Gás escrita por Ceres


Capítulo 1
Único




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Não havia mais saída.

— Shinji! Shinji, abre essa porta!

Akira estava batendo na porta. Muitas vezes e com força. Entretanto, ele não ia levantar para atender. O gás escaparia e tudo seria em vão.

Seu corpo estava pesado, e as batidas incomodavam sua cabeça. Mas tudo bem. Logo aquele tormento acabaria. Era a última vez que desapontava seus amigos.

Respirou profundamente e tossiu.

Em sua mente, o rosto de Kippei Tachibana surgiu. Seu (para sempre) capitão estava de pé atrás da rede da quadra de tênis da Fudomine, conversando com alguns calouros. Não trajava seu uniforme do clube — a gloriosa jaqueta negra de listras rosadas — como os outros integrantes, mas sim o uniforme da escola. Simples demais, julgaria Shinji. Apesar disso, ele sabia que seria a última vez que veria seu capitão com as roupas da escola. Isso o inquietou.

Não... Tachibana não pode sair agora. Não depois da minha derrota no U-17...

Encolheu os ombros e cerrou os punhos por puro temor. Por que o ano passou tão depressa? Estavam todos se dando tão bem. Pela primeira vez, sentia-se aceito, tinha amigos que o entendiam... Ou gostava de pensar que era assim.

Fechou os olhos, como se assim pudesse desaparecer. De repente, a quadra de tênis da Fudomine, que costumava ser seu lugar favorito de todo o planeta tornou-se insuportável como o inferno. Sua vontade era correr dali, se esconder e negar que aquele dia chegara. O que faria sem Tachibana ali? Quem comandaria o time? Como seriam os treinamentos? E se o novo capitão não gostasse dele? E se outros membros do clube saíssem também?

— Está murmurando de novo.

Abriu os olhos. Ali estava Akira com um simpático sorriso. Shinji não conseguiu retribuir, mas sabia que seu amigo não se importaria com isso.

— Droga... — resmungou. — Preciso perder essa mania. É irritante, não é? Você deve me odiar por isso.

Akira não respondeu, limitando-se a dar encorajadores tapas no ombro de seu melhor amigo. Isso geralmente alegrava Shinji, mas não naquele momento. Estava muito preocupado com o futuro da Fudomine para pensar em alguma coisa. Um novo pensamento surgiu em sua mente e ele sentiu-se culpado. Pensar que, por Akira ser o vice-capitão, ele tivesse chances maiores de assumir o cargo de capitão do time o entristeceu. Akira era seu melhor amigo, mas não o julgava responsável o suficiente para aquilo. Talvez ninguém fosse, afinal, o pilar essencial do time era Tachibana, sem dúvidas.

Estremeceu. O futuro em sua mente ficava cada vez mais obscuro e desconhecido. Não era nada bom, estava começando a ter um péssimo pressentimento sobre isso.

— Está fazendo de novo — alertou Akira.

Ele o olhou. Seu amigo ainda sustentava o simpático sorriso. Desviando o olhar e cruzando os braços, Shinji murmurou, desta vez bem consciente, um “me deixa em paz”.

Tachibana enfim voltou-se aos titulares da Fudomine que deixaria para trás. Shinji sentiu um nó na garganta quando o capitão do time se aproximou mais da rede, apesar de buscar manter sua expressão neutra como sempre. Por dentro, como de costume, estava um furacão de emoções e medos do que o futuro sem Tachibana poderia significar para si.

— Não pensem que esqueci de vocês — De maneira paternal, o veterano brincou. Talvez fosse impressão, mas, para Shinji, ele parecia mais maduro do que nunca. Cruzando os braços, ele se apoiou na perna esquerda em um casual gesto. — Queria agradecer pelo ano. Despedidas não são meu forte, mas vocês merecem que eu me esforce para dizer algumas palavras. Vocês cresceram muito ao longo do ano em que estivemos juntos, e tenho orgulho de cada um de vocês. Orgulho de ter sido parte desse time e ter visto e investido na evolução dele.

Shinji baixou os olhos. Tachibana era gentil em generalizar, mas sabia que ele era a exceção daquele discurso. No começo do ano, considerado o gênio da Fudomine; no final, o fracasso. Na verdade, nunca achou que era gênio nenhum. E talvez nem fosse. Talvez, novamente, todos estivessem sendo gentis como Tachibana. Ser comparado ao Fuji da Seigaku? Que piada.

Quando voltou os olhos ao seu capitão, ele estava olhando diretamente para si. Isso o desconsertou.

— Eu especialmente incluo você nesse discurso, Ibu — paciente, o capitão da Fudomine sorriu. Estava murmurando de novo, pensou Shinji envergonhado. — Você persistiu. Mesmo com sua derrota para Echizen no distrital abalando seu estado de espírito, você persistiu. E desde então, apenas cresceu e cresceu. Tornou-se mais que um gênio, mas uma referência.

Uma pausa. Shinji ouvia as palavras com a cabeça baixa, sem conseguir encarar Tachibana. Tudo soava como uma grande mentira, todavia. Ele só estava sendo gentil, querendo erguer o moral de um dos seus subordinados.

— Obrigado — respondeu a contragosto. Tinha certeza que o capitão o odiava naquele instante. Sentiu alguns tapinhas em seu ombro que com certeza vieram de Akira, mas não deu a menor importância.

Os olhos de todos os titulares voltaram-se à Tachibana, que retirava um retalho rosado do bolso traseiro da calça da escola. Era a faixa de capitão. Todos sabiam o que aquilo significava, e Shinji sentiu a atmosfera da quadra pesar como nunca antes. Olhou para seu amigo, que mantinha a palma repousada em seu ombro. Geralmente tão energético, Akira estava estático naquele momento.

Era óbvio que seria ele o próximo a carregar aquela faixa. Por que precisavam assistir toda aquela cerimônia sem sentido?

— Ibu — a voz de Tachibana ressoou repentina, chamando a atenção do rapaz. — É sua.

Shinji tossiu mais uma vez. Até então aquilo não fazia o menor sentido. Por que ele? Por que escolher um fracassado como ele para uma tarefa tão pesada quanto a de carregar o time da Fudomine? Era algum tipo de piada? Pois parecia.

Encolheu as pernas e as abraçou. A cozinha já estava ficando abafada, mas de algum jeito ele ainda estava respirando.

— Devia ter escolhido um jeito mais rápido. Isso está chato.

Acabou rindo ao se dar conta do que dissera. Não que morrer fosse divertido, lógico...

O cheiro metálico do gás de cozinha o remeteu a mais uma lembrança. Desta vez, mais recente, de seu aniversário de vinte e três anos.

Uma cozinha... Não era a dele.

— Você não tem raiva de mim?

O rosto da moça estava embaçado em sua lembrança, pelo visto ainda não havia superado a perda. Ela estava a uma distância aceitável, mas ainda assim muito próxima. E Shinji sentia que poderia ceder ao impulso de beijá-la a qualquer instante.

Mas logo ela se afastou. Voltou a cuidar do fogão, onde estava preparando um takoyaki delicioso, que só ela sabia fazer.

“O que eu estou fazendo?” Sentiu-se nauseado com a ideia. Era só uma quedinha boba, nada de mais. Não podia deixar aquela vontade vencê-lo tão facilmente, de jeito nenhum. Levou os cigarro que carregava aos lábios, como se pudesse transformar tal infame pensamento em fumaça.

— Yuna...

Ela o olhou. Suas palavras travaram na garganta, e tudo o que Shinji conseguiu fazer foi sacudir uma das mãos. “Deixa pra lá”, dizia o gesto, mesmo que seu rosto mostrasse tensão.

O que há de errado comigo?

— Nada. Só essa mania chata.

Akira surgiu no corredor com um confiante sorriso no rosto, logo curvando-se para apertar os ombros de seu melhor amigo. Em seguida, deu a volta no balcão e beijou Yuna no rosto. Como o casal apaixonado que eram.

O estômago de Shinji revirou.

Tosse, tosse, tosse.

As batidas na porta ainda existiam, e pareciam estar mais fortes ainda. Já não bastasse a tontura e a confusão, agora estava com dor de cabeça.

Lembrava bolas sendo rebatidas. Dum lado pro outro, dum lado pro outro...

— Game e partida, Hyotei! Seis games a quatro!

Parecia que seu cérebro era muito grande para sua cabeça tamanho cansaço mental que estava enfrentando naquele momento. Respirar se tornara uma tarefa quase impossível, e manter-se de pé estava realmente difícil.

Ainda assim, ele encontrou um jeito de gritar.

Lá ia o sonho do Nacional. E lá estava a prova de que era o pior capitão de todos os tempos.

— Shin...

Akira nem mesmo conseguiu se aproximar. Shinji se ajoelhara e começara a chorar. Tremia. Seu coração parecia prestes a sair de sua boca. Estava fora de si. Perder o torneio distrital só o deixava ainda mais longe de seu sonho. Pior ainda: era o capitão que eliminara a equipe.

Dali, de fora da quadra, o vice-capitão da Fudomine soube que seu amigo estava carregando toda aquela pressão e responsabilidade sozinho.

— Você fez o que pôde, capitão — Tetsu congratulou-o na lanchonete.

Ele manteve a cabeça baixa, apesar dos elogios dos outros integrantes do time. Eram mentiras, eles só queriam alegrá-lo. Sabia que, por baixo daquela maldita máscara de compreensão, cada um deles o odiava por ter tirado a chance de disputar o torneio nacional em um futuro próximo.

— Você age feito um durão, mas é só um garoto.

No caminho de casa, Akira declarou. Shinji fez uma careta. Não era verdade. Ele... Só não queria que as pessoas o machucassem.

Sacudiu a cabeça.

— Cala a boca — retrucou em seu tom mal-humorado de sempre.

Seu amigo desceu do canteiro onde se equilibrava em um salto, logo ficando diante dele. Shinji não se importou, nem mesmo esboçou uma reação. Akira, todavia, sorriu.

— Estou orgulhoso de você, Shinji. Quando Tachibana disse que queria você como capitão e não eu, eu te confesso que fiquei meio com o pé atrás... Não achei que você fosse fazer um trabalho tão bom. Mas você costumava ser minha dupla e eu sei o quanto você... — Shinji voltou a andar, ultrapassando-o. — Ei, espera! Ainda não acabei!

— Mas eu acabei de ouvir.

— Seu teimoso! — rugiu o rapaz, acompanhando o passo de seu amigo. — Me escuta!

— Escutar o quê? Você mentindo pra tentar me alegrar? — Shinji nem mesmo deu-se o trabalho de olhar para seu amigo. — Eu sei muito bem o que está acontecendo, Kamio. Eu estou farto disso. Segunda-feira vou passar a faixa a você e sair do time, não se preocupe.

O vice-capitão acelerou o passo e bloqueou a passagem de seu amigo, abrindo os braços de maneira infantil. Shinji reclamou alguma coisa que ele não deu importância, aproveitando a falta de reação de seu amigo para segurá-lo pelos ombros.

Não é culpa sua! — Akira parecia realmente irritado com a atitude de seu amigo. — A Hyotei sempre foi um time forte, você viu o trabalho que eles deram à Seigaku ano passado! Shinji, o problema não é você! Não tem motivo pra você abrir mão do posto!

Shinji desviou o olhar, o cenho franzido. Mentiras, mentiras, mentiras.

— O problema nunca foi você.

A visão de Shinji começava a escurecer.

— Mesmo que fosse... Eu te diria. Porque você é meu melhor amigo. E eu sei o quanto você é sensível. Não adianta negar, você se faz de durão mas por dentro é frágil. Lembra da vez que você chorou quando perdemos o distrital?

O Akira de vinte e dois anos o olhava com ternura, sentado na beira de sua cama. Shinji baixou o edredom onde se escondia e olhou com curiosidade para seu amigo, sacudindo a cabeça negativamente.

— Acho que bloqueei... — um murmúrio consciente, coisa ainda rara em sua vida.

— Você carregou nosso time, Shinji — com orgulho, Akira olhou para a janela do quarto. — Na hora, você surtou, e duvido que tenha parado para analisar as coisas com calma mais tarde... Só que você levou nosso time nas costas várias vezes antes, mesmo com todos os problemas que você tinha na cabeça. O que aconteceu no distrital foi mero infortúnio. Eu tenho muito orgulho de você, sério.

Shinji sentiu um nó na garganta. Aquelas palavras o pegaram de surpresa, ainda mais o tom honesto que elas carregavam. Como ele ainda poderia estar ao seu lado? Por que Akira não desistia dele como as muitas outras pessoas que conhecera ao longo da vida? Por que ele o ajudava tanto?

Esfregou o tecido contra os olhos.

— Shinji! — ele continuava a bater na porta.

— ... Me deixa em paz.

ME DEIXA EM PAZ!

Assustado, Shinji não soube o que fazer naquele momento. Era culpa sua, não podia negar. Como? Por que deixara ela tirar proveito tão facilmente de si?

Ou melhor... Era culpa sua ter cedido aos impulsos.

KAMIO!

Ele percorreu o corredor do apartamento que dividiam tentando chegar à porta antes de seu (ele ainda julgava) amigo, mas era tarde demais. A porta fechou bem na sua frente, e isso partiu seu coração. Deu um murro na porta, ele não soube porquê.

Grande amigo que era. O melhor de todos.

— Vai embora, Yuna.

— Mas...

— Pega as suas coisas... — O ar pareceu lhe fugir por um momento. — E vai embora.

Quando deu por si, seus pulsos estavam sangrando sob o balcão da cozinha. A garrafa de uísque quebrada ao seu lado, e um dos cacos entre seus dedos. Não sabia como, mas fizera. E não podia voltar atrás.

— ... Que dor.

Seus olhos fecharam e, aos poucos, sua respiração começava a desacelerar. Então era assim que morrer se parecia? Um grande nada, sem nem mesmo uma luz para alcançar? Que entediante.

— ... ji.

Seu corpo ainda estava pesado, mas ele se obrigou a abrir os olhos. O que estava acontecendo? Que estupidez. Falhara até mesmo no simples ato de tirar a própria vida. Era tão inútil assim?

Tentou mover as mãos para erguer o corpo. Gritou de dor.

— Não se mexe! — ordenou Akira segurando seu antebraço. — Os pontos podem abrir, cuidado!

Ele ergueu os olhos para Akira, confuso.

— O que você...?

— Não pergunta — rebateu, sem olhá-lo.

Shinji olhou ao redor. Não estavam mais em casa, mas sim em um quarto de hospital. Seus pulsos estavam imobilizados por talas, talvez para evitar ideias malucas como a que tivera a poucos instantes.

O pior logo foi imaginado: imagine um jogador de tênis perdendo o movimento das mãos?

Sacudiu a cabeça de imediato. A pergunta principal era o que seu amigo (ainda eram amigos então?) estava fazendo ali. Ele o desapontara profundamente, e ainda assim o rapaz estava ajudando-o. O que estava acontecendo? Pessoa nenhuma era tão boa.

— O médico já deve te dar alta — Akira falou, acomodando-se na cadeira ao lado da cama. — Foi só um susto, pelo visto.

— Kamio...

Ele o olhou. Shinji engoliu suas palavras.

— Desculpa — foi tudo o que conseguiu dizer.

Seu amigo, todavia, abriu seu tradicional sorriso. Foi a maneira mais simples dele dizer que, não importasse o que acontecesse, ele estaria ali ao seu lado. E Shinji o agradeceu por isso. De seu jeito silencioso, claro.

Olhando então para a cicatriz em seu pulso direito... Ela parecia tão distante. Não distante espacialmente, mas no tempo. Não parecia ter sido algo de semanas antes.

— Melhor te levar num psicólogo — suspirou Akira.

— Não...

— Pra você tentar se matar de novo? Não, obrigado. Você vai no psicólogo sim, senhor.

Não tinha como argumentar. Limitou-se a se encolher nas cobertas, como sempre fazia quando acuado. Akira atravessou o quarto, mas antes que pudesse sair, deu uma última olhada a seu amigo.

— Não faz isso de novo. Por favor.

Quando a luz foi apagada, Shinji teve certeza que começaria a chorar. Mas não o fez, para sua surpresa. Ao invés disso, apenas refletiu.

Akira era, sem dúvidas, a pessoa mais importante de sua vida. Seu melhor amigo, e a única pessoa que o entendia. Aquele trabalho todo que ele tinha com ele... Como poderia agradecer algum dia? Existiria uma forma de retribuir? Por todos aqueles anos que passaram juntos, não conseguia lembrar-se de um único momento que o agradecera por todo aquele apoio. Era culpa sua, de seu gênio ruim. Era uma péssima pessoa, sem dúvidas.

— Ei, capitão.

Não teve muito tempo para reagir. Teve uma jaqueta jogada para si.

— Achei isso ontem. Já fazem uns anos, não é?

Ele encarou a jaqueta negra dos tempos de colégio. Antes tão gloriosa, agora não passava de uma roupa velha que carregava consigo um valor emocional gigantesco. O início de todos os seus problemas. Desde que assumira aquele posto, sua vida fora ladeira abaixo. A perda do nacional, a traição para com Akira, sua tentativa de suicídio...

— Shinji?

Ele abraçou a jaqueta como uma criança. Estava chorando.

SHINJI!

A porta cedeu. A primeira providência de Akira foi de abrir as janelas da cozinha para o gás escapar. Sem pensar muito, pegou o corpo de seu amigo nos braços e o sacudiu.

Uma resposta, só uma.

(Para de carregar o peso do Universo nas suas costas, Shinji. Eu estou aqui, eu quero te ajudar. Você é meu melhor amigo, minha dupla, meu capitão. Eu só queria que você tivesse mais confiança em si mesmo. Você é um gênio. Quer você queira ou não, você é um gênio)

— Shin...

Não conseguiu nem mesmo terminar de falar o nome de seu amigo. Parecia que sua garganta havia fechado. Respirar estava difícil, e as lágrimas teimavam em sair. Apertou-o com força, como se de alguma maneira suas preces pudessem trazê-lo de volta à vida.

— Me perdoa...


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