Kilian escrita por Dessa_Soliman


Capítulo 4
Kilian e Jora




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Jora era um sauríano típico. Alto, grande e largo. Todo musculoso. A pele era de um marrom escuro, os olhos vermelhos. O nariz largo e os lábios grandes. Tinha o cabelo sempre raspado. Apesar de assustador fisicamente, demonstrando somente força bruta, Jora era muito mais que isso. Ele era forte, sim, muito forte, mas também era rápido e tinha reflexos incríveis. Era um verdadeiro guerreiro.

E inteligente. Jora era um dos caras mais inteligentes que Kilian tivera o prazer de conhecer.

Além disso, ele estava na guerra em Saurwo. Mas, diferente do que se imagina, não estava ao lado do seu povo, estava junto com os Exploradores.

Jora nascera em Saurwo, mas ainda jovem foi levado para a Terra. Toda sua vida fora treinado em artes marciais antigas e estudara as mais diferentes matemáticas e físicas, envolvidas no processo da tecnologia humana. Isso o tornou pouco social, apesar de extremamente fiel aos seus ideais.

Kilian se identificou automaticamente com o sauríano. Talvez fosse a influência da mãe na sua vida, não sabia dizer, só sabia que criara um laço forte com o outro ainda no primeiro momento.

Ainda mais quando o primeiro momento foi Jora salvando sua vida. Ele fizera algo que Kilian nunca faria. Matara um sauríano que, certamente, ia ferir gravemente o mestiço. Aquele não foi somente o primeiro contato de ambos, foi o momento em que o caçula Luren aprendeu a confiar em alguém.

Kilian nunca julgou o sauríano pelo que ele fez, tendo em mente que ele próprio matara alguém da raça de seu pai. A raça que crescera junto. A raça que ele sabia nunca ter se identificado, quando a pessoa que era sua inspiração não era daquele planeta.

Numa noite qualquer, enquanto estavam de guarda no meio daquele caos, dividindo uma garrafa de chá, bebida preferida do amigo, Kilian descobriu os motivos de Jora entrar para a tropa de exploração. Ele queria ser um pacificador. Impedir que acontecesse a outros planetas o que acontecera ao seu próprio. Que, apesar de ter passado boa parte de sua vida na Terra, Jora admitia ter saudades de casa.

Kilian sempre soubera que os habitantes de outros planetas, que passavam a residir na Terra, tinham de passar pelo processo de implantação da nanotecnologia. Não foi diferente com Jora. Ao contrário do mestiço, o sauríano usava seu sistema para aumentar sua força. Seu controle mental estava em endurecer a própria pele, fazendo com que o impacto fosse ainda mais terrível. Também era uma proteção.

Quando descobrira isso, Kilian aceitara que ele e seu irmão não eram os únicos a terem aquele conhecimento. Ele criou uma teoria que somente mentes “preguiçosas” não desenvolviam seu próprio poder. E com preguiçosas ele queria dizer habituadas. Aquelas pessoas que se contentavam com o pouco.

A guerra aproximou os dois, e Kilian não podia deixar de pensar nas palavras do irmão. Uma e outra o garoto se pegava revendo os vídeos que o irmão enviava durante suas missões. Os sorrisos, o rosto cansado, aqueles olhos chamativos...

Kilian tinha saudades do irmão. Eles sempre foram extremamente unidos, quase não se notando a diferença de sete anos entre os dois. Um dia ele se pegou desprevenido, e Jora acabou por assistir ao último vídeo de Dilian com ele.

Ele não chorou, mas o silêncio carregava as lágrimas que ele se impedia de soltar.

Jora passou a treinar com Kilian. O mestiço admirava em segredo as habilidades e aptidões físicas do amigo. Ele era rápido, preciso e forte. Ele nunca ia cansar de dizer isso. Em um combate corpo a corpo, apanhava. Em quesito de força, apanhava. No tiro ao alvo, apanhava. O único momento que não apanhava do sauríano era em uma boa corrida. Apesar de rápido, Kilian ainda tinha essa vantagem sobre o outro. E esse momento sempre o divertia.

Apesar de todas as aptidões físicas, Kilian era incontáveis vezes melhor que Jora quando o que estava em questão eram equipamentos eletrônicos. Uma aptidão que herdara de seus pais cientistas. Tudo que caia em suas mãos, Kilian tinha uma forte vontade de melhorá-la. Se não conhecia o objeto, desmontar, analisar, montar de novo e melhorá-lo.

Kilian era apaixonado por desmontar coisas e montá-las de novo. Jora perdera a conta de quantas vezes vira o amigo destruir a própria arma, montá-la novamente e desmontá-la mais uma vez.

E isso somente nos momentos de tédio, entre uma vigia e outra.

A verdade era que Kilian sentia necessidade de estar sempre em movimento. Muito tempo parado significava reflexão e, no meio de uma guerra, o mestiço não tinha condições para pensar. A única coisa que ele queria refletir era o momento em que voltaria a ver seus pais.

O que, mais tarde, ele descobriu que ainda demoraria meses para acontecer.

Kilian redescobriu a amizade pura de Jora no momento em que estourou com Ana. Aquele dia fatídico, em que ele reafirmou seu ódio pela garota, Jora apoiou-o completamente. O sauríano nunca contestou-o ou criticou-o, apesar de ele ver em seu rosto o quão errado estava.

Em sua raiva pura, Jora somente ficou ao seu lado, escutando-o. Foi nesse momento em que, pela primeira vez, revelara seu medos e suspeitas para o amigo. Duas vezes em um mesmo dia.

E mais.

Para Jora, ele confessou que matara o Primeiro Explorador Marciano. Ele chegou a temer a expressão que seu amigo fizera, substituindo a raiva que estava sentindo por Ana pelo medo de o amigo passar a temê-lo.

Mas, no final, não foi isso que acontecera.

— Como você se sentiu? — A pergunta viera depois de muitos minutos silenciosos. Kilian refletiu sobre ela, coisa que fazia diretamente. E ainda não tinha a plena resposta.

— Indiferente, eu acho. Quase beirando ao vazio. — Ele encarou o amigo, que tinha os olhos vermelhos voltados para ele. Kilian estava tenso, atípico em seu cenho sempre concentrado.

— Isso é bom, eu acho. Significa que você não é completamente como eles. Você não gosta de matar, mas também não sente remorso.

— É diferente. — Kilian nem mesmo deixou o amigo completar seu raciocínio. Existia uma forte vontade de se retificar. — Eu matei somente ele. Uma única pessoa. Um humano sem escrúpulos. Alguém que participou da morte do meu irmão. Eu... — Ele fez uma pausa, a raiva rebrotando dentro dele. — Eu estou errado por querer justiça?

Kilian viu seu amigo levantar-se, esticando o corpo dolorido por tanto tempo sentado. Os olhos vermelhos novamente se prenderam nos castanhos, e o mestiço ficou ansioso pela resposta. Ele precisava daquela resposta.

Precisava que alguém lhe mostrasse onde estava errando.

— Uma vez o monge me disse que a linha entre a justiça e a vingança era extremamente sútil, e você nunca saberia em que lado estaria. Em qual lado você está, Kili?

...

Kilian voltou seu olhar para Emir, que ainda o analisava concentradamente.

— Eu não estava errado em querer justiça, Emir. Jora me mostrou, aquele dia, que eu estava errado em querer Vingança.


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