Wesen Para Vingar escrita por GhostOne


Capítulo 2
Punk'd


Notas iniciais do capítulo

Então... Estamos de volta! Nada a dizer, fora que a nossa introdução é de uma fanfic americana de Faking It, Some Streets Lead Nowhere, escrita pela lysser8312.
Boa leitura!



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“Você não consegue, realmente, lembrar como chegou a esse ponto porque, olhando para trás, nunca houve um momento específico que levou a essa queda.”

*

− Vamos, Jane! – A voz de Gabrielle parecia florear no ar. – Você também, Kira! Eu já estou pronta faz, ó! – Ouvi um estalo de dedos e sorri.

Ajeitei as alças do meu salto e fiquei de pé, buscando equilíbrio para enfim ir até Gabrielle. Seu cabelo loiro estava cheio de ondas. Os olhos verdes me escrutinaram.

− Por que você é tão bonita, J? Nenhum homem vai olhar pra mim assim! – Ela fingiu choro. – Vai ficar em casa!

− Não se preocupe, vou me deixar escondida. – Peguei minha jaqueta preta (como o resto das minhas roupas) e a vesti. – Nem essas mechas vão chamar atenção.

− Não tem como! Esses seus olhos cinza, seu cabelo preto, repicado e divino, essas mechas azuis... Tão linda! Eu nem posso me comparar. – Ela nos virou para um espelho ali perto. – Enquanto eu, com meu cabelo loiro comum, olhos verdes comuns, rosto comum... Não chamo a atenção!

− Mas é claro que chama. Você é linda. – Ao contrário de mim, Gabrielle tinha os cabelos bem loirinhos, um tom que lembrava creme e chantilly, lisos e suaves. Seus olhos eram de um verde esmeralda misterioso e meio escuro, e sua pele era branquinha, perto do albino. Suas roupas eram todas claras, o que a fazia parecer uma luz flutuante. Ela realmente era linda, mas eu odiava aqueles acessos de autopiedade, com ela se botando defeito só pra gente ter que elogiá-la.

Eu, como contraste, vestia roupas pretas, totalmente. Minha blusa tinha rasgos que revelavam parte da pele do lado do abdômen, e era bem colada. Minha calça era de couro preto, com correntinhas pratas pendendo dos passadores. Minha jaqueta era de jeans preto, meus sapatos eram pretos e minha maquiagem girava em torno do preto. Máscara de cílios, sombra cinza, delineador. A única coisa colorida em mim era meu batom, vermelho escuro, que nem deveria ser chamativo, mas em um mar de preto, era impossível aquele batom ser discreto, e as mechas azuis do meu cabelo, cortado na altura dos ombros, liso e, como disse Gabi, repicado.

− Ei! Vamos! – Kira desceu as escadas, usando uma blusinha solta verde, uma calça azul e uma jaqueta do mesmo tom. Kira tinha o cabelo castanho, recentemente tingido de vermelho, curtinho, todo cheio de cachinhos que pulavam com o menor movimento. Seus olhos eram pretos, um preto que te sugava a alma.

Algumas vezes, aquelas duas me lembravam...

− Kira, que linda! – Gabi a abraçou. – Vamos logo, eu quero uma companhia masculina para a noite.

− Seremos só nós tocando guitarra hoje, Kira. – Ela sorriu e concordou, pegando as chaves.

*

− Bela moça... – Uma voz conhecida sussurrou ao meu ouvido.

− Phillip! Oi! – Virei-me e vi o loiro bonito que gostava de mim. Seus olhos castanhos passearam por mim. – O que faz aqui?

− Eu quis ter uma típica noite de sexta feira. Posso? – Ele apontou um banco ao meu lado, e eu acenei com a cabeça. Phillip se sentou. – Obrigado.

− Um scotch aqui pro meu amigo. – Pisquei pra ele enquanto o garçom ia embora. – Por minha conta.

− Jane, eu não posso...

− Você não pode me recusar! Senão eu fico triste! – Fiz biquinho, e Phillip ergueu as mãos, fingindo derrota.

− Ok, ok. Mas deixe-me te pagar um também.

− Ah, eu já estou no meu último...

− Por favor. Não posso deixar essa barato. – Ele fez a mesma carinha que eu, os olhos chocolate brilhando. Suspirei. Ele era uma graça mesmo.

− Tudo bem... – Ele sorriu abertamente. – Só me deixe terminar esse aqui.

− Qual você vai querer?

Phillip pegou o copo que o garçom lhe trouxe e tomou um gole. Por um segundo, olhando pra ele, lembrei-me de...

Mordi os lábios, empurrando a lembrança desesperadamente para o fundo da mente. Phillip se assustou.

− Tudo bem?

− Tá, é só... – Ergui a mão para o estômago. – Deu uma pontada dolorida agora... Já tá passando.

− Que bom. Uma mulher bonita dessas não devia sofrer. – Sorri com seu galanteio, uma memória tomando minha mente, mas eu a chutei novamente.

− Eu não sou bonita. – Fingi.

− Mas é claro que é! – Ele ergueu meu queixo delicadamente. – E mais. Você é linda, e inteligente, sabe tocar guitarra e ainda bebe sem reclamar. Parece até um sonho.

Ele se aproximou devagar, e eu, mesmo que não quisesse magoá-lo, virei o rosto. Eu precisei, eu não aguentei.

− Desculpe. – Virei o copo na minha boca, sentindo a garganta queimar, e eu gostei da sensação. – Mas eu não posso fazer isso.

Levantei-me, mas me arrependi. Eu não podia ficar agindo tão esquiva, sendo que eu era Jane. Supostamente solteira. Meu coração ia pesar, mas...

− Desculpe de novo. – Sentei-me e pus uma mão no joelho dele, fazendo carinho para consolá-lo. – É só que... Não quero ir rápido.

− Ah, então tudo bem. Mas saiba que sempre estarei aqui. – Ele piscou.

Eu sorri e terminei meu drinque, ajeitando o mar de mechas que queria vir pra frente do meu rosto. Ele pediu uma repetição do primeiro, e nós ficamos conversando, e logo eu me esqueci da outra pessoa, e voltei a ser a Jane de sempre.

E era bom.

*

Mais tarde, de noite, quando Kira já tinha dormido e Gabi estava na casa de algum homem (apesar de leve como luz, ela era promíscua...), eu me vesti com minhas roupas de sempre e saí de casa. Elas sabiam que eu fazia aquilo, e já haviam me dito para parar. Mais de uma vez. Eu nunca ouvi.

Tinha 50 dólares no bolso, só pra garantir, afinal nossa rodinha era de amigos e nós dividíamos praticamente tudo. Praticamente. Nenhum louco ali arriscaria a saúde dividindo alguns apetrechos.

Demorou um pouco, afinal nós meio que nos escondíamos no topo de um prédio lá pelas bandas da periferia da cidade pra ninguém reclamar, mas o James (amigo que eu conheci pelo Phillip) estava lá e era morador, por isso me esperou e me acompanhou na subida.

− Eu achei que você não vinha, J – Ele confessou, passando um braço pelos meus ombros. – Fiquei com medo da mais durona dos nossos não aparecer para cuidar de nós assim que nós apagarmos.

− Calado, você queria que eu arrumasse tudo enquanto se aquecia com as biritas. – Ele riu.

− Ahn, também. Mas você é uma inspiração para eu me recuperar, quando estou chapadão e você ainda tá bem... – Eu que ri dessa vez.

− Trouxe as coisas?

− Seeempre.

Quando chegamos lá, Julia, Callie e Potter (a gente chamava ele assim por causa de uma cicatriz na testa) já estavam lá, compartilhando um cigarro.

− J! Chega mais! – Julia, com seu cabelo loiro e mechas rosa (ela se inspirou em mim) afastou-se para me deixar sentar. – Toma, dá uns tapinhas.

Tomei o cigarro dela e traguei, sentindo a fumaça queimar de leve minha garganta, mas eu estava costumada com aquilo. Na verdade, eu amava aquilo. Amava as bebidas e as drogas, amava ser Jane.

− Me passa essa bebida – Estendi a mão pra garrafa cheia de diferentes drinks alcóolicos, uma mistura que Potter chamava de Blackout. E ele tinha razão. Você apagava depois de três goles.

Eles, não eu.

− Potter, essa bebida é dos deuses – Callie disse, rindo e deitando. – Esse porre vai ser irado. Julia, trouxe as paradas?

− Opa. – Ela tirou um maço de cigarros e uma saquinho com algumas ervas dentro. – Vamos ao mundo dos sonhos, amigos.

Ela jogou as ervas dentro de um pote com pouca profundidade e com o fundo cheio de palhinhas. Julia catou um cigarro, acendeu, e todos nós demos um trago antes dela jogar nas palhas e acendê-las.

A fumaça começou a subir, e nós nos inclinamos para respirar o ar contagiante e viciante das drogas sendo queimadas.

− Delícia – Julia suspirou. – Aqui, galera. Uns cigarros a mais. – Ela jogou o maço pra nós, e os rolinhos foram de mão em mão.

− Eu trouxe ecstasy – Callie deu uma pílula para cada um de nós. – Aproveitem a noia.

Nós colocamos a coisinha na boca e então tomamos um gole do Blackout pra ela descer. Ficamos inspirando o ar drogado e fumando até as pílulas começarem a fazer efeito, então ficamos de pé, e colocamos música e começamos a dançar. Eu vi Julia tropeçando três vezes por causa dos efeitos da bebida, Callie também não estava se aguentando muito. Só Potter; James estava vomitando num cantinho.

− E aí? – Me sentei ao lado dele, dando um loooongo trago na coisinha entre meus lábios. – Nunca te vi ficar porre com isso.

− Eu sei me dosar. – Ele me estendeu a mão com a garrafa. – Quer?

− Claro. – Peguei o recipiente e bebi mais. – Nossa, essa bebida é divina.

− Eu também nunca te vi apagar, Jane.

− Eu sei me dosar, também. – Ele riu.

− Nem vem! – Ele bateu no meu ombro com o dele. – Eu vejo você, sempre bebendo, usando todas as drogas que a gente traz. Como você não tem overdose?

− Tenho a resistência de um touro? – Sugeri, e era verdade. Eu tinha mesmo.

− Bom, tenho um traguinho especial pra nós dois... – Ele mostrou um cigarro gordo. – É de maconha, especialmente recheado com um fininho. Vamos? – Ele foi até o pote, me puxando pelo braço, enquanto White Stripes tocava no volume máximo. Nós inspiramos a fumaça, ainda subindo, e ele acendeu o cigarro nas brasas com alguma dificuldade enquanto eu ria da atrapalhação dele. – Ei, não ri não!

− Mas tá engraçado! – Ele finalmente acendeu e então puxou o ar pelo cigarro, fumando profundamente.

− Só por isso, você não vai aproveitar, JJ. – Eu roubei o cigarro dele e suguei o ar e a fumaça, querendo tanto que aquela chapagem funcionasse em mim.

− Acho que vou sim.

Nós ficamos lá por um bom tempo, fumando, bebendo e então Callie achou um pouco de pó guardado na jaqueta, e nós cheiramos e eles ficaram loucos e chapados enquanto eu fiquei com o resto da bebida e das drogas, aproveitando a leve brisa que eu sentia depois de horas usando aquelas paradas.

Eu os invejava. Eles não precisavam de quase uma garrafa inteira de bebida pra começarem a ficar bêbados. Eu tomava quase tudo do Blackout e só começava a me deixar alegrinha.

Droga.

Terminei a garrafa e peguei o cigarro de maconha, fumando-o com muita vontade, e então peguei um pouco de pó e cheirei, pra depois pegar outra pílula de ecstasy e ingeri.

E então eu comecei a sentir o mundo girando um pouquinho, pouquinho...

Mas eu não estava muito noiada. Só alegrinha, como Callie ficava quando tomava uns três copos de Jack Daniels e ela começava a ficar de língua solta.

Ah, minha resistência...

Eu fui arrancada dos meus pensamentos quando ouvi Julia cuspir as tripas do lado da casinha que dava acesso ao telhado. E, como eu era a única mulher sóbria por ali, decidi ir ajudá-la.

*

No dia seguinte, eu só fiz jogar um pouco de água no rosto para tirar os resquícios dos efeitos da bebida do organismo e até pensei em vomitar, mas achei que era doentio demais, considerando o tanto que eu havia me drogado na madrugada. Decidi ignorar a ideia e as pernas levemente trêmulas (quase nada de tremedeira, juro!) e fui me vestir para o trabalho.

− J? – Gabrielle chamou, amarrando o cabelo num coque. – Eu voltei pra casa e você não estava aqui.

Ai, lá vem...

− Sim, eu saí de novo. – Sorri pra ela, fazendo carinha de culpada. – Ooops.

− Jane, você não falou que estava ficando limpa, apesar do cigarro? – Gabi cruzou os braços pra mim. – Sabe como eu vou ficar se um dia eu chegar e descobrir que te acharam morta de uma overdose?

− Eu não vou ter uma overdose. Sei o que estou fazendo. – Respondi, enquanto passava maquiagem. – Relaxe.

− Não posso. Eu e Kira nos preocupamos com você, e seus vícios estão piorando, acha que não percebemos? Antes você conseguia esperar até o fim do serviço, agora você tem que parar de trabalhar só pra ir fumar! Além do mais, esse cantil – Ela pegou o cantil que eu costumava encher com licor de chocolate e vodka. – Nunca mais o vi vazio. Parece que ele não pode ficar vazio.

− Mas, Gabi... – Virei-me pra ela. – Nem são cigarros de verdade.

− E seus “amigos” não levam aquelas bebidas fortes e um monte de drogas na madrugada? – Ela rebateu, e eu fiquei calada. – Por favor, Jane, para com isso.

− Eu não posso. – Eu não podia falar nada pra ela. Eu não era viciada! Mas como iria explicar aquelas coisas para uma...

− Jane, mesmo que você demore muito pra ficar chapada ou bêbada, porque eu nunca te vi assim, não significa que você é imune e que um dia seu organismo não vai se sobrecarregar! – Ela agarrou meus pulsos. – Se você precisar de ajuda, nós estaremos aqui. Mas larga essas coisas, Jane, por favor.

Suspirei.

− Você não entenderia o porquê de eu não poder largar. – Sorri para ela, tristemente... – Eu não posso lembrar.

− Do quê? O que te persegue, Jane Matthews? – Ela me abraçou. – Você não precisa ter medo, pode confiar em mim.

Eu sei que posso, Gabi! Mas se eu te contar e te mostrar, se eu ainda pudesse te mostrar, você ficaria louca!

− Vamos trabalhar. – Assegurei pra ela. – E hoje não vou fumar, se isso te preocupa tanto.

− Eba! – Ela me abraçou super forte. – Agora vamos, combinei com meu paquera de nos achar na lanchonete.

*

Kira ia de carona comigo na moto; nossa lanchonete ficava na frente do píer, com a Roda-Gigante bem ali, logo, era um ótimo lugar para turistas que tinham fome e banhistas que tinham nadado a tarde toda e queriam um sanduíche.

Nós ganhávamos uma grana interessante com nossos serviços, e juntando, conseguíamos bancar a comida do mês (não tínhamos que pagar aluguel, a casa era da Gabi) e alguns luxos. Não era uma vida de rico, mas a gente era feliz.

Enquanto eu amarrava o avental, encarei-me no espelho do banheiro e tentei, mais uma vez. Não vinha. Não acontecia nada. Meu rosto humano continuava... Humano.

E era por aquilo que eu precisava das drogas e da bebida. Além de bloquear um pouco as memórias, todas as substâncias acabavam bloqueando minha woge. Eu me tornava temporariamente humana.

E eu gostava daquilo.

Minha vida como Jane era perfeita. Meio acabada, mas perfeita. E Santa Monica era minha casa agora.

Eu estava lavando o rosto e pensando em trocar as mechas azuis por pontas azuis e invejando Gabi pelo paquera super gostoso dela quando Kira surgiu na porta.

− Morreu? Ah, não. Tem um cara na mesa seis, e esse é seu setor. – Ela sorriu. – Adivinha quem é... – Eu sorri. Phillip.

− Tô indo.

Fui até ele, depois de me checar no espelho e garantir que estava bonita.

− Oi, Jane. – Ele piscou. – Será que a moça gatinha me serviria?

− Sou paga pra isso. – Preparei meu bloquinho para anotar o pedido dele. – O que vai querer?

− Anote sem questionar tudo o que eu te falar, ok? – Assenti. – 555... – Estranhei a sequência de números, mas anotei. – 504 4268.

− Bom, devo assumir que isso é um código pra quatro sanduíches, duas águas tônicas, uma Budweiser, um suco de laranja e um hambúrguer com queijo extra? – Eu perguntei, enquanto analisava os números e verificava o que poderiam ser no cardápio memorizado na minha mente.

− Bobinha, acho que ficou claro o que esse número é. – Ele sorriu pra mim. – Mas vou querer um hambúrguer double cheesse com uma Budweiser, por favor.

− Saindo já. – Eu me virei pra ele depois de anotar o pedido e fui levar pra Kira, que era a cozinheira. – Capricha. – Eu entreguei a folhinha pra ela, mas só depois de rasgar o número de Phillip e guardar no bolso.

Fui limpar e organizar as mesas do meu setor enquanto nenhum pedido saía, e durante isso, Phillip chamou.

− Ei. – Ele assoviou e estalou os dedos enquanto me chamava, e eu fui até ele.

− Sim?

− Gabrielle comentou sobre você ter saído ontem de noite pra se drogar. – Ele mostrou o desapontamento em seu rosto. – Poxa, Jane. Eu achei que você não tinha continuado nessas coisas.

− Bom... – Eu suspirei. – Você também não entenderia.

− Tenta me explicar.

− Não dá.

− Você é viciada?

− Mesa oito! – Suspirando de alívio bem discretamente, levantei.

− É uma das minhas mesas. Tenho que ir. – Levantei-me e me afastei, cansada de ouvir todos falando sobre como eu deveria largar as drogas e ir para a luz. Mas eles nunca entenderiam, como era impossível para eu me drogar, ficar chapada de verdade, me viciar e morrer de overdose. Meu sistema era poderoso, “queimava” as substâncias no momento em que elas entravam no meu corpo. Só que eles não sabiam daquilo.

Nem poderiam saber que o único motivo pelo qual eu não as largaria era porque elas me ajudavam a ser... Humana.

Enfim, depois eu fui servi-lo e o resto do expediente transcorreu de boas. Eu não fui fumar, como tinha prometido a Gabi, e elas ficaram fofamente felizes por eu ter me aguentado. E Phillip nos alcançou e se juntou ao grupo da comemoração e nós fomos ao píer para olhar a praia e ficar de bobeira.

E foi bom como fechamos o dia.

Não foi bom como começamos a noite.

− Vamos pra casa, Jany. – Gabi passou o braço no meu ombro e nós fomos nos distanciando dali, só que aí ela disse: − Nada de sair hoje a noite.

− Quê? – Quase gritei.

− Você vai ficar limpa, Jane. – Kira me disse. – Vai parar de usar essas coisas.

− Eu não posso! – Livrei-me das mãos delas. – Eu não posso parar de usar aquelas coisas!

− Tá vendo, Jane... – Phillip segurou minhas mãos. – Você está ficando viciada. Precisa se livrar disso, ou pode acabar morrendo!

− Eu não vou ficar viciada! – Tirei minhas mãos das dele. – Me deixa! Droga!

− Olha isso, Jane. Tá fazendo escândalo por drogas... – Kira tentou se aproximar de mim, mas eu estendi uma mão.

− Isso não é uma questão de vício ou não. É uma questão de... Vida ou morte. – Justifiquei. – Vocês tem que acreditar em mim. Coisas ruins vão acontecer se eu largar as drogas.

− Que coisas? Coisas piores ainda vão acontecer se você continuar com elas, Matthews! – Gabi me sacudiu pelos ombros. – Muito piores. E eu estou irredutível. Vai ficar em casa hoje, Jane.

Merda.

Eu teria que me contentar com o que tinha lá em casa. E não eram os cigarros nicotina-free.

*Nick*

E era o fim de mais um dia de trabalho. Trabalho manual, preenchendo papelada e bebendo café.

Pelo menos era o que a maioria pensava. Eu havia passado metade do tempo tentando achar alguma pista referente ao paradeiro da minha irmã. Nada. Fora os registros recentes dela, Alicia Burkhardt tinha desaparecido.

Então, sempre que eu tinha um tempo sozinho, eu assistia o vídeo que ela havia me deixado de novo, olhando o rosto dela, todas as semelhanças que provavam que nós éramos irmãos, e ouvia a voz dela dizer sempre as mesmas palavras, e ficava pensando quais haviam sido os verdadeiros motivos de ela deixar Portland quando tudo estava bom.

Claro que poderia ser óbvio: Alicia havia literalmente espancado meu chefe e incendiado seu apartamento. Era muito arriscado para ela assumir que havia feito aquilo e ficar por perto.

Mas, quando fomos ver o capitão no hospital, ele disse que ela havia ido lá e ele disse que ela também fingiu não ter feito nada. Por que Alicia faria aquilo? Primeiro: minha irmã não era estúpida, então por que fazer aquilo? Segundo, se ela fosse mesmo fazer o que supostamente tinha feito com ele, não teria se escondido, pelo menos? Não deveria ter evitado que ele a reconhecesse?

Isso eu não entendia.

Então, quando estava na frente de casa, puxei o celular descartável do bolso e coloquei no vídeo.

Todas as mesmas palavras, na mesma ordem, as mesmas frases. Alicia sempre dizia as mesmas coisas, eu já sabia todas elas, mas não me cansava de assistir aquele vídeo. Era minha irmã.

Depois da minha sessão diária de tortura, eu fui para dentro de casa. Já faziam seis meses que minha irmã se fora, e dois que eu havia voltado para a casa de Juliette. Então, na minha vida meio que estava tudo indo bem. Fora o que me restava de família ter ido embora, estava tudo perfeito.

− Oi! – Juliette acenou pra mim do sofá, e mais uma vez ela estava enterrada em livros do trailer. – Como foi o dia?

− Chato. – Tirei a jaqueta e fui até ela. – Leu muito?

− Hm, eu cheguei há meia hora atrás. Então, não tanto... Não prendeu ninguém hoje? – Ela me deu um beijo assim que sentei.

− Os ladrões e assassinos me deram um descanso. Logo, tive muuuuito tempo livre pra preencher relatórios e procurar Alicia. – Juliette fez uma expressão triste que me murchou o coração.

− Acha que um dia ela volta?

− Não. Com toda a sinceridade, não. – Minha namorada colocou uma mão sobre o livro e a deixou ali, por uns segundos. – Por isso estou procurando, mas parece que ela desapareceu no ar.

− Ela não te deixou nada?

− Deixou, mas não acho que... Ela fala que eu sou o único que sabe pra onde ela foi, mas isso deve ser ironia. Já vi esse vídeo umas quinhentas vezes, nunca vi nada. Acho que ela esquece de falar, mas... Ah. Não sei.

− Posso ver? – Encarei Juliette.

− É algo muito... Nosso, Juliette. Ela me pediu pra não mostrar pra ninguém, e eu acho que meio que devo isso a ela. Agora que ela se foi. – A ruiva assentiu, encostando-se em mim.

− Tudo bem. Mas continue procurando, Alicia deixaria alguma coisa pra você e não seria tão difícil a ponto de você não enxergar. – Ela sorriu pra mim. – Mesmo com as ameaças iniciais, Alicia foi uma boa amiga. Ela queria o seu bem, no fim das contas.

− Ela era minha irmã. Acho que era uma obrigação. – Ficamos ali, aconchegados no meio dos livros, porque não havia mais o que fazer e porque era bom estar na companhia do outro. – Alguma novidade?

− Minha irmã ligou. Queria conversar.

− E como vai Daphne?

− Levando. Pelo menos ela não tem que lidar com a nossa mãe. – Juliette se ajeitou em mim e fez uma carinha emburrada. – Ela sempre foi a filha perfeita.

− Ela te ama, Juliette. Só não soube mostrar isso.

− É, talvez. Se tentou, falhou miseravelmente. Mas não quero falar sobre ela. – Ela me encarou e sorriu. – Vamos comer?

*Bárbara*

− Vodka? – Eu ri enquanto Michael nos servia um copinho da bebida transparente.

− Ei, eu sou russo, no fim das contas. – Nós brindamos. – Zdorovye.

− Assumo que isso seja saúde. – Michael virou o copinho como quem fazia aquilo há anos. – Desde quando você bebe?

− A primeira vez que botei vodka na boca foi com 12 anos. – Arregalei os olhos. – Meu pai disse que eu deveria me acostumar, afinal, até recusar vodka na Rússia é falta de educação.

− Vocês, russos, e suas bebidas.

− Ei, isso nem é o mais estranho. Pra lá, se quiser começar uma manifestação, é só esvaziar uma garrafa dessas belezinhas no chão. – Eu comecei a rir.

− Meu Deus. – Eu estendi o copinho pra ele reabastecer. – Tem santuários na Rússia pra vodka?

− Serve a fábrica de Absolut? – Nós bebemos mais uma dose.

Morar com Michael era divertido. O cara era engraçado, nós comíamos a definitiva versão estereotipada do alimento dos solteiros, eu aprendia bastante com ele e tinha arrumado um bom amigo. E cozinhava todos os almoços, o que era legal. Nossas tardes ou eram dando voltas pela cidade ou eram assistindo programas na tevê antiga do hotel.

Além do mais, ele estava me ensinando russo, mas era, bem... Russo pra aprender. Mesmo assim, era muito legal. Alicia tinha feito uma boa escolha e sido uma boa amiga de me deixar com ele.

Em compensação, tinha sido uma péssima amiga por desaparecer.

− Hm, e porque tem tantos sobrenomes estranhos? Só porque é Rússia?

− Na verdade, o sobrenome do filho é o da mãe mais o do pai.

− E como o seu saiu Van Healm?

− Taí. Van do pai, Healm da mãe. Estranho que o nome dela nem muito russo é, então eu meio que me safei. Mas, tipo, me dê o sobrenome do seu pai e da sua mãe.

− Christine e Noel.

− Hm... Christoel, algo por aí. – Curvei uma sobrancelha. – Ei, não sou escrivão pra ficar adivinhando com precisão seu sobrenome de russa.

− Opa, me desculpe. – Mais uma dose pra cada um de nós. – Mais curiosidades para o dia?

− Cerveja pra lá era considerado um refrigerante e dizer à uma criança que gays existem te manda pra cadeia. E chega dessas leseiras por hoje... Às vezes a Rússia é estranha até pra mim.

− E como se diz Rússia estranha em russo? – Ele me olhou como quem diz “sério?”. – Que foi? Gosto de ouvir você falar russo, gosto das suas aulas. Além do mais, está me devendo umas aulas.

− Vou ficar te devendo essa. Agora... Vodka. – Ele pegou a garrafa e entornou um pouquinho na própria boca, de longe. – E como andam as coisas com a sua amiga? A Emily?

− Não andam. Nunca mais nos falamos desde aquele dia.

− Uou. Isso que é cortar contato. Mas, quer dizer, nada? E o namorado dela?

− Também não. Pra onde quer que ele tenha ido, foi de vez. Eu, pelo menos, agradeço aos céus que nenhum deles tenha voltado só pra trazer mais problemas pra nossa vida.

− E quanto a Alicia? – Me ajeitei na cadeira, desconfortável. – Nenhuma notícia dela?

− Eu conversei com o Nick outro dia, e ele disse que está fazendo o que pode pra procurar ela sem ter que colocá-la no alerta geral, o que seria meio chato e eu pedi pra ele não fazer. Mas, fora isso, ela simplesmente sumiu no ar.

− Você ainda tem alguma esperança? – Eu reabasteci meu copinho, vazio por mais tempo do que agradava a mim e ao meu amigo russo.

− Pra ser sincera, não, desde que soubemos que ela sumiu. Alicia, quando some assim, é porque não pretende voltar. E ela sabe como sumir.

− Todos nós sabemos. – Ele também preparou mais um “shot”. – Mas você não se lembra de algum lugar que ela planejava ir, alguma pista? ...

− Alicia só queria chegar em Portland. Era o objetivo de vida dela. – Então uma lembrança voltou à minha mente, beeeem devagarinho... – Não, pera...

− Que foi?

− Uma vez, antes de ela conseguir formar alianças com o bastardo, ela disse que, se um dia precisasse matá-lo, ela fugiria sozinha. Não mencionou pra onde, mas o Nick me disse que o capitão dele afirmava, por toda a vodka que você consiga beber, que quem o tinha mandado pra lá era a Alicia.

− Quem sabe ela tentou matá-lo e não conseguiu? – Michael opinou. – Acha que ela mencionou pra onde?

− Não, claro que não. Isso faria dela um alvo fácil de rastrear.

− Mas, se ela achava que ele iria morrer... – Ele fez movimentos com a mão.

− Ela não é tão arrogante e descuidada. Mesmo assim, que motivos ela teria pra matá-lo, tão do nada, tão... De repente? Eles tinham uma aliança... – E um casinho, mas não vou mencionar isso mesmo que você saiba porque seria maldade furar o corno com os próprios chifres. – Então não faz sentido. É muito irracional pra Alicia. E mais, esse não é o jeito dela de matar. Ela não espanca até a morte.

− É... Tem razão. Mas quem sabe ele não nos diz algumas coisas? – Mike (sim, de vez em quando eu o chamo desse jeito) ergueu as sobrancelhas, deixou o copo de lado e juntou as mãos como quem implora. – Por favor por favor por favooooor!

− Tá. – Eu cedi, dando risada do jeitinho dele. – Vamos terminar essa garrafa e a gente vai.

− Hm, pinguça... – Eu gargalhei dele. – Se bem que... É, eu sou russo, então é o sujo falando do mal lavado. Zdorovye!

*Renard*

Minha perna doía.

Seis meses, e os médicos achavam que eu havia me recuperado bem, estava quase andando sem a bengala, eu estava quaaaase bom de novo.

Só que, de vez em quando, minha perna doía bem onde Alicia havia quebrado. A dor estava bem menos intensa do que das primeiras vezes, porque, das primeiras vezes, era como se o osso estivesse partindo de novo. Ultimamente, era só uma dor perfurante, mas suportável.

Alicia.

Eu não sabia mais o que sentia por ela. Quando lembrava do rostinho de mulher e de menina, das ações ácidas, dos beijos, era como se meu coração quisesse ficar feliz e com saudade, mas então me vinha a memória da noite em que ela me atacou e eu me sentia cheio de cólera. Então eu não sabia se a amava ou odiava.

Talvez eu a amasse com ódio e odiasse com amor.

Bebi um pouco mais de uísque e tentei ignorar a dor, mas ela exigia atenção. Mais que exigia. Aquela desgraça gritava na minha perna, e eu esfreguei a área em busca de alívio, mas foi à toa. Doía bastante.

Levantei-me com algum suplício e peguei minha amiga bengala, usando-a como apoio até chegar no cantinho onde eu deixava meus analgésicos. Peguei uma pílula e engoli-a com a ajuda do uísque. E eu não ligava se o médico não recomendava tomar remédios com álcool. Ele não recomendava, mas também não me proibia.

Bom, eu nunca tinha perguntado se ele proibia.

Enfim, voltei pro sofá depois disso, mas eu sabia que estava lá só de bobeira. Não tinha nada bom na tevê, ninguém da delegacia me ligava, não tinha nada a fazer, aquela pessoa não estava em casa me enchendo o saco. O que me restava era vegetar ou ir dormir.

Aí bateram na minha porta.

Quase agradecendo por ter algo pra fazer, fui atender, mas aí eu parcialmente me arrependi.

Eram Mikhail e Bárbara.

− Bom, eu não sei o que dizer. – Olhei de um pro outro.

− Não diga nada, então, capitão. Podemos entrar? É sobre Alicia. – Eu endureci ao ouvir o nome dela, e senti a cólera e a saudade fervilhando em mim.

Qualquer coisa, era só expulsá-los.

− Entrem. – Fui caminhando/mancando até o sofá. – Querem alguma coisa?

− Ahn, eu tô bem. – Barbie disse. – Michael?

− Nada não. – Sentei-me no sofá, e indiquei as poltronas pra eles, mas só Bárbara se sentou. O garoto continuou em pé, parecendo tenso. – Senta, Michael.

− Não me sinto confortável...

− Imagino. – Respondi e nossos olhares se encontraram, e eu jurava que sentia a porrada do olhar dele. – Então, o que querem saber?

− Alicia. Você fez algo para irritá-la? – Inclinei a cabeça e comecei a pensar. Ela havia dito algo na noite em que tinha vindo em casa?

Havia.

“Quem você pensa que é pra ameaçar meu namorado?”

Encarei o garoto. A única ameaça verdadeira que eu tinha feito era dizer que eu iria entregar qualquer segredo dele para Alicia. E só. Eu não achava que ele confessaria aquilo pra ela.

− Posso ter feito. Por quê?

− A gente tá tentando entender porque ela fez isso com você e depois sumiu... Estamos tentando refazer os passos dela. – Bárbara esfregou a palma das mãos nas coxas.

− Alicia mencionou pra onde iria? – Mikhail perguntou. – Alguma pista?

− Se eu soubesse, teria mandado o Nick atrás dela enquanto ainda estava naquela maca. – Rebati. – Ela tentou me matar.

− Não acho que tenha sido isso. – A jovem me disse, e eu voltei-me para ela.

− Por quê? Você sabe o que ela fez comigo, não sabe?

− Sei, claro que sei. Mas Alicia não é do tipo dramática. O modus operandi dela não é esse. Se ela quer matar, faz certeiro. Teria rasgado sua garganta ou quebrado seu pescoço, não te espancado como fez. – Ela cruzou as pernas. – Notou algo estranho nela?

Mordi os lábios. Fora o fato dela ter aparecido pra quase me matar depois de duas noites que passamos juntos?

− Não sei... Ela me pareceu estranha. Estava vestida de um jeito estranho, falou de um jeito meio... Diferente. Ela era sarcástica, mas não agia desprezível. Eu atribuí aquilo ao ódio dela no momento.

− Como ela estava vestida? – Bárbara sentou-se na beirada da poltrona.

− Uma blusa com capuz, calça jeans. Era muito simples... – Ela semicerrou os olhos, e eles me pareciam tão iguais que era estranho ficar olhando. Será que estavam juntos?

− Alicia não tinha uma blusa com capuz, se eu estou bem lembrada. Não era um suéter? Mesmo assim, ela não tinha...

− Não, era como uma blusa normal, mas tinha capuz. Toda lisa, sem estampa, cinza. – Ela começou a refletir.

− Alicia não usava meeesmo blusas com capuz. Se ela precisasse esconder a identidade, tinha perucas e um boné e maquiagem. Ela achava que capuz era muito... Gangster.

− E mais. Os olhos dela. Ficaram pretos. – Os dois ficaram bem confusos. – Antes de ficarem multicoloridos, eles escureceram a esclerótica. Como se ela estivesse possuída.

− Não, essa woge não é dela. – Nos encaramos. – Alguém tomou a aparência dela e veio aqui.

− Mas como? E então, por que ela fugiu? – Mikhail disse. – Se Alicia não era culpada, não tinha motivos para fugir.

− Mas como ela explicaria isso? – Bárbara ficou de pé. – Como dizer que alguém a clonou? No fim das contas, as suspeitas iriam voltar pra ela mesmo.

− Ela bem que tentou me convencer que não era ela no hospital... – Esfreguei a mão sobre a parte do meu peito em que a suposta Alicia havia retalhado um A. Um A que ficou vermelho...

− Woge de olhos pretos. Meu Deus, quem tinha essa woge? – Ela esfregou as têmporas. – Eu sinto que lembro disso, mas não sei quem era...

Estávamos perdidos. Alicia estava longe, e havia mais alguém na cidade, idêntico a ela e que estava fazendo coisas em nome dela.

− Maya Alsbrook. – Os dois me encararam. – Ela veio pros Estados Unidos, com você. Não pode ter sido ela?

Mikhail travou no lugar, e eu mais a garota o fitamos com toda a intensidade.

− Como sabia disso? – Eu sorri um pouquinho.

− As pesquisas que fiz sobre você. Eu preciso conhecer quem está no meu território. – Bárbara voltou-se pra mim.

− O que você sabe sobre mim?

− Nada. Você estava com Alicia, então não deveria ser uma ameaça. – Esquivei-me com sucesso, porque ela tranquilizou-se. – Mas eu não tinha certeza quanto a ele.

Ficamos em silêncio, e ele estava destilando ódio para mim pelo olhar.

− Muito bem. Eu vim, sim, com Maya pra cá. Não podia arriscar sair daquele inferno sozinho. Só que Maya morreu. – Franzi as sobrancelhas. – Quando ficamos sem remédios, ela voltou a ter surtos psicóticos. Eu tive que matá-la para evitar ser morto. RIP Alsbrook.

− Vem cá... Eu não me lembro de nenhuma Maya no asilo. – A morena voltou-se para ele. – Quem era?

− Ela tinha mudado o nome para Alison, mas eu a chamava de Maya. – Bárbara pareceu lembrar-se de alguém, o que sua reação confirmou direitinho:

− AAAAH! A Alison, dela eu lembro. Morreu?

− Sim, tadinha. Não pudemos roubar os remédios que ela precisava a tempo. – Senti-me ignorado.

− Bom, eu suponho que seja isso. Estão satisfeitos?

− Bem mais do que precisávamos. – Ela levantou-se e, muito de repente, me abraçou. – Obrigada pelas informações. Eu sabia que minha amiga não mataria o cara que ela ama!

Nós três congelamos, principalmente ela.

− Oooopa. Desculpe, Michael.

− Tudo bem. Eu já sabia, mesmo. Hm... – Ele virou-se pra ficar bem na minha frente. – Sabe o que é mais estranho? Acho que, nem um dia antes dela ir te quase matar, Alicia foi pedir pra terminar comigo e ficar com você.

Meu coração trovejou no peito.

− Sério?

− Sério. Ela queria mais três dias pra ter certeza, mas disse que amava outro cara e que tentar continuar comigo era injusto. – Eu não sabia o que fazer, mas não consegui segurar o sorriso direito.

− Bom, isso é... Inesperado.

− E torna ainda mais estranho que “ela” tenha tentado te matar. Enfim, vamos tentar descobrir quem foi e onde nossa verdadeira Ally está. Tchau, Vossa Alteza. – Barbie acenou e os dois foram embora.

Caí de volta no sofá, colocando a bengala apoiada no estofado.

Alicia iria terminar com ele e tinha dito que me amava.

Ela... Me amava.

Mais do que nunca, eu precisava achar Alicia. Precisava tirar todas aquelas dúvidas e queria ela de volta pra mim.

Só que eu mal consegui comemorar minha felicidade quando Adalind chegou.

*Emily*

− Senhorita Cooper, Emilia está ligando, disse que é uma reunião para verificar os negócios.

− Diga que já vou. E as peças demonstrativas, estão prontas?

− Sim, senhorita.

− Ótimo. Leve-as pra sala de Emilia. E Jaline?

− Ela está lá, esperando.

− Tudo bem... Algo mais?

− Não, senhorita.

− Ok. Prepare as peças e pode ir. – Levantei-me da minha mesa, na minha sala da empresa, para ir à reunião que Emilia tinha convocado.

Desde que eu havia enxotado os três traidores da minha casa, as coisas haviam mudado de figura. Eu havia prometido não amar mais nenhum homem, seres podres que são, e me renovei. Entrei como sócia da Desirée, tipo uma aprendiz, dirigindo os negócios de perto, vendo como Emilia agia.

Eu havia conseguido minha própria sala no penúltimo andar (o último era só da presidente), ganhava minha parcela dos lucros, e só tinha do bom e do melhor.

Calcei os saltos de volta e fui para a sala dela, sabendo que teria que aguentar mais uma dose entediante (mas eu estava ficando acostumada, hehe) de taxas de lucro e demanda e preços e blá-blá-blá. Suspirei e entrei.

− Emily, está atrasada dois minutos. – Emilia ralhou. – A presidente deve sempre ser uma das primeiras a chegar.

− Eu estava esboçando.

− Sente-se de uma vez. – E eu obedeci. – Bom, eu estava conversando com Jaline, como você é a futura presidente da Desirée e trouxe toda uma nova face para a linha de joias da sua mãe, estávamos discutindo em deixar você e ela irem para a Internacional Jewelry Expo que vem daqui a dois meses, em Londres.

E o fôlego me faltou.

Esse festival era, tipo, incrível. Uma exposição internacional com as melhores marcas, e nossa empresa sempre esteve lá. E agora elas queriam que eu fosse representar?

MEU DEUS!

Eu ia cuspir meu coração!

− Sério?

− Seríssimo. Se quiser, já começamos a organizar algumas coisas. Temos que fazer a seleção das joias a serem expostas e você provavelmente vai palestrar, embora eu esteja evitando muito isso porque ainda não tem experiência. Mas, se quiser...

− Eu posso palestrar. Mas eu vou precisar de ajuda com os assuntos.

− Você também pode me introduzir. Acho melhor, como você é mais nova no ramo, falar menos. – Jaline disse, arrumando as ondas loiras sobre os ombros. – Aí pode me observar e aprender.

Refleti.

− Melhor. Tudo bem. Além do mais, eu tenho algumas peças pra mostrar, talvez possamos formar uma nova linha e apresentá-la na Exposição...

− Ótimo. – Ouvimos batidas na porta. – Entre!

Eram as joias demonstrativas. Aquelas joias estavam, na minha opinião, lindas demais, e esperava que elas concordassem.

Analisamos as peças, tudo estava bom, elas gostaram de todas, e pediram que eu fizesse mais peças daquele tipo. E eu estava radiante.

Minha carreira estava decolando!

Estava tudo tão brilhante...

*Alicia*

A dor era dilacerante.

As garras abriam caminho pela carne dos meus dedos, e meu corpo caiu da cama, convulsionando. Eu gritava de desespero, mas com os restos de consciência que eu ainda tinha, sabia que precisava sair dali. Se Gabi e Kira me achassem do jeito que eu estava...

Embora meus músculos tremessem, consegui ficar de pé precariamente e, sabendo que não tinha outra maneira, corri para o banheiro, já ouvindo Kira e Gabi acordadas e me procurando.

As garras do Fuchsteufelwild começaram a derramar ácido, minhas gengivas sangravam por causa das presas, meus músculos ardiam na transformação. As drogas haviam dopado meu sistema e ele não estava respondendo direito à woge, por isso a dor. O sangue, os cortes.

Minha visão ficava turva, e depois, extremamente aguçada; eu ouvia os sons do mundo lá fora perfeitamente, o que incluía os gritos de Kira e Gabi, e o principal, minha força e velocidade.

Jane, mulher, o que tá acontecendo?

− J, sai daí, deixa a gente te ajudar!

Eu grunhi, mas de um jeito totalmente animal. Eu dei um chute totalmente involuntário, e os azulejos da parede quebraram.

Não! – Gritei, a voz em woge. – Não entrem!

Eu rugi, e meu corpo voltou a tremer e sacudir, e eu sentia meus ossos doendo e, ainda por cima, dando pancadas direto no chão. Eu sentia que iria ter um ataque logo logo...

Eu tossi e cuspi sangue, sentindo a visão turvar de novo e o coração acelerado. Quanto tempo a mais aquilo iria durar?

A noite continuou assim, eu tremendo e gritando de dor até que eu estava em completa woge. Meu corpo inteiro estava transformado. Dos pés à cabeça, havia pelo e couro e pele e couro e pelo.

Olhei minhas mãos. Elas ficavam mudando, como era com a woge não intencional. Ora minhas garras eram normais, de Blutbad, depois ficavam compridas, como as de Fuchsteufelwild, então minhas mãos ficavam repletas de pelo pintadinho, e então tornavam-se carne podre... E o ciclo ia, e ia, e repetia.

Fiquei de pé, tremendo e com o coração batendo forte. Minhas roupas de dormir haviam rasgado, alguns azulejos haviam sido quebrados, onde o ácido havia gotejado, havia manchas. Olhei-me no espelho.

Jane.

Alicia.

Jane era humana. Jane era uma drogada.

Eu havia voltado a ser Alicia, mesmo que usasse o cabelo curto e com mechas azuis de Jane Matthews.

Abri e fechei a boca, vendo minhas presas. Elas se encaixavam, e os cortes na minha gengiva já haviam curado. Quando a woge de minhas mandíbulas mudou, as presas de baixo alongaram-se, quase tocando a parte de cima do meu lábio; quando a woge mudou de novo, os dentes ficaram podres e escuros, e então mudaram de novo, e voltaram a ser presas.

Eu tinha virado Wesen de novo.

Sentei-me no chão, nua e em woge, e simplesmente deixei as lembranças voltarem, todinhas. Eu deixei algumas lágrimas caírem enquanto as coisas boas voltavam e eu sentia saudade delas, quase desejando que tudo voltasse a ser como era.

Então eu lembrei do que rolou nos dois dias antes de eu largar Portland, e mudei de ideia quanto a voltar pra lá.

Ok, já que estava pensando nisso, eu iria meter o pé na jaca de vez.

Droga, as últimas memórias me doíam tanto! E como estaria Nick? E Renard? E Emily e Barbie e Michael...

Merda, eu tinha deixado muita coisa pra trás, incluindo o que me restava de família, o amor da minha vida, o outro amor da minha vida (ou ex-amor?) e minhas duas melhores amigas (ou uma melhor amiga e outra ressentida?). Mas eu não podia/queria voltar. Era perda de tempo. Todo mundo pra lá, fora Barbie e Michael, queria meu couro.

Logo, por que voltar? Não havia motivo, e mesmo que eu voltasse, eu ficaria... Nas sombras. De tocaia. Guardando, ajudando...

Eu sabia que não seria o suficiente. Eu era ambiciosa por natureza, sempre queria mais. Sabia que iria querer estar com eles, falando com eles, rindo, contando piadas, tocando, sentindo o calor deles.

E seria ainda pior se fosse com Renard. Eu iria querer beijá-lo, tocá-lo pelo corpo todo, iria querer o toque dele de volta, mas ele me rejeitaria com todas as suas forças.

Ou seja: não. Santa Monica era minha casa, agora. E era por lá que eu ia ficar. Eu tinha que voltar a ser Jane e esperava que os ataques fizessem Gabi e Kira perceber que eu precisava daquelas drogas, de verdade.

Então, eu finalmente relaxei, e senti todo o meu ser se contraindo, a pele se movendo, as presas e garras voltando e os olhos latejarem enquanto meu corpo assumia de volta a forma humana. Então, sentindo-me fraca e trêmula e super frágil, fiquei de pé, como antes, e olhei-me no espelho.

Jane.

Alicia.

Onde uma havia acabado, a outra havia começado. Eu havia tanto tentado deixar de ser Alicia que estava me esquecendo de quem ela era. Eu estava mergulhando em Jane, e aquela drogada punk era tão boa pra mim que ela apagou todos os meus traços antigos e me recebeu de braços abertos.

Eu não sabia qual delas eu era mais...

Então, apertei os trapos contra mim e saí do banheiro. As duas estavam ali, embora sentadas ao lado da porta, e Gabi estava tomando café enquanto Kira dormia no chão.

− Ai, Jane, meu Deus... – Ela ficou de pé, parecendo sonolenta e fraca, e de certo ela estava daquele jeito, porque eram quase cinco da manhã. – O que aconteceu?

Eu não sabia como explicar, o que dizer, e mesmo que soubesse, como? Eu sentia o cheiro delas e elas eram...

Wesen?

Tá, ok, mais fácil. Mas como explicar que eu era artificialmente híbrida fugitiva por uma sociedade secreta de guardas Hundjäger?

É, não tinha como, então eu disse a única coisa cabível:

− Eu avisei que coisas ruins aconteceriam se eu não me drogasse. – Abracei-a. – Gabi, Kira. Vão dormir. – Kira mal estava despertando quando me afastei das duas, voltando para meu próprio quarto. Eu me sentia cansada e pronta pra dormir por dias, e eu bem que precisaria do tempo pra me preparar e lidar com a loira e a ruiva no dia seguinte ao meu pequeno atentado.

*

No dia seguinte, eu só acordei depois da hora do almoço, e porque minha barriga estava em um vácuo enorme de fome. Havia uma nota na letra floreada e delicada de Gabrielle.

“Nós dissemos ao Gerard que você estava super mal, e não era de drogas ou bebida. Descanse, que quando voltarmos iremos conversar.”

Oquei, então.

Almocei o resto de frango que tinha na geladeira e todo o arroz, e então fiquei assistindo tevê com a garrafa de licor me fazendo companhia e tocando umas músicas aleatórias na cabeça, até lembrar de uma.

She fills my bed with gasoline...

Droga.

Será que Nick conseguiria pegar a mensagem? E se a música estivesse muito baixa? E se ele não entendesse? O objetivo era que ele não me encontrasse a não ser que fosse extremamente necessário, mas e se ele não me encontrasse de jeito nenhum?

Enfim, bebi mais uns goles da bebida antes de Gabi e Kira chegarem, as duas com cara de quem estavam acabadas.

Eu não queria ter deixado minhas melhores amigas preocupadas.

Se bem que era algo que eu, como Alicia, havia feito repetidas vezes. Então, mais um ponto pra Jane, ela tentava evitar fazer essas coisas.

− Ok, Jane... – Elas pararam na minha frente e eu esperei o que elas tinham a dizer, mas primeiro tomaram minha garrafa de licor. – Mas você não dá uma pausa, né?

− Ontem eu dei uma pausa. Nós vimos no que deu. – Cruzei as pernas e braços. – Então, qual o problema?

− O que aconteceu ontem?

Ai, ai. Como falar, como explicar?

− Bom... – Ajeitei-me. – Vocês são Wesen, certo? – O queixo das duas caiu. – Eu também sou, mas sou um tipo... Diferente. Muito diferente, e muito perigoso. Então eu uso drogas pra dopar meu lado Wesen, e funciona. Essa noite, como vocês não me deixaram eu me drogar, meu organismo voltou a realizar a woge, mas ele não estava funcionando cem por cento, por isso todo aquele drama.

As duas ficaram boquiabertas por um boooom tempo.

− Que Wesen você é? – Gabi foi a primeira a me perguntar.

− Hm, é meio difícil de explicar... Mas primeiro me mostrem quem vocês são. – Gabi e Kira se olharam e então se transformaram.

Gabi era uma Naiad, o que eu achei lindo, e Kira era uma Fuchsbau, o que me lembrou Rosalee e doeu muito no meu peito. Mas ok, ignorei.

− E você? – Kira perguntou assim que voltei ao normal.

− Bom... – Ai, meu Deus. – Lebensauger.

− Ai, esse é feio. Desculpe – Kira se encolheu toda. – Mas não é tão ruim.

− Mas eu sou filha de Blutbad. Acabei saindo mais forte e feroz e a lua cheia ainda me afeta, mas de resto, sou híbrida desses dois. – As duas ficaram boquiabertas, e eu agradeci que sentisse nas veias o fogo de todas as noites de lua cheia. – Por isso, mais perigosa.

− Nossa, Jane... A gente nem imaginava que você seria Wesen...

− É, ninguém imagina que uma drogada tenha uma real razão pra se drogar... – Eu dei de ombros e sorri. – Então, o que vamos fazer hoje? Podemos ir nadar, assim a peixinha se sente confortável. – Sorri pra Gabi e ela concordou.

Era isso.

Eu estava começando a adaptar Jane à Alicia. Eu traria o máximo de verdade que poderia, assim Gabrielle e a ruiva poderiam colocar mais fé em mim, me abrigar mais. Eu não poderia perder minhas amigas agora, então estava juntando o útil ao agradável. Relembrando a mim mesma quem era Alicia, tornando Jane mais real, e fortalecendo os laços com minhas amigas.

E, com sorte, nessa noite eu poderia encontrar James e a galera.

Então, nós pegamos nossas garrafas de bebidas e fomos nadar na praia. Aproveitamos e ligamos pro Phillip, e eu coloquei meu biquíni preto. E então olhei a tatuagem da fênix negra, cuja cabeça estava no meu ombro esquerdo subindo de chamas negras na minha cintura, e sorri.

Eu era Jane Matthews. Ninguém mais.


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Notas finais do capítulo

E é esse o nosso começo! Espero que tenham gostado!
Beijos da Miha e nos vemos nos comentários!



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