois em um pequeno escritório, uma farmácia e algumas casas. Não havia mais sinal do Jeep, mesmo assim continuávamos correndo. Minha perna esquerda estava encharcada de sangue e minha coxa doía tanto que parecia que eu tinha tomado vários tiros ao invés de um. Fraquejei algumas vezes, mas Dexter me manteve firme.

Por fim achamos um lugar que ele considerou seguro para ficarmos. Era um prédio pequeno que estava ainda menor, já que o último andar havia sido destruído, restando apensa alguns pedaços. O hall de entrada estava imundo, com um cheiro pútrido, cheio de restos de comida, roupas sujas e até umas coisas que pareciam corpos. Subimos as escadas estreitas até o segundo andar. Um pequeno flat praticamente vazio. No quarto-sala havia só uma cama de casal e uma televisão quebrada caída no canto. Do outro lado, um banheiro minúsculo e ao lado uma cozinha com apenas uma geladeira e um fogão.

Dexter me levou até a cama, colocando-me deitada. Com meu canivete cortou a perna da minha calça, deixando minha pele exposta da coxa para baixo. Com um pedaço do lençol que contara e um pouco de água ele limpou minha perna, depois rasgou mais um pedaço de lençol e enfaixou minha coxa.

– Não sou bom nisso como a Sally e a Kristin. - disse Dexter sentando ao meu lado na cama. - Quando encontramos elas peço para cuidarem disso para você.

– Obrigada. - agradeci-lhe. - Como pretende encontrá-las?

– Marcamos um ponto de encontro antes de nos separarmos. - explicou. - Ficamos de nos encontrar no casarão da King's Avenue.

– De novo lá. Qual é o seu fascínio por aquele lugar? - quis saber curiosa.

– Sempre achei aquele lugar lindo. Sonhava em morar lá um dia.

– Aonde você morava antes de tudo isso?

– Em um lugar ruim. - disse ele deitando na cama e encarando o teto.

– Muito específico. - debochei.

– Falou a garota que foge do próprio passado. - brincou ele com um pequeno sorriso.

– São coisas totalmente diferentes. - retruquei.

– Certo, certo. Eu morava em Lostwood. E você?

– Lake Park.

– Muito longe de mim. - comentou ele. De fato. Lostwood e Lake Park ficavam em lados opostos da cidade. O bairro dele era extremamente pobre, já o meu era de classe média. Claro que não era nada se comparado com o casarão da King's Avenue. - Queria ter te conhecido antes.

– Por quê?

– Teria te levado para passear de moto. Aposto que você ia gostar.

– Você tinha uma moto? - questionei surpresa virando-me um pouco para olhá-lo.

– Sim. Não era nova nem anda, mas eu gostava dela. Foi um presente da minha irmã. - disse ele contemplando o teto.

– Como ela era?

– Velha, amassada e com a tinta gasta.

– Eu estava falando da sua irmã. - disse-lhe com um pequeno sorriso.

– Ah, claro. - ele sorriu também depois tornou a ficar sério, nostálgico. - Ela era a pessoa mais importante da minha vida. Era tudo que eu tinha.

– O que aconteceu com ela… foi antes ou depois do Caos? - perguntei gentilmente.

– Depois.

– Sinto muito. Sei como é isso.

– Quem você perdeu, Rachel? - ele virou de lado para me olhar.

– Todo mundo. - respondi-lhe afundando na imensidão dos seus olhos. - Todo mundo.




*Mito do Rei Midas - Certa vez Baco (ou Dionísio, deus do vinho) deu por falta de seu mestre e pai de criação, Sileno. O velho andara bebendo e, tendo perdido o caminho, foi encontrado por alguns camponeses que o levaram ao seu rei, Midas. Midas reconheceu-o, tratou-o com hospitalidade, conservando-o em sua companhia durante dez dias, no meio de grande alegria.

No décimo-primeiro dia, levou Sileno de volta e entregou-o são e salvo a seu pupilo. Baco ofereceu, então, a Midas o direito de escolher a recompensa que desejasse, qualquer que fosse ela. Midas pediu “todo ouro em que pudesse pôr as mãos”. Baco consentiu, embora pesaroso por não ter ele feito uma escolha melhor.

Midas seguiu caminho, jubiloso com o poder recém-adquirido, que se apressou a pôr em prova. Mal acreditou nos próprios olhos quando viu um raminho que arrancara de um carvalho transformar-se em ouro em sua mão. Segurou uma pedra; ela mudou-se em ouro. Pegou um torrão de terra; virou ouro. Colheu um fruto da macieira; ter-se-ia dito que furtara do jardim das Hespérides.

Sua alegria não conheceu limite e, logo que chegou à casa, ordenou aos criados que servissem um magnífico repasto. Então verificou, horrorizado, que, se tocava o pão, este enrijecia em suas mãos; se levava comida à boca, seus dentes não conseguiam mastigá-la. Tomou um cálice de vinho, mas a bebida desceu-lhe pela boca como ouro derretido, sua filha se encostou a ele e se transformou em ouro.

Consternado com essa aflição sem precedentes, Midas lutou para livrar-se daquele poder: detestava o dom. Tudo em vão, porém; a morte por inanição parecia aguardá-lo. Ergueu os braços, reluzentes de ouro, numa prece a Baco, implorando que o livrasse daquela destruição fulgurante. Baco, divindade benévola, ouviu e consentiu. “A água corrente desfaz o toque”, disse-lhe Baco, “mergulhas o que tocastes num rio e os objetos em que tocaste voltarão a ser o que eram”. Midas correu a cumprir o que dissera o deus do vinho e, com a água do rio Pactolo, que correu num jarro, foi banhando todos os objetos em que tocara, restituindo-lhes a natureza primitiva, a começar pela própria filha, que ele, então, pôde abraçar sem perigo de torná-la de ouro. Dizem que Midas, ao se abaixar para colher a água na margem do rio, tocou na areia com as mãos e que, por isso, ainda hoje, o rio Pactolo corre por sobre um leito de areias douradas.*


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Notas finais do capítulo

Continuem Sobrevivendo....



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