Você aceita ser meu único amigo? escrita por snow Steps


Capítulo 5
Histórico


Notas iniciais do capítulo

E aí queridos leitores, estão curtindo?
:D



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Acordar uma multidão de adolescentes às seis e meia da manhã é uma tarefa quase impossível, mas o Retiro JC possui um esquema totalmente planejado para lidar com esse tipo de missão, chamado de Tríade da Alvorada pelos organizadores. A Tríade é, sem dúvida, o pior inimigo de um adolescente cristão. Os mais desbocados até ousam falar que foi obra do próprio Lúcifer.

Quando os ponteiros se posicionam exatamente às seis e meia no relógio central do refeitório, os alto-falantes presentes em todos os lugares possíveis do retiro (incluindo dentro dos dormitórios) começam a soar sirenes de ambulância no tom mais elevado o possível. É comum que algumas pessoas acordem gritando, afinal é o mesmo susto que se leva ao cair da cama (também é comum que algumas pessoas gritem e caiam da cama ao mesmo tempo). Para os que ainda resistem, a segunda parte da Tríade não é menos pior que a primeira: os veteranos do retiro, ou futuros organizadores, inspecionam de cama em cama atrás dos retardatários, e quando encontram um eles não pensam duas vezes antes de lhes tirar o cobertor, travesseiro e lençol de cama.

Seria até um castigo bem tranquilo, se não fizesse doze graus na madrugada da região serrana carioca. Sem falar do exército de mosquitos. Sim, aqui tem mais mosquitos do que gente humana. E caso o barulho da sirene, o frio e os mosquitos não sejam o suficiente para acordar alguém, a terceira parte da Tríade estará preparada para despertar esse vencedor. Os veteranos realizam uma segunda sondagem, mas desta vez com um balde de água temperada com cubos de gelo fresco. Nós costumamos fazer um minuto de silêncio todas as vezes que ouvimos a água jorrar e o berro iminente estourar nossos tímpanos.

Por sorte, sempre consigo acordar logo na primeira parte da Tríade. Amarroto meu rosto entre as mãos e vejo pelas frestas da janela o céu ainda clareando, e me pergunto “por que Senhor, por que você me deu um sono maior do que eu posso suportar? ”

Visto uma blusa larga com calça legging, e saio do alojamento com os olhos ainda embaçados. Seguindo pelo corredor em direção à escada, sou logo surpreendida pela presença dele.

_ Bom dia, narradora de imagens – Nick cumprimenta, encostado no corrimão da escada.

Seu rosto preguiçoso abriga um sorriso amplo, e os óculos escuros já estão postos no nariz. O cabelo castanho está encharcado, e uma mecha molhada lhe atravessa a testa e pinga sobre o moletom cinza da GAP.

_ Ah, não. Não me diga que você foi vítima da Tríade – Digo, esboçando um tom de condolência.

_ Infelizmente preciso admitir que fui, sim. Sabe, se alguma alma caridosa tivesse avisado ao pobre novato parcialmente cego da existência de uma tortura matinal que aterroriza esse retiro, eu teria pensado melhor antes de tentar cochilar sem cobertor e travesseiro.

_ Foi mal, é que a Tríade já se tornou algo comum para quem frequenta o retiro por muito tempo...

_ Meu Deus, o que mais é comum por aqui? Trabalho escravo e canibalismo?

_ Não seja tão exagerado – Contraponho, rindo.

_ Vou lhe dizer o que é exagerado: o gosto horrível daquela sopa de ontem. Onde você estava no jantar? Caramba, não faz ideia de como eu queria uma narradora de imagens naquela hora. Pensei que alguém tivesse batizado a minha sopa com uma bica de cigarro. Seria um bom trote para um novato cego.

_ Aqui não é permitido fazer trote.

_ Assim como não é permitido beijar, e já vi uns três casais se agarrando atrás do salão de jogos. E olha que eu sou cego.

_ Parcialmente cego – Corrijo.

_ Liora, uma coisa que você precisa aprender para andar comigo é: sou cego ou parcialmente cego quando me for conveniente. Agora vamos, você ainda tem que descrever como está o dia antes do café-da-manhã. Me concede a honra de um apoio? – Ele me pede.

_ Sim – Respondo vacilante, perguntando-me o que ele quis dizer com “apoio”.

Então Nicholas estica o braço e me abraça pela cintura, e em seguida pega a minha mão e a põe sobre o ombro dele. Enquanto descemos as escadas a caminho do refeitório, não posso deixar de indagar:

_ Por que estamos abraçados desse jeito?

Eu nunca estive tão próximo de um garoto, e um garoto nunca esteve tão próximo da minha cintura. É no mínimo embaraçoso, para mim.

_ Ah, sabe como é, não consigo enxergar muito bem aonde estou pisando. O certo seria eu usar uma muleta, mas isso tornaria óbvio demais a minha condição de quase cego, e impediria que garotas como você me considerassem um cara normal. É mais legal andar abraçado com uma amiga, porque além de ter uma companhia, todos pensam que tenho uma namorada...

_ Eu não acredito! Isso é tão... – Balbucio, indignada.

_ Genial? – Ele completa, rindo.

_ Não, ousado! Não quero que as pessoas concluam que somos namorados.

_ Por quê? Sou feio?

_ Não... – Dou com a língua entre os dentes ao notar o sorriso pretensioso que surge nos lábios de Nicholas. – ... não tão feio. Apenas seria injusto, pois tiraria a oportunidade de um pretendente se aproximar de mim.

_ Ei, eu posso ser um pretendente também.

Meu rosto enrubesce, e perco a fala no mesmo instante. Ele me cantou? Foi isso mesmo?

O vento gelado da manhã bate em nossos rostos ao atravessar a porta dupla do alojamento, e atravessamos o gramado orvalhado que roça nos calcanhares.

_ Diga-me, caríssima narradora de imagens, como está o céu? – Ele interroga, erguendo a cabeça para o alto.

Também olho para cima, encarando o céu que ainda mantém algumas nuances da noite.

_ Acinzentado. Com nuvens. E sem sol.

Nick forja uma careta, e já sei que minha descrição o desapontou novamente.

_ Não seja tão... realista. Veja bem, minha narradora, você precisa por uma pitada de sentimento no que vê para depois me falar. Eu ainda posso enxergar o céu numa cor homogênea e perceber se há sol ou não, mas brevemente verei apenas um eterno borrão preto e sem graça, e aí estarei preso numa casca sem contato com o mundo exterior. Preciso aprender a enxergar com os sentimentos, e não com detalhes.

_ Hmmm... acho que entendi.

_ Você é uma cristã inteligente, aposto que me entendeu.

_ Como pode ter tanta certeza?

_ Porque você é a minha última esperança. Por favor, não me faça ir atrás da Rebeca – Pede Nicholas, em tom de súplica.

_ Tentarei outra vez, mas não prometo nada... – Penso um pouco, mais um pouco e um pouquinho. – Certo. Não ria, o.k.? São meus sentimentos e seria descortês de sua parte. –Solto um pigarreio de preparação. – O dia está amanhecendo, e o céu se encontra tomado por uma cor nublada. Uma cor nublada que entristece o tom verde das árvores. Alguns resquícios da noite ainda são visíveis e se pode ver a luz trêmula de poucas estrelas, tão altas que nos permitem imaginar a extensão do universo. Você já parou para pensar que estamos mergulhados no meio dele? Que a noite é apenas o universo nos engolindo?

Ele reflete sobre a suposição, e em seguida bate palmas para a minha surpresa.

_ Bravo, bravo! – Nicholas exclama. – Descrição de qualidade com direito a reflexão. Você mostrou o seu potencial, garota.

_ Obrigada – Digo, resguardando um sorriso acanhado o qual ele não nota.

O refeitório está começando a encher, e não desejo ser a última a sentar novamente. Rondeio entre as mesas de braços cruzados com Nick, que acena para todos feito o presidente da República. Até que ganhar fama como namorada dele não seria uma má ideia.

_ Ei, Nick! Aqui! Guardei um lugar para você! – Grita Rebeca, de uma das mesas.

_ Vamos sentar com a Beca – Ele sugere, e assim eu o guio até ela.

A grande mesa está quase totalmente ocupada, salvo duas cadeiras que estão suspensas do chão. Rebeca puxa uma delas e indica para que Nick sente, e em seguida me depara com constrangimento.

_ Como vai, Liora? Poxa, eu não esperava que você fosse sentar com a gente. Eu guardei esse outro lugar para o Daniel...

_Não tem problema. Eu... vou procurar outra mesa. – Respondo, com ar de conformidade.

É de se esperar que não haja espaço para mim na mesa dos mais descolados do retiro JC. Eu faço parte dos outros 90%: os que admiram a mesa dos mais descolados e se imaginam um dia lá.

_ Não. – Fala Nicholas, contrariado. – O Daniel é quem deve procurar outra mesa, caso ele ao menos tenha um pingo de bons modos. E caso não, deixa comigo que eu posso ensiná-lo.

_ Como assim, Nick? É claro que o Daniel cederia o lugar dele. Não precisa utilizar indiretas ofensivas, se lembra onde estamos? – Replica Rebeca, aparentemente ressentida.

_ Eu não utilizei nenhuma indireta ofensiva. Você é quem tirou conclusões precipitadas. – Ele retruca, dando de ombros.

_ Obviamente você insinuou que está disposto a brigar com ele. Tudo bem que ainda é novo por aqui, mas não é assim que a banda toca no retiro. Não nos respeitamos através de ameaças.

_ Você é maluca? Quando eu disse que estou afim de brigar com o Daniel? Olha para mim, eu sou C-E-G-O.

_ Eu sei disso. Mas o seu histórico não ajuda muito também...

_ Como você conhece o meu histórico?

Rebeca morde a língua entre os dentes, denunciando que falou demais.

_ Quer saber, eu é quem devo procurar um novo lugar. Muito obrigado pela gentileza – Ele se levanta e me dá a mão, e juntos deixamos para trás uma Rebeca atordoada e sem palavras.

A última vez que a vi desse jeito foi na décima edição do retiro, quando ela tinha 7 anos e perdeu a corrida de atletismo para Daiana, uma criança gorducha com óculos fundo de garrafa.

Nós sentamos numa mesa logo em frente ao palanque improvisado, junto com o grupo do coral. Enquanto eles aquecem a voz emitindo sons como “TRRRR”, “VVVV” e “BRRR”, digo para Nicholas que segura o rosto estarrecido entre as mãos:

_ Não precisava ter feito aquilo.

_ Claro que sim, Liora. Você é minha narradora de imagens – Ele responde, com um sorriso modesto.

Embora o termo minha soe um tanto dominador, ele me traz uma segurança de que terei uma amizade até o fim do retiro. Ou quase isso.

_ A Rebeca é uma garota legal, não precisa ficar chateado com ela.

Nick arfa e solta os ombros, seu aborrecimento está evidente na face.

_ Uma garota que julga alguém pelo seu passado não pode ser legal. Eu acredito que as pessoas podem mudar. Você também acredita, Liora?

Ele me fita por detrás dos óculos Ray Ban, e penso se Nick realmente está me vendo ou se está tentando parecer um cara normal.

_ Eu acredito, sim.


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