O Máscara escrita por MileFer


Capítulo 3
Segredos




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Quando o estômago de Adélia roncou, ela finalmente voltou à realidade em que vivia. Ela estava enroscada em sua cama, encarando as cortinas imóveis de sua janela, ainda pensando sobre o que acontecera naquela manhã e sobre as várias questões que tudo aquilo despertara em seu interior.

Ela mal pensava em seu passado, e raramente sentia alguma coisa que não fosse satisfação em relação a seu presente. Ela não sabia nada sobre sua verdadeira mãe ou seu verdadeiro pai, pois o orfanato onde crescera não lhes dava esse tipo de informação; primeiro pelo fato de que ela era uma criança, segundo por que ela não sentia a necessidade de perguntar. Mas ela tinha curiosidade em saber o que acontecera agora, aos dezessete anos, para que seus pais verdadeiros a abandonasse, mesmo que não fosse o tipo de questão que a deixasse acordada durante a noite. Ela era feliz com Suzane e Thiago, e os dois lhe satisfaziam muitíssimo como pais.

Ela foi uma criança feliz no orfanato onde crescera – tinha amigos e brincava com eles todos os dias, sem falar que as mulheres que cuidavam deles eram tão doces e gentis que todas as crianças adoravam-nas, exceto uma ou outra que adorava pegar no pé das crianças, mas que sempre eram motivos de brincadeira entre elas. E também tinha o Instituto Florence, onde passara metade de sua adolescência.Todos eram muitos gentis também, sem falar que a educação que recebera lá era satisfatória e promissora. Adélia, inclusive, tinha amigas lá também, que a ajudavam a passar os dias de tédio contando-lhes histórias sobre suas vidas e lhe dando dicas sobre todo tipo de coisa, desde maquiagem até garotos – o qual Adélia não se via usando tão cedo. Era feliz em sua vida simples no Brooklyn também, com seus pais - mesmo que ali não tivesse amigos para conversar ou dar um passeio durante os sábados. Ela nunca exigira nada de seus pais ou abusara de alguma coisa. Era uma garota normal; adorava livros e música, sua sobremesa preferida era sorvete de baunilha com cauda de chocolate, e sua cor favorita era lilás. Ela também amava gardênias jasminóides (embora nunca tenha visto uma antes, só lera sobre tal em um livro na biblioteca do Instituto Florence e se apaixonara pelas fotos ilustrativas, tanto que até imprimiu algumas e colou na parede de sua cama, no dormitório). Ela também tivera medo de escuro quando era criança; também tivera medo de que houvesse um monstro debaixo de sua cama. E, como toda criança adotada – ou, pelo menos, ela achava que fosse com outras pessoas e não só com ela – ela também tinha medo de que seus pais a abandonasse, principalmente quando suas férias começavam e seus pais tinham que ir buscá-la no Instituto Florence e demoravam para chegar, ou avisavam que só poderiam ir buscá-la um dia depois. Ela tinha medo de que eles a abandonassem lá, e que só arranjavam aquelas desculpas para não chateá-la. Mas é claro que eles nunca fariam aquilo, não é? Eles a amavam; era o que sempre diziam quando ela tinha que voltar ao Instituto, depois das férias.

“Nós te amamos, querida”, os dois diziam, olhando-a nos olhos. “Voltaremos sempre para buscar você. Nós prometemos”.

Ela tinha tudo o que queria agora: pais amorosos e que cuidavam tão bem dela que Adélia sentia o peito doer ao se imaginar sem eles. Tinha uma casa onde morar, um quarto lindo para dormir, seus livros preferidos...

Então por que voltar ao passado logo agora? Quando tinha todas as coisas que sempre quisera? Ela estava feliz ali; e se voltasse ao passado e todo o presente mudasse? Havia um grande risco de se magoar ao fazer aquilo, bem como as experiências que vira na internet, ao usar um computador da biblioteca do Instituto Florence. As pessoas que deram depoimentos nos sites onde ela procurara disseram que tiveram uma experiência ruim – pelo menos a maioria – e a minoria disse que a experiência havia sido agradável; mas não era algo agradável que Adélia buscava, e sim algo bom, reconstrutor ou então algo que suprisse aquele vazio que ela sentia dentro de si.

Mas para quê mexer em algo que já está perfeito?

Adélia encarou o relógio que ficava na mesinha ao lado de sua cama. Ele indicava que já eram onze horas e quinze minutos do dia, e ela ainda estava com fome por não ter comido nada quando acordou. Talvez se lhe explicasse que esquecera o café da manhã, sua mãe a deixasse devorar alguns biscoitos, mas que deixasse um espaço para o almoço.

Ela desceu as escadas as pressas, tomando o cuidado para não tropeçar em nenhum degrau e se estabanar no chão. A sala ainda estava vazia, sem nenhum sinal de seu pai; talvez ainda estivesse do lado de fora com aquele homem, mas seria falta de educação se ela espiasse pela janela da sala para ter certeza. Adélia sentiu um calafrio na espinha ao se lembrar dos olhos cinzentos dele. Ela foi até a cozinha, na esperança de que sua mãe ainda estivesse lá; mas não estava.

Depois de pegar três biscoitos dentro do pote, Adélia voltou para a sala e sentou-se no sofá, na esperança de que se recordasse de algum aviso que sua mãe dera antes que ela fosse para o quarto, mas nada lhe vinha à mente. Ela encarou o telefone sem fio disposto na mesinha de centro, perguntando-se se deveria ligar para o celular do pai naquele momento ou se deveria esperar mais vinte minutos, só para o caso de ele aparecer nesse meio tempo. Ela até ligou a televisão e passeou pelos canais da TV a cabo, mas não havia nada que lhe agradasse na programação de domingo. Então ela decidiu ler, já que nenhuma outra coisa lhe veio à mente.

Quando estava de volta ao seu quarto, Adélia foi à procura do livro que começara a ler na noite passada, jurando a si mesma que o havia deixado na mesinha ao lado da cama. Depois de procurar pela terceira vez na mesma mesinha, Adélia desistira. Mas havia um livrinho de capa dura e cor de rosa, com letras elegantes e douradas intitulado a capa:

A Bela e a Fera: Um Conto Clássico.

Imediatamente, Adélia lembrou-se da alteração repentina de humor da mãe ao vê-la com aquele livro nas mãos. Ela o segurou com força, tão perdida em pensamentos que mal notara seus dedos ficarem brancos. Ela sentou-se na cama e o colocou no colo, roendo as unhas com um misto de ansiedade e culpa. Sua mãe ficara mal quando a vira com ele nas mãos, mas ela estava tão curiosa para saber o que havia de errado com aquele livro e o motivo pelo qual fora censurada para não lê-lo que não aguentou e abriu o livro na primeira página.

Estava em branco. E a segunda também. Até a terceira.

Talvez fosse assim que os livros antigos fossem publicados, então ela não deu muita importância para aquele detalhe. Mas, na quarta página, havia uma mensagem que prendeu toda a consciência da garota trêmula.

Será que um coração tão meigo e bondoso como o seu é capaz de tolerar a pior das maldições?

Adélia tentou responder àquela pergunta, mas era um tanto difícil naquele exato momento. Ela não conhecia ninguém que sofrera uma maldição, e era até um tanto cética quando a esse tipo de coisa. Para ela, aquilo era coisa de contos de fadas e, embora se divertisse com histórias do gênero, ela não acreditava em nada daquilo.

Depois de passar por aquela página, ela encarou as letras elegantes que diziam Era uma vez... e fechou o livro com força, hesitando. Ela estava mesmo tão curiosa a ponto de perder a confiança da mãe por causa daquele livro?

Bem, não tem ninguém aqui...

Ela repreendeu seu inconsciente por começar com as ideias que logo lhe dariam liberdade.

Bom, se Suzane não quer que você leia, por que ela o deixou aí?

Essa foi uma questão que pegou Adélia de surpresa. Ela tinha a certeza de que Suzane saíra de seu quarto com aquele livro embaixo do braço, bem seguro de que ele não escaparia. E ela não fazia ideia de onde a mãe o escondera depois – se é que escondera.

Talvez ela tenha mudado de ideia e agora deixe você ler.

Adélia deu de ombros; se Suzane deixou aquele livro ali, era por que havia mudado de ideia em deixá-la ler. Afinal, o que poderia ter de demais naquele conto de fadas? A própria Suzane já lera para Adélia várias vezes durante sua infância; por que não deixá-la ler agora?

Sentindo-se muito nervosa, ansiosa e um tanto animada – como uma criança que faz a primeira travessura sozinha quando os pais estão fora – Adélia abriu o livro de novo no capítulo um, e se pôs a ler.

Era uma vez...

Adélia saltou de susto quando ouviu um estrondo vindo da sala, em seguida vozes. Trêmula de susto, ela pegou o livro e o enfiou debaixo do travesseiro.

Ela não chegara a terminar o livro; ela parou de ler no momento em que a pobre garota acabava dentro do castelo da fera, temendo ser devorada. Ela enfiou as mãos debaixo dos travesseiros e tocou o livro, sentindo-se muito estranha consigo mesma depois de ler aquelas poucas palavras. Não era culpa por ter lido, mas sim algo próximo de reconhecimento, já que a garota sacrificava a própria vida para salvar o pai. E ela poderia ter feito o mesmo por seus pais. Pensando naquilo, ela entrou em uma série de pensamentos profundos sobre sacrifício.

Será que existe algo, ela se perguntou, que eu não faria por meus pais? Será que eu poderia salvá-los caso alguma coisa ruim acontecesse?

Um arrepio sombrio passou por seu corpo, e Adélia se obrigou a parar de pensar naquilo.

Adélia?- Suzane adentrou no quarto da filha sem nem sequer bater na porta, que estava entreaberta. Adélia estava deitada e, ao ouvir o som da voz da mãe, ela se apressou em sentar, atrapalhando-se toda com os travesseiros. – O que está fazendo? Você está bem?

—Estou sim – ela respondeu, sentando-se na cama; só alguns segundos mais tarde ela percebera o quão rápido seu coração batia. – Onde está meu pai?

Suzane teve que se controlar ao máximo para não cair. Ela estivera preocupada em deixar a filha sozinha em casa, mas precisara deixar Thiago no hospital mais próximo com urgência. Depois da forma como Adam os ameaçara, Suzane teve que resistir muito a seu desespero para não ir correndo para casa só para ter a certeza de que Adélia estava bem, mas também precisava cuidar de seu marido o quanto antes. Aquilo quase a fez perder o juízo como quem perde um alfinete em meio a uma multidão.

Até aquele momento, quando vira que Adélia estava bem e que Thiago estava se recuperando bem, ela sentiu que finalmente poderia respirar com tranquilidade. Mas então se deu conta de que não havia como contar a verdade para Adélia. A garota estava sentada em sua cama, encolhida como se estivesse com frio. Seus olhos passeavam pelo corpo da mãe, como se procurasse por algo; ela também mordia os lábios, e seus olhos indicavam que ela estava muito inquieta.

—Tem certeza de que está bem? – Suzane teve que perguntar, pois precisava de mais tempo para arrumar uma desculpa para os ferimentos aparentes de Thiago.

Adélia assentiu.

—E meu pai?

Depois de suspirar bastante e sentar-se na cama junto com a filha, Suzane se preparou para contar o que acontecera.

—Ele foi atropelado – ela disse, tensa. Ao ver a expressão da filha passar de confusa para chocada, ela logo se apressou em completar: - Mas não foi nada grave. Apenas alguns ferimentos.

Adélia abriu a boca para tentar falar algo, mas nada saiu. Ela sentiu seus olhos arderem, mas nenhuma lágrima caiu.

—Eu posso vê-lo? – Sua voz soou mais trêmula do que ela esperava.

—Ele ainda está no hospital, só por garantia de que vai ficar melhor. – Aquilo não era totalmente uma mentira, então Suzane tocou o rosto da filha sem nenhum receio. Suzane não gostava de mentir para ela, pois Adélia era tão meiga quanto ingênua, e enganá-la era como machucar gravemente um coelho pequeno e indefeso. E quando Adélia descobrisse toda a verdade... O peito de Suzane doeu com aquela expectativa apavorante. – Ele está bem, querida. Não chore.

Adélia enxugou rapidamente uma lágrima que escapara sem que ela percebesse. O pensamento de alguém machucando seu pai a machucara, mas saber que sua mãe estava cuidando dele e que ele estava bem já a proporcionara um alívio enorme.

—Quando ele irá voltar?

—O médico disse que está noite. – Suzane encaixou o dedo indicador em um cacho solto da filha. – Eu queria ter a certeza de que você estava bem antes de voltar para o hospital.

Adélia encarou seus dedos se contorcendo em seu colo. Ela se sentia ansiosa e ao mesmo tempo amedrontada. Ao encarar a mãe, Adélia não pôde dizer o que viu. Parecia que Suzane estava mil vezes mais ansiosa e amedrontada do que ela. E com alguns sentimentos adicionais que faziam seus ombros se curvarem. Agora que estava mais próxima, Adélia pôde notar que os olhos azuis da mãe estavam avermelhados e inchados, como se tivesse chorando muito. Sem pensar duas vezes, Adélia se jogou nos braços da mãe, abraçando-a o mais apertado que podia. Adélia queria tomar todas as dores que sua mãe sentia naquele momento, e se possível as do seu pai também. Ela queria poder cuidar de ambos e protegê-los de todo o mal que os atingisse.

Quando se afastou, Adélia acariciou os cabelos da mãe cheia de ternura. Naquele momento, ela quis agradecer por tudo o que Suzane lhe dera; pela adoção, por seu amor maternal, por sua dedicação... Mas Adélia não conseguia dizer nada naquele momento graças à bile que se formava em sua garganta, sufocando-a.

Adélia respirou fundo, tentando não chorar.

—Deixe-me ir ao hospital com você – ela pediu, um tanto envergonhada por sua voz ter soado tão embargada.

Suzane mal dera tempo para processar o resto das palavras da filha.

—É melhor que fique aqui, querida. Seu pai e eu voltaremos logo – ela disse. Ao notar o olhar magoado de Adélia, Suzane deu um beijo na testa dela e levantou-se imediatamente da cama, antes que comecasse a chorar. Ela queria contar tudo a Adelia, naquele instante . Mas sabia que estava desesperada, e que se fizesse aquilo naquele instante, Thiago nunca iria perdoá-la. Depois de se despedir de Adélia e ir até seu quarto e reunir poucas roupas limpas para Thiago, Suzane encarou o prédio onde morava. Se a dez anos atras, alguém chegasse para ela e disesse que ela iria morar em um prédio como aquele, ela teria gargalhado e virado mais uma taça de champanhe caro garganta abaixo; nas se alguém a perguntasse se ela preferiria sua antiga vida de volta, ela negaria com toda certeza. Ela enxugou uma lágrima que escapara e entrou no velho Chevrolett 97 de seu marido.

Thiago estava prestes a atirar um biscoito de gosto horrível na pequena televisão embutida na parede do quarto onde estava, quando Suzane adentrou pela porta. Sua expressão indicava que andara chorando, e que estava muito furiosa.

—Suas roupas – ela jogou a bolsa preta na maca onde Thiago estava e depois se virou para fechar as cortinas que os separavam de dois pacientes, um de cada lado do leito dele.

—Ela está bem?

Suzane não respondeu; ela parecia concentrada demais puxando uma camiseta cinza para fora da bolsa e a colocando de lado na maca. Era visível que Suzane estava furiosa, mas suas atitudes indicavam que não era com as coisas alheias. Thiago suspirou, procurando um motivo pelo qual ela estivesse furiosa com ele.

—A culpa é nossa — ele disse, na esperança de que aquilo, de alguma forma, aliviasse a tensão que envolvia seu mundo.

—É claro que a culpa é nossa! – Suzane disparou, fulminando Thiago com o olhar. – Acha que é fácil esquecer isso?

Ela emaranhou os dedos nos fios soltos de seu coque, suspirando. Ela precisava lembrar que, por mais furiosa que estivesse naquele momento, ainda estava em um hospital e tinha que se controlar; o que era duro, claro.

—O que disse para Adélia sobre isto? – Ele fez um gesto com a mão, indicando seu rosto. Ele ainda podia sentir a pulsação que as manchas roxas em suas costas davam, apesar dos remédios para dor que o médico lhe deu.

—Disse que foi atropelado – Suzane respondeu, sem encará-lo. Ela sentou-se na beirada da maca, encarando os dedos dos pés expostos em sua sandália. – E ela acreditou. Sem perguntas nem nada...

—Ei – Thiago fez um esforço doloroso para sentar-se e alcançar as mãos da esposa. Ao tocá-las, ele pôde sentir o quanto estavam gélidas e trêmulas; ele sentiu uma necessidade enorme de abraça-lá e niná-la em seu colo, mais ainda de dizer que tudo ficaria bem. Mas aquelas palavras seriam como palavrões; mais falsas do que a beleza de uma flor artificial que tenta tomar o lugar da beleza de uma flor real. E ainda corria o risco de aumentar a dor de sua esposa ao pronunciá-las. – Ainda temos tempo de fazer um novo plano...

Plano? Como consegue pensar em fazer um novo plano depois de tudo isso? Depois de tudo... – A frase de Suzane foi interrompida por um soluço que partiu o coração de Thiago. Ela cobriu o rosto com as mãos, para abafar o som que sua garganta ecoava a cada soluço.

Vê-la se encolhendo daquele jeito enquanto tentava abafar o som do próprio choro fez Thiago se sentir impotente. Ele quis ter alguma coisa na cabeça que pudesse lhe dizer naquele momento, para que fizesse com que Suzane o encarasse com qualquer que fosse o sentimento; esperança, dúvida, alívio... Qualquer coisa que não fosse aquele sentimento de perda e arrependimento que pairava sobre ambos.

—Precisamos contar para ela o que fizemos – Suzane enxugou o rosto e encarou Thiago. – Ela vai nos odiar quando souber. Mas precisamos.

Thiago suspirou. Sabia que sua mulher estava desesperada – e ele também estava! Mas de que adiantaria tanta euforia naquele momento?

—Ah, Thiago... – Suzane segurou com tanta força os dedos do marido que, se ela não estivesse tão frágil, poderia ter torcido todos eles. – Eu não quero perdê-la. Eu não suportaria!

—Suzane! – Tudo o que Thiago queria era não ser rude com sua esposa, mas ele estava tão apavorado com aquela possibilidade que não pôde evitar que suas palavras soassem como um sermão. – Nós não vamos perdê-la, tudo bem? Nós não vamos.

—Eu queria poder acreditar em tudo o que diz nesse momento – ela disse, e aquilo fez com que uma pontada de dor despertasse no coração de Thiago.

Aquelas palavras doeram, pois eram fato; ele queria protegê-la, lhe reconfortar. Mas tudo o que dissesse para ela soaria como mentira. Se lhe dissesse que não perderiam Adélia, estaria mentindo; se dissesse que Adélia os perdoaria, estaria contando uma mentira maior e mais dolorosa. Mas, se admitisse a verdade, a dor poderia se tornar mais insuportável do que já era.

Suzane estava prestes a dizer alguma coisa, quando um homem usando um jaleco imaculado afastou as cortinas que os separavam dos demais pacientes, com uma prancheta nas mãos.

Ao ver a esposa de seu paciente aos prantos, o Dr.Grant suspirou. Ele era médico a cerca de quatro anos, e já vira de tudo: crianças e adultos medrosos até mulheres/esposas dramáticas e excessivamente preocupadas – muitas vezes por apenas um corte ou uma dor de cabeça forte demais. E, sinceramente, esses eram os pacientes que ele menos gostava de atender.

—Senhor e senhora Moretz – ele começou, lendo o papel que tinha em mãos. – Aqui diz que não há nada grave. Nenhuma costela fora do lugar e etc.

Ele entregou o papel para a mulher, que o pegou com mãos trêmulas.

—Tome mais cuidado com as escadas,Sr.Moretz – ele tentou, em vão, fazer uma piadinha para aliviar a tensão de seus pacientes. O homem deitado na cama apenas lhe lançou um olhar furtivo, e a mulher sequer o encarou. – Como não foi nada grave, o paciente já pode ir para casa. E não se esqueçam dos remédios. – Completou, enquanto balançava uma caixa pequena de medicamento.

Mesmo depois que sua mãe saíra de casa, Adélia ainda ficara petrificada na cama, sentada e encarando fixamente a porta que sua mãe deixara entreaberta ao sair.

Seu pai havia sido atropelado e estava hospitalizado. E ela ainda achava que tivera um pesadelo.

É inacreditável o modo como as coisas ruins atingem as pessoas; em um segundo, está tudo bem. No outro, as coisas simplesmente desandam e de repente as coisas ruins acontecem. Pelo menos era assim que Adélia pensava. Ela desejou ter ficado com ele, apesar de que seu pai a mandara voltar para casa. Ela queria poder ter protegido ele - o que seria totalmente impossível, já que ela era pequena demais para sequer estapear alguém.E não que ela gostasse de violência; pelo contrário, era totalmente contra. Seus pais nunca deixaram que ela assistisse a filmes violentos demais, nem que saísse sozinha pelo Bronklyn. Ela sabia o que acontecia do lado de fora de sua casa: pessoas eram vítimas de outras pessoas por maldade. Sua mãe dissera para ela uma vez que a violência estava em todo lugar, e que quase era evitada. Adélia aprendera sobre isso no St.Florence também, quando seus professores faziam palestras incentivando as alunas a serem contra e como evitar a violência.

Mas algo ainda a intrigava: por que as melhores pessoas eram sempre as vítimas mais fáceis da maldade?

Naquele momento, tudo o que ela mais queria era poder estar ao lado de Thiago, para poder abraçá-lo e ter uma garantia a mais de que ele estava bem, para confortar seu coração.


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