Stay High - Uma Mente em Conflito escrita por Gabriel C Zinn


Capítulo 1
O primeiro dia do resto de suas vidas


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo é a introdução à história. Está pouco ligado à ação do enrendo, mas também escrevi para que o leitor conheça um pouco mais sobre as personagens. Espero que gostem!



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O PRIMEIRO DIA DO RESTO DE SUAS VIDAS

Os grandes portões enferrujados de Main Creek se abriram lentamente, aos passos gradativos de uma adolescente fisicamente maltratada. Do lado de fora, um carro velho de pintura renovada, com um rapaz de cabelo moreno desarrumado estampando um sorriso de orelha a orelha. Anne deu um passo à frente e fitou o rapaz por um longo tempo, enquanto o portão batia às suas costas.

O rapaz levantou a mão, balaçando um pacote de salgadinhos. Anne perdeu a postura e sorriu, meio sem jeito.

- E depois de três anos, parece que passou apenas um dia. – disse o cara, descendo do carro e indo de encontro à Anne. Os dois se abraçaram, então ele sussurrou em seu ouvido – Tô zoando Lise, você realmente passou três anos numa detenção. Você está acabada.

Ambos riram. Anne deu um soco leve no ombro do rapaz.

- E você não mudou nada, DJ. – disse, enquanto roubava seus salgadinhos favoritos da mão de DJ. – Pode passar três décadas e isso nunca vai ser enjoativo. – riu, enquanto mergulhava uma mão cheia de salgadinhos na boca.

- Entra no carro, você precisa ver como ficou o apê do Léo. – pediu DJ., que abriu a porta para Anne entrar, porém ela não entrou. Sua expressão de felicidade se desfez e deu forma à uma expressão amarga e abatida.

- Ele... Por que ele não veio? – perguntou, encarando tudo menos os olhos de DJ.

Uma curta pausa foi feita, e DJ ainda se apoiava à porta do carro quando olhou com pena para a amiga.

- Eu não sei, Lise, sinceramente não sei. – respondeu.

Anne fitou DJ por alguns segundos e entrou no carro, sem graça. Enquanto DJ também entrava no carro, Anne deu uma forte respirada e decidiu que aquilo não a afetaria. Só que, no fundo do coração, afetava e muito.

- Em compensação, pode passar cem anos e você nunca troca esse carro velho. – Anne reclamou, tentando passar um ar de humor. Tentando ignorar a tristeza.

- Não se joga a única lembrança de sua família no lixo, assim sem mais nem menos. – DJ disse sério, mas então ligou a rádio tão alto que o som voava pelas ruas da Flórida junto com suas palavras dramáticas.

Segundo Anne, Léo era o amigo mais irritante de todos os tempos, mas era irritante de uma forma convidativa. Era também o único com quem a moça compartilhava todos os segredos mais obscuros, pois sabia que a boca dele era um túmulo. Acredite, pessoas irritantes são ótimas ouvintes.

O apê dele ficava no subúrbio da Flórida, num bairro que já foi conhecido como a Mão do Tráfico. O nome do bairro de fato é Route Ville, cujas pessoas foram acostumando a chamá-lo assim com os anos.

O prédio que Léo morava tinha quatro andares, sem pinturas, e nitidamente desgastado. A vantagem era o aluguel barato, que levava pessoas a alugarem ali mesmo sem elevador e diversos outros benefícios.

Quando os dois jovens adentraram no pequeno prédio, Anne travou no primeiro degrau.

- Muito receptivo, DJ. – falou, tentando soar o mais irônica possível.

- O que são três lances de escada para um ex detenta que ficou três anos presa? – ele respondeu, e sua voz tinha um som sarcástico. Anne se manteve quieta. Subiram os três exaustivos – e nada receptivos – lances de escada até pararem frente a uma porta de madeira branca, com a tinta fraca e o trinco rachado. Foi Anne quem bateu duas vezes, até que o som ensurdecedor de uma porta arrastando no chão para se abrir não superou o som de uma voz animada de um cara cheio de saudades ao revê-la. O sorriso dele era empolgante – a teoria do cara mais irritante do mundo ainda está de pé.

- Annelise! – Léo exclamou, e a garota o abraçou logo em seguida. – Bem-vinda ao meu recém reformado lar.

Léo era pouco mais alto que ela, o que já era uma vantagem em relação a DJ. Os olhos de Léo tinham a cor esverdeada, ressaltados devido a cor escura do cabelo estilo militar.

Anne olhou em volta e pasmou. O apê do Léo era conhecido pelos jovens como o lugar mais bagunçado de toda a Flórida. O sofá de couro de dois lugares estava todo reformado, e bem posicionado frente a uma mesa de centro com um PlayStation 3 recém desligado. O tapete vermelho dele era a única coisa que Anne mais gostava em todo o espaço. Assim que o fitou, vieram ótimas lembranças para a moça vendo-o. A televisão de plasma estava em cima de um balcão, atrás da mesa de centro. A janela estava arregalada, onde o sol fervoroso refletia todo o ambiente seco.

- O que aconteceu com a Zona? – perguntou, quase engolindo as palavras. Zona era como os três amigos chamavam o apê do Léo, pois de fato era tudo revirado. E a Zona morreu.

Léo sorriu e corou.

- Credo gente, que reencontro dramaticamente meloso. – disse DJ, de súbito. Ele foi até a cozinha e trouxe três cervejas. – Três cervejas pretas pra compensar três anos obscuros.

E os três gargalharam no meio da sala. Se aquele momento tivesse durado uma eternidade, Anne teria chorado por toda ela. Felizmente DJ se colocou entre os dois para lhes fazer uma proposta – e Anne não teve tempo para sequer se emocionar.

- Vamos aos Stakes, juntos, por minha conta. – DJ propôs, com os braços entrelaçados com os ombros dos dois amigos. Anne tomou um gole e abriu um sorriso.

- O velho imundo ainda está lá servindo panquecas mortas com bacons vivos? – ela caçoou, e os três riram ao mesmo tempo.

- E se eu te disser que ele passou dessa pra uma melhor, você acreditaria? – perguntou Léo.

- Chocada! – exclamou Anne, boquiaberta. – É sério, Léo?

- Não – afirmou Léo, tomando dois goles da cerveja como quem toma água – anotem, o dia que o velho imundo morrer, os cachorros vão cacarejar e as galinhas vão latir.

Riram.

- Que comparação ridícula, Léo, sério. – zombou DJ, afastando os amigos e colocando a mão no bolso de trás da calça. Tirou a chave do carro e estendeu a frente de todos, como quem segura um troféu. – Vamos logo, companheiros, porque hoje é o primeiro dia do resto de nossas vidas.

Saíram juntos, aos risos e gargalhadas. Anne desceu montada nas costas de Léo. Eles sempre faziam isso. Léo era musculoso, talvez aguentasse até mesmo a magricela DJ no outro braço.

O Stakes ficava a dez minutos do apê de Léo, e eles foram todo o caminho ouvindo um som altíssimo enquanto bebiam o resto das cervejas – até o piloto DJ. Ouvir música no carro velho do cara era uma tradição que não podia ser quebrada, muito menos no retorno de Anne.

Abriram a violenta porta do bar e olharam ao redor. No Route Ville as pessoas eram bem calmas em relação as outras pessoas. Uns iam presos e logo soltos, outros morriam na prisão, mas ninguém se importava com ninguém. A indiferença das pessoas ao ver uma recém ex detenta foi tão insignificante que Anne deu um sorriso maior que a boca e não corou. Entraram de supetão e foram logo para o fundo do bar, se instalar na mesa mais intensa de todos – referente a sua cor. A mesa favorita deles, com um vermelho muito forte e os bancos intensamente verdes.

- O que vocês vão quere... Ah não, vai começar a baderna de novo. – exclamou um velho careca, com uma barba mal feita que descia até a altura do peito.

- Velho imundo! – saltou Anne, dando um abraço forçado e rápido no cara mais chato do subúrbio. – Que saudades das suas implicâncias.

DJ e Léo racharam de rir, enquanto observavam o velho se afastar da mesa. Anne se sentou e riu em seguida.

- Me lembro bem de como ele odiava servir a gente. Eu não entendo. Apesar de baderneiros, somos clientes fiéis ao Stakes, eles deviam se orgulhar ao ver nossa imagem quase todo dia passando por aquela porta maldita.

- Eles nunca vão se orgulhar. Mas eu não ligo pra isso. O que vocês vão pedir? – disse DJ, abrindo o cardápio, em vão.

- Acreditem – começou Anne, e puxou os olhares dos dois amigos para si – eu vou querer as panquecas mortas com os bacons vivos.

DJ fechou o cardápio e a encarou, perplexo.

- Depois de tanto tempo sem vir aqui, você vai mesmo querer aquele pedaço de estrume pra comer?

- De repente senti saudades da comida mais merda que o subúrbio da Flórida já viu. Era tradição, lembram?

- Não tem como esquecer, irmãzinha. – riu Léo, sarcástico.

Os três demoraram vinte e seis minutos para comer as panquecas com bacons, que foram servidas por um garçom nova do bar. Enrolaram mais nove minutos antes de se levantarem da mesa, lançarem uma nota de cinquenta dólares para a balconista e deixarem o famoso Stakes. Anne parou na porta, no lado de fora, e deu uma respirada forte.

- Nada como sentir o ar da liberdade de novo, né não, gente?

Léo puxou ela pelo braço e a enfiou no carro.

- Você vai ter tempo para dar quantas fungadas quiser no ar poluído da Flórida, mas agora temos muito o que fazer. – disse, ao tempo que puxou um maço de cigarro do bolso.

Anne puxou o maço da mão dele como uma criança vendo doce pela primeira vez. Acendeu um, logo em seguida acendeu outro e passou para o DJ. Léo acendeu o dele em seguida. O som alto tomou conta da rua e DJ acelerou.

- Para onde vamos então, senhor bonzão? – perguntou Anne, dirigindo-se a Léo, que olhou para DJ em busca de uma resposta.

- Estamos indo do inferno para o paraíso, que tal assim? – falou DJ, dando uma longa tragada em seu cigarro.

Anne, perplexa, colocou a cabeça entre os dois amigos no banco da frente e os encarou de perto.

- Vocês estão de brincadeira, né? – falou, mostrando pequenos índices de raiva – eu não vou nem pagando para aquele bairro sem sal, já vou avisando. Se vocês estiverem me levando lá, parem o carro que eu vou descer.

- Desce com ele em movimento, gatinha, e se não conseguir, a próxima parada é em Salon Hill, o bairro mais fresco e cheio da grana de todo o estado.

Anne socou o ombro dos dois amigos, que guincharam de dor. Abriu a janela, jogou o cigarro e colocou a cabeça para fora.

- Eu me jogaria daqui agora mesmo, estúpidos, mas uma mulher não merece morrer em seu primeiro dia de liberdade depois de tanto tempo jogada no inferno. Ainda mais se ela for morta por ela mesma. – gritou, agitada. Entrou novamente no carro e falou séria.

- O que vocês querem fazer em Salon Hill, pelo amor de Deus? É punição, o que eu fiz?

- Tem uma pessoa lá que quer te ver, Lise. – revelou DJ, também sério.

Depois de uma tragada rápida, Léo completou:

- Na verdade, são duas. Fizemos uma promessa de te levar até lá, e é o que faremos. Depois, quando tiver lá, você se resolva com eles e acabe logo com isso. Temos uma noite com muitos copos de cerveja para encher.

- Releva, Lise, a nossa vida está só começando de novo. – afirmou DJ, em tom animado.

- Ouviu, cidade? – gritou Léo, para fora do carro – Nossa vida está só começando!

- Ok, deixa eu ver se desvendo vocês. – Anne recomeçou. – Em Salon Hill temos a única igreja que eu costumava frequentar com meu pai e meu irmão, temos também o colégio que estudávamos, que é o lugar mais infernal da América, e temos também vários metidos a besta que me odeiam, e tomo como exemplo a VaCaty. É isso, querem que eu me reconcilie com meus inimigos? Ou eles estão preparando uma festa de boas-vindas com ovos podres e papel higiênico?

- Existe o lado bom de Salon Hill, pequenina. – afirmou Léo – não se esqueça que a gente sempre lanchava no Jungle nos intervalos das aulas, e amávamos.

- É pra lá que vamos? Depois de termos enchido a pança? – indagou Anne, que fungou no banco de trás enquanto se acomodava.

DJ ergueu o volume do som e cantou junto com a música.

Anne não disse mais nada o caminho inteiro. Estava de cara com os amigos mais leais que ela já teve, seus parceiros. Apesar de não querer se conformar, ela mantinha consigo uma esperança que de fato os amigos estivessem levando ela para matar a saudade do Jungle.

O carro cruzou uma avenida e entrou numa rua asfaltada, cujos prédios eram os responsáveis pelas sombras. Prédios altos, com lindas entradas, sacadas com churrasqueiras, e todos os direitos que alguém merece para viver. Alguém não, alguns.

DJ encontrou uma vaga próxima ao local em que eles estavam indo. Léo foi o primeiro a descer do carro, depois DJ, até que, aos grunhidos, Anne também deixou o veículo. Bateu a porta e encarou os amigos.

Léo se aproximou de Anne e segurou seus ombros.

- Não é´o Jungle, mas é algo muito melhor, eu acho. – ele disse.

Os três amigos pararam em frente a um portão branco. A grama do quintal era tão verde quanto os olhos de Léo, e a fonte de estátua era alta e corpulenta. Jorrava água num ciclo infinito, deixando tudo mais agradável. DJ apertou o interfone seis vezes num intervalo muito curto de cinco segundos. Então ouviram uma porta sendo aberta, e de lá saiu uma mulher de avental, que venho de encontro aos amigos enquanto terminava de enxugar as mãos. Assim que fitou Anne, se assustou a princípio, depois esticou um canto da boca para cima e caminhou até os amigos.

- Anne! – ele repetia, enquanto abria o portão.

Anne estranhou a intimidade, pois não conhecia a mulher. Tentou achar a resposta nos olhos dos amigos, mas sem sucesso. Foram convidados a entrar.

Assim que entrou na casa, Anne abriu a boca. A sala de estar era maior que a sala e cozinha de Léo juntas. Tinha uma lareira bem no centro, crepitando ao som ambiente de música clássica num volume quase inaudível. Os sofás brancos cintilavam com os pequenos raios de sol que saíam das frestas das cortinas parcialmente fechadas.

- Vou chamá-lo, senhores. – disse a empregada, que saiu tropeçando entre as pernas.

Anne olhou para DJ, confusa.

- O que está acontecendo aqui? – perguntou.

- Você já vai saber, Lise. Aguenta mais um minuto, ele já está vindo.

- Ele quem? – ela disse, aflita.

- Meu Deus, é você mesmo Anne! – exclamou uma quarta voz, nitidamente vindo do largo corredor.

Então Anne se virou e arregalou os olhos. O rapaz ainda caminhava. Tinha uma estatura média, cabelos morenos curtos, e trajava um terno negro.

Os olhos de Anne logo se encheram de rancor e ela se virou furiosamente para os dois amigos.

- Que surpresa agradável, babacas – ela disse, com os punhos cerrados – eu aconselho vocês me segurarem, porque eu vou pular no pescoço desse desgraçado, e se isso acontecer, eu vou deixar um estrago bem grande.

Léo correu até Anne e se colocou à sua frente. Segurou seus braços e disse, nervoso:

- Por que você vai fazer isso? Ele vai se explicar e você vai entender.

Anne levantou a mão e a levou de encontro ao rosto de Léo, que se virou para diluir a dor. A jovem logo olhou diretamente nos olhos do homem de terno e correu em sua direção, com fogo nos olhos e um grito ensurdecedor de fúria e ódio.

O homem de terno se assustou e não teve tempo para desviar. Logo em seguida os dois desabaram no chão, ao som agudo de vários tapas que Anne lançava sobre ele.


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Notas finais do capítulo

Se gostarem, deixem um comentário avaliando meu desempenho ou até mesmo opinando sobre a própria história e seus personagens. Eu espero que tenham gostado. Aguardem o segundo capítulo! o/



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