Aika

Johann avança com sua espada e segura meu pulso para me tirar dali.

Ele me joga para o lado e caio cambaleando numas lixeiras cheias d’água.

Percebo que o garoto que me tocava era aquele demônio que deixamos no Inferno: Chiyo.

Johann faz um som parecido com o de um gato quando está com raiva e aponta a espada pra ele.

— Ela é minha! Vá embora! – ordena.

— Eu vou – diz o Oni – Mas com uma condição.

— Diga.

— Quando vocês virem a Hikari... Matem-na – propõe.

Johann me olha. Arregalo os olhos, babando ao imaginar a cena grotesca e doce. Isso seria perfeito!

— E se não fizermos isso? – indaga Johann.

Praguejo em silêncio. No que ele está pensando?! Eu quero matar a Hikari! Mesmo sem sua permissão! Vou fazer isso!

Chiyo ri.

— Eu sou um Oni do bem, okay?

— Eu não – diz Johann – Te matarei antes que olhe pra Aika.

O Oni só ri com desdém e voa pra longe.

Johann me segura pelo braço e o aperta. Solto um grunhido de dor e reclamação. Ele apenas me olha friamente.

— Você não vai matar a Hikari.

— Quem disse? – desafio.

— Eu disse. Posso matar você antes disso.

Me retorço pra me libertar. Não quero ficar perto dele. O que é esse comportamento que muda de opinião toda hora? Por que ele diz uma coisa e depois diz outra que é totalmente oposta?

— Ei, por que me salvou?! – questiono confusa – Disse que não significo nada pra você!

— Não acredite em tudo o que as pessoas dizem.

Um sorriso.

Isso é amabilidade ou sorriso demoníaco? Um deboche? Um amor? Uma brincadeira? Mentira?

— Eu te odeio – falo.

— Eu também me odeio – é só o que ele diz enquanto me empurra pra algum lugar que não sei onde vai dar.

Por que ele sempre tem que dar essas respostas estranhas? Isso dá raiva!

Johann para, repentinamente, me deixando confusa.

— O que houve, criatura?!

O chão começa a tremer apavorando-me.

— Há, ela só sabe fazer isso! – ri ele zombeteiro.

— Como assim? O que... – antes que eu possa perguntar, o chão à meus pés cede, Johann me puxa tão forte que não há como eu não sair do buraco em que quase caí.

Corremos cambaleando pelo chão caindo ou se desprendendo e voando no ar por algum motivo. Por que ele está sorrindo tanto? Será que sempre leva tudo na brincadeira?

Tropeço.

— Há – um suspiro antes de cair, não é?

E fico pendurada por sua mão apenas. O desespero me toma de um jeito louco. Mas por algum motivo quero morder a mão dele e me soltar, talvez por suas unhas estarem ferindo-me por estar tão agarrado à mim.

— Pare de se mover assim! – ordena Johann tentando se manter firme – Você não morrerá aqui!

Como ele pode ter tanta certeza?

Então, seus olhos ficam arregalados por motivos misteriosos.

— Merda – murmura ele de um jeito estranho.

E ele cai.

As trevas nos abraçam como fogo nos consumindo.

Abro os olhos, dolorida num chão tão frio que queima a pele. Respiro fundo as trevas em volta.

Olho para o garoto sentado ao lado no chão, olhando por uma fresta numa porta, os olhos azuis são importantes demais pra esquecer.

— Sora? – me surpreendo. De novo? Estou sonhando?

Ele aponta para a porta por onde espia. Olho também e vejo eu mesma... tentando matar Hikari. Por que isso está acontecendo?

De repente, me torno a garota enlouquecida assassina.

Eu realmente quero matar a Hikari, não?

Raiva.

Destruo o solo e algumas coisas em volta nas tentativas de matá-la. Estou com raiva, é injusto, Hikari já é bem feliz. Por que ela precisaria do Kori? E porque ele escolheu ela? Ela é mais forte por acaso? Mais bonita? Talvez mais incrível?

Isso tudo é bem verdade... e me enche de raiva.

Ergo o braço pra outra tentativa de matar, com a raiva no limite, enlouquecida por um amor cego a alguém que nem sequer olha pra mim. Sou detestável. Mas isso dá muita raiva!

— Oye! Que está fazendo?! – uma espada diferente da katana de Hikari bloqueia minha loucura.

— J-Johann? – percebo que aquilo tudo era apenas um sonho idiota, mas alguns vestígios de raiva continuam me prendendo na irritação – O quê? Você... onde estamos?

— Presos, idiota! – xinga – Não saia por aí batendo nos outros só por um pesadelo!

— Cale-se! – me irrito mais.

— Cale-se você! – retruca ele – Quem pensa que é? Tenho mil setecentos e cinquenta e um anos!

— Dane-se sua idade! Ainda parece com uma criança, seu pirralho!

— Não tenho culpa de ter morrido assim! – ele desvia o olhar se calando – Faço mil setecentos e cinquenta e dois hoje.

— Já é outro dia? – faço uma pergunta besta, ora, ele está de aniversário, mas está tudo tão melancólico.

Seu olhar parece vago e até um pouco triste apesar de irritadiço. Sento-me ao seu lado e fito esse olhar estranhamente melancólico. Como será que ele morreu?

— Ei, Johann – penso em perguntar, mas não se devo.

— Diga logo o que você quer – cospe ele pra fora como se lesse meus pensamentos.

— Hum... é que... – hesito um pouco, mas resolvo soltar as palavras logo – Como foi que você morreu?

— Quem se importa? Nós estamos presos e você pode morrer! – ele não me olha nos olhos.

— Você nem se importa se eu morrer, pare de se fazer – digo – Diz logo.

— Como você é chata e egoísta! – reclama suspirando – Daqui a alguns minutos vamos ter que sair daqui, vou parar o tempo por agora, okay?

Como ele pode saber tudo? Coisa mais estranha! E o pior é que não está nem aí pra nada! Como se fosse um bruxo sabidão! Raiva... ele é fofo... Por que ele morreu tão fofo?!

— Foi há muito tempo, neste mesmo dia – começa...

“Sempre fui um garoto perturbado, era muito apegado à minha irmã e ficava maluco por qualquer coisa que fizessem à ela. Mesmo que apenas tomassem dela um simples brinquedo, eu não perdoaria.

Minha irmã era minha princesa, que eu protegia a qualquer custo.

Mas não consegui cumprir essa promessa.

Minha família estava muito preocupada com meu comportamento maníaco e compulsivamente psicótico, matei dois garotos e o cão deles e isso foi o suficiente para me exorcizarem. Claro, isso já faz mil anos mais ou menos”

Imagina só? Exorcizar um garotinho? Se essas pessoas soubessem sobre mim me queimariam numa fogueira.

— “Depois de um tempo” – continua -“Me mantiveram preso numa cama, os dias pareciam infinitos e extremamente sombrios lá. Até que ouvi falar que minha irmã havia sido raptada. Eles conseguiram trazê-la de volta, bem, o corpo dela estava bem. Mas estava completamente insana por motivos desconhecidos. Apavorei-me. E num certo dia, fugi.

Demorou um tempo, mas encontrei uns sujeitos estranhos que conheciam minha irmã. Eles eram cientistas miseráveis que faziam experiências com o cérebro humano. Principalmente garotas. E transformaram minha irmã numa louca!”

— Você os matou – deduzo.

— Definitivamente – concorda – E minha irmã me matou logo depois.

Arregalo os olhos. Isso é muito confuso pra minha cabeça assimilar!

— Por que ela fez isso? – indago incrédula.

— Vai saber? Ela estava fora de si – diz Johann tentando esconder a tristeza – Mas ela me disse uma coisa muito estranha enquanto eu estava morrendo: “Você vai voltar e me salvar da próxima vez, não é onii-chan?”.

Isso é tudo muito estranho. Por que ela diria isso? Por que ela mataria seu próprio irmão e depois diria isso? E por que, diabos, estou preocupada com isso?

— Essa garota... Johann, ela era eu? – as palavras voam impulsivamente, isso é estranho, mas parece tão... certo.

— Sim – afirma – Parece que você continua com a mente bastante confusa, não é nee-chan? – ele sorri chorando.

Nunca pensei que veria esse pirralho demônio aristocrata chorar.

De repente, ele parece tão frágil e miserável como eu. Dois miseráveis cheios de raiva e rancor. Injustiçados? Não, idiotas que seguem sua intuição errada, talvez.

Pena?

Kami não tem pena. O tempo é cruel também, ele não fica parado pra Deus. E eu fico totalmente sozinha.

Sim, Johann começa a virar pedra. E sim, estou com raiva, muita raiva.