Hikari

–Quem mais almeja a perfeição, é a pessoa mais defeituosa do mundo – ouço como um eco distante na escuridão.

Som de água pingando é ouvido, sinto os pedregulhos debaixo de mim e o chão quente no qual estou deitada.

Estou tonta, pareço estar girando paralelamente num sonho confuso. Tenho uma dor de cabeça horrível e morro de calor. O Inferno é um lugar que as variações de temperatura mudam chocantemente.

Percebo que não tem nada a ver com o Inferno. É meu próprio corpo que está fervendo em febre.

–Não entendo porque os humanos perseguem a felicidade – a voz é de Ally. O que ele está fazendo? – Vocês nunca farão parte do mundo realmente, e nunca haverá alguém que ame mais que sua própria vida. Seres humanos são egoístas. Talvez até mesmo seu criador seja. Não há como derrotar as trevas Hikari.

Abro os olhos. O que ele quer?

Estou numa caverna esquisita. Parece feita de gelo, o teto dela, posso ver o espaço, as estrelas, os planetas. Milhares de constelações, satélites e cosmos num só lugar. Ao meu lado corre uma fina cascata de uma água clara e brilhante. Tudo é lindo. Que lugar é esse?

Então avisto Hakochi abaixado no chão, fazendo algum tipo de reverência à Ally sentado num trono feito de uma árvore morta com flores brancas em volta.

–O que... – minha voz ecoa fracamente na caverna estrelada.

–Olá, Hikari – Ally beija uma rosa e a joga pra mim, agora ele voltou a ser aquele estranho com milhões de formas – Seu namoradinho se foi, não é?

Arregalo os olhos lembrando meu último episódio em Janku, do que aconteceu a Yuuto. Quando vejo, estou berrando e chorando, fazendo minha cabeça parecer que vai explodir.

–Acalme-se. Pelo menos ele não está na Terra para presenciar a destruição que Kami fará acontecer – diz Ally – Não é o fim do mundo. Pelo menos, ainda não.

–Quem é você? – pergunto lutando contra as lágrimas.

–Tenho vários nomes – responde ele – Pode me chamar de “Ninguém”, assim como você. Não é?

–Seu... – rosno, ele me enganou fingindo-se meu aliado.

–Quer ver nossa cerimônia de abnegação da alma? – Ally desce de seu trono e vai até Hakochi.

–O que vai fazer? – pergunto desconfiada. É óbvio que coisa boa não é. Mas por que Hakochi não faz nada?

–Hakochi não quer mais viver essa eternidade, ele sacrificará sua alma pra me alimentar – conta ele.

–O quê?

Não posso crer em suas palavras, Hakochi jamais faria isso. Quer dizer, eu não o conheço direito. Mas ele é orgulhoso, não se deixaria levar assim tão fácil.

–Cale-se Hikari – ordena Hakochi destruindo todas as minhas expectativas – Eu não queria mais ver isso: destruição, escuridão, maldade... Não aguento mais! Por favor, me deixe!

Não posso entendê-lo. Quem iria ser tão covarde a ponto de entregar sua alma? Não posso deixar assim! Não posso!

–Não! – um impulso me leva a correr e chutar o rosto de Ally.

Fico paralisada um instante imaginando as mil coisas que ele poderia infligir a mim, apavoro-me arrependida vendo seu sorriso sádico.

–Nightmare.

Tudo parece para no tempo e flutuar, me movo tão lentamente como se estivesse no espaço (bem, ele está acima de minha cabeça). O que ele fez?

–Você acha que é bom ser feliz? Viver em paz? – pergunta Ally – Sua alma nasceu nas trevas e morrerá nas trevas.

–Você está errado! – discordo.

Meu nome não é mais Nightmare, a Nightmare foi morta no tempo, prometi para Yuuto e pra mim mesma que ela não voltaria.

–Vamos ver qual. seu maior medo?

De repente sua forma paralela se torna um único corpo, fico pasmada fitando a figura insana e fatal em minha frente. O que ele está querendo provar com isso? Sou eu.

–Você é trevas Nightmare – diz minha eu que na verdade é Ally – Um novo nome não muda isso, Você matou milhões de almas inocentes, destruiu, quebrou tudo. Seu coração pertence às trevas e não há nada que mude isso.

Suas palavras são dolorosas, ainda mais dolorosas que o tapa que ele me dá enquanto choro como uma criança, lamentando por minha alma suja e corrupta. Lágrimas já corrompidas pelo sangue que derramei por séculos... Mas o que me levou a fazer isso? O que leva uma pessoa a matar, destruir, quebrar?

Covardia.

–Pare de chorar! – Ally me dá outro tapa – De que vai adiantar? Você é má, se assuma!

Eu não quero ser uma covarde, já não quero mais ser Nightmare. Quero ser forte, forte como Yuuto conseguiu ser apesar de ter medo, quero ser forte pra derrotar as trevas em meu coração.

–Reaja, sua idiota! – Ally me joga no chão e aperta meu pescoço – Você destruirá todos que se aproximarem, é o destino, abrace-o e o ame!

Continuo a chorar e ele me esfaqueia sem dó, não consigo nem sequer evitar os gritos, o choro inútil de uma alma amaldiçoada. Mas não quero matar Ally, não quero destruir mais nada. Só quero viver.

Tudo o que vivi até agora, os momentos felizes e tristes não se apagarão. Amei, sofri, sorri e chorei. Mas mesmo com todos essas trevas, tive esperança, e nunca estive sozinha. Nunca estarei sozinha.

Dou um soco em Ally determinada a vencê-lo, e a mim mesma.

Ally puxa meus cabelos e perfura meu olho com uma lâmina, mas por mais que a dor seja enorme não desistirei na luz.

Tenho Aika pra ser como minha irmã e me amar sempre...

Ally me dá um tapa e me beija a força, mordendo minha língua. Dou um chute, bem ali... ele cambaleia para trás, roubo sua faca e o apunhalo.

...Tenho o Kori que me fará rir e me irritará como um irmão mais velho...

Mesmo com as facadas, Ally não parece sentir dor, ele me faz cair, mas rolo para o lado antes de levar o golpe.

...Tenho a Tsumi e o Gekkou pra shippar e rir de sua amizade colorida. Tenho o Chiyo e a Aoi, que também, por mais idiota que aquele demônio seja, ele também faz parte de minha família.

E não vou decepcioná-los.

Ally se prepara pra me atacar mais uma vez, mas para, chocado com o abraço repentino que lhe dou.

–O que está fazendo? – pergunta pasmado.

–As trevas também podem ser boas – digo sorrindo – Onii-chan.

Uma luz começa a nos cercar iluminando todas as trevas ao redor, iluminando nossos corações. Entendo agora porquê meu irmão morreu: dois dias antes ele tinha atropelado uma mulher e uma criança, elas não morreram, mas ele estava mal apesar de não dizer.

–Onii-chan, você não é mau – falo abraçando-o mais forte – Até a pior pessoa do mundo pode ser perdoada, não se condene, ainda há luz no meio dessas trevas. Você não é um demônio, não é um assassino, é meu irmão. Eu te amo.

Nossas lágrimas caem e desaparecem no ar, assim como o corpo dele que se dissolve na luz, acho que agora, meu irmão finalmente encontrará paz.

–Obrigado, nee-chan...

A luz apaga pouco a pouco até só restar eu e Hakochi ajoelhado no chão da caverna planetária. Meu nii-chan foi salvo, eu fui salva, Hakochi foi salvo. A luz é mesmo a única que salva.

Meu coração pode ser feito de trevas, mas onde há trevas há luz. E farei meu melhor pra espalhar essa luz pra todos que necessitam. Para que todos alcancem a felicidade no meio desta calamidade.

As trevas também podem ser boas.