Olá. Eu me suicidei e preciso da sua ajuda escrita por Palas


Capítulo 1
Sério.




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A pior parte de me matar não foi morrer. Isso foi até que tranquilo, porque eu nem vi como foi. Não. O maior problema de morrer é estar morta.

Eu não acordei a tempo de ver meu enterro, pessoas chorando por mim e coisa e tal. Acho até que não tinha ninguém. Mas se teve, também, eu não quero saber. Eu acordei onde morri, digo, no meu quarto, e acordei morrendo de fome. Imagine você que horror ficar presa no próprio quarto porque de repente você não tem mais força pra girar a maçaneta.

Assim começou meu grande sofrimento de morta: sair do meu próprio quarto pra poder comer.

Quanta fome eu passei. Como sou muito esperta, deduzi que não podia abrir a porta por não ter mais peso. Se eu não tinha peso eu devia era flutuar por aí e, portanto, toda gravidade era psicológica. Se até gravidade era psicológica, fome também devia ser então era só começar me convencendo de que eu não precisava comer que eu ia conseguia, em pouco tempo, atravessar paredes e voar.

Mas aí eu comecei a pensar em lugares pra ir quando conseguisse me desprender dos meus preconceitos e privilégios de branca heterossexual cisgênero viva e só conseguia pensar em padarias e redes de fast-food. Eu não imaginava que o desespero de alma penada ia bater de um jeito tão idiota, mas, como vim a saber depois, a fome insaciável é o segundo maior fator de influência em tentativas de suicídio entre a população morta do país.

Aliás, dica: não tente se matar pela segunda vez se a primeira já tiver dado certo, porque dói. Falando por mim, eu não tive muita escolha, já que a única saída que encontrei quando não aguentava mais de fome foi sair pela janela e isso não seria um problema se eu não MORASSE NO DÉCIMO OITAVO ANDAR.

Outra dica: se mate em um cômodo com janelas grandes e com a porta aberta. Hoje eu lembro da história daquele menino músico que se matou no banheiro e, olha, não recomendo.

Depois de me espatifar na rua e quebrar todos os ossos do meu corpo de uma vez só e sair andando mesmo assim porque é assim que funciona, eu saí em busca de comida. Eu já estava no limite da inanição (do qual eu nunca ia conseguir passar) e exatamente por isso foi só pior quando eu me toquei que comida e maçaneta não são coisas tão diferentes assim. Não adiantou nada esperar alguém abrir a porta do McDonald’s e entrar correndo, porque ainda que eu pudesse pular o balcão sem tomar bronca, cada batata pesava mais ou menos infinitos quilos pra mim.

E ver gente comer quando você está com fome é muito ruim, então essa provavelmente é a lição que fica se reencarnação existir (ninguém me convidou ainda). Por causa disso eu tentei me refugiar dessa sociedade horrorosa cheia de refeições pra pensar em um plano e foi justamente na praça mais vazia que eu vi que encontrei minha salvação.

Pois bem, tinha um cara no parquinho. Ele não tinha comida-fantasma com ele, mas tinha algo quase tão bom quanto: muito sono. Descobri nesse dia que um corpo dormindo é um corpo alugável, então alugá-lo foi o que fiz.

Sobre essa experiência, três coisas: primeiro, vivos fedem. Meninos em particular e talvez esse menino mais em particular. Pessoas fedem a carro, a poluição, a suor e a perfume. Mas não eu, nunca eu. Segundo, possuir pessoas é divertidíssimo e você devia tentar quando tiver oportunidade. Corpos são como aviões, só que com 100% menos pessoas que sentam na poltrona da janela mesmo que tenham comprado passagem pra poltrona no corredor. Terceiro, possuir pessoas é horrível e requer muita prática. Ou eu que sou ruim, mas, nossa, como é difícil andar com uma coisa tão pesada quanto um corpo.

Razão pela qual sonâmbulos são tão desengonçados e também razão pela qual não consegui comer naquele dia. Eu, quer dizer, o cara se levantou e só com isso eu me senti o curupira fazendo embaixadinha. No primeiro passo que eu tentei dar, o cara, quer dizer, eu tropecei, caí, ele acordou e eu fui expulsa do corpo. O cara olhou meio abobado e foi embora. Lógico que eu segui ele.

Parece que ele estava tirando um cochilo antes de entrar no trabalho, porque ele entrou em uma agência de publicidade. Tomara que seja um trabalho infernal pra ele ficar bem cansado e dormir cedo, eu pensei, e felizmente ele era estagiário. Mais felizmente ainda, ele teve que pegar trem pra ir pra casa e eu fui junto. Em algum momento, o trem parou por causa da, disseram, “presença de usuário na via” e teria sido o máximo sair pra ver um companheiro de suicídio, mas não deu porque o trem estava lotado e as pessoas, não sabendo que estavam me empurrando, me obrigaram a quase perder meu corpo de aluguel de vista. Não que a porta fosse abrir, também.

A geladeira dele era sensacional. A minha sempre tinha só congelados e de vez em quando cachecois porque não sei se você sabe, mas cachecol gelado é o melhor jeito de continuar estiloso no calor. Se você tirou as amígdalas, o que não era meu caso. Mas, bom, a geladeira do amigo. Ele morava com a mãe, então tinha umas coisas que eu só consegui ver por frações de segundo, mas pareciam tortas e saladas e nuggets e até uma pizza! Eu mal podia esperar pra comer tudo aquilo. Quando eu vi que as luzes da casa tinham sido apagadas eu já fiquei toda nooooooossa é hoje que eu me acabo, mas aí… o menino ligou o computador no quarto dele. Me senti muito tonta. Por que outra razão alguém estaria dormindo tão profundamente em plena luz do dia e em um banco, se não fosse por ser viciado em joguinho? Nerds…

Eu esperei. Eu fui paciente, eu juro. Minha barriga roncava e ele não escutava. Por um momento eu entrei em desespero porque ele trancou a porta, mas, pelo menos, a janela continuava aberta e ele morava no segundo andar, então ir embora não ia doer tanto. Ele só foi desistir do jogo umas quatro da manhã, depois de perder três partidas seguidas (só perdeu porque não escutou meus conselhos). Eu mesma já estava com sono e achei que ele ia dormir, mas nãããão — em vez disso, ele abriu o navegador. Com um pressentimento muito ruim sobre o que um moleque como ele faria de madrugada pra aliviar stress, eu fui embora.

Ah, e eu estava errada. Doeu tanto quanto da primeira vez. E eu não comia fazia sei lá quantos dias, mas pelo menos agora eu sabia onde procurar: sonâmbulos com geladeiras cheias e que pelo amor de deus morassem no térreo.

Seis da manhã e eu andando por aí, mas é nessas horas que você descobre as melhores oportunidades. Uma moça abria um mercadinho e aí ela bocejou. Como sou muito esperta, percebi que ela seguia a doutrina de que, para compromissos de manhã, você não precisa acordar, só estar acordada. Eu também seguia, então sabia que a moça ia dormir de novo e eu ia, então, viver o sonho de criança de estar sozinha em um mercado. Adivinha só — aconteceu.

E desde criança eu desenvolvi um plano de ação pra quando isso acontecesse. Primeiro, abrir um rocambole. Com a faquinha, passar requeijão em vários pães de forma. Com o copo do requeijão, colocar o suco. Abrir a caixa do suco, que é laminada por dentro, e fazer um forninho usando uma lâmpada. Com o forninho, esquentar o pão.

Tá, eu não sabia se essa última parte daria certo, mas por isso mesmo eu perdi muito tempo fazendo o forninho direitinho. Tanto tempo, aliás, que o chefe da minha nova amiga e dono do mercadinho chegou e ela acordou, me expulsando do corpo e me deixando sem comida. Ah, ela foi despedida também.

O que me deixou muito mal. Juro. Ela chorou muito e disse que não estava entendendo o que estava acontecendo ou por que metade das prateleiras tinha caído. Bom, isso tinha sido culpa do corpo desengonçado dela. Mas eu aprendi uma coisa muito importante. Mesmo morta, minhas ações tinham consequências e se eu saísse possuindo lojistas pra comer eu ia causar uma crise econômica. E tadinha da moça! Não tinha culpa. Eu estava arrependida e me veio a vontade de me redimir, então decidi que ia, a qualquer custo, assaltar a geladeira do dono do mercadinho.

Eu esperei e esperei o homem ir pra casa pra ver se eu ia conseguir possuí-lo em nome da causa proletária, mas ele não ia embora nunca! O mercado fechou e ele continuou lá. Olhava o celular toda hora e parecia muito nervoso. Devia estar esperando uma ligação muito importante, porque quando veio uma ele atendeu afobadíssimo e depois saiu correndo pro carro dele. Eu quase não consegui entrar junto. Nós fomos até uma área residencial enquanto ele escutava as notícias no rádio e eu estava feliz porque finalmente não ia precisar me estribuchar na hora de ir embora, mas, quando ele parou o carro, ele continuou ligado. Eu imaginei então que ele ia buscar alguém pra ir em um encontro, o que ia atrasar meus planos e possivelmente me fazer ver coisas horrorosas enquanto isso, mas a senhora que saiu não combinava com ele…? E, além disso, ela veio com um pacote bem grande na mão, o qual o homem pegou e aí fomos embora.

O pacote era um bolo de aniversário para o filho dele ou alguma coisa assim e, como sou muito esperta, tracei um plano perfeito. Esperei o homem dormir, fui lá e, na pele dele, comi o bolo todo. Ah, mas eu me esbaldei, viu. Bolo! E depois de tanto tempo! Você não sabe como é boa a sensação de engolir e sentir as coisas caindo no seu (“seu”) estômago e matando sua fome. Aliás, sabe, sim. Só não sabe que sabe. Mas então, eu comi. Muito. Nessa hora eu dei graças a Deus por eu ter me matado. Isso e, ainda por cima, limpei minha consciência. Certeza que a moça despedida hoje é uma pessoa mais feliz. Uni o útil ao agradável.

Bom, tá, teve um problema. O homem, vendo que tinha comido o bolo de aniversário do próprio filho durante o sono, começou a ficar meio paranoico e desenvolveu insônia. Aí anda sendo muito difícil eu matar minha fome com ele, então eu tô voltando a comer uma vez a cada, não sei, três ou quatro dias? Por isso eu estou procurando um novo benfeitor e por isso escrevi esse apelo. Por favor, não tenha insônia. Durma oito horas por dia. Respeite seu ciclo do sono. Eu posso realmente, realmente estar precisando de você.


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