Kilian escrita por Dessa_Soliman


Capítulo 16
Kilian e Ras'Shire




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Kilian terminou de vestir seu uniforme, olhando-se novamente no espelho. Eles tinham lhe advertido que houvera mudanças, mas ele quase não conseguia acreditar no que via. A descarga que sofrera, toda energia acumulada em seu corpo que escapara, afetara seu organismo de forma a modificar seus dados genéticos. Aqueles que definiam seu corpo. O dominante tornou-se recessivo e o recessivo dominante. Havia formas de fazer aquilo através da nanotecnologia em seu corpo, mas nunca cogitara aquela possiblidade.

Olhar-se no espelho era estranho.

Seus cabelos, antes pretos, adquiriram mechas vermelhas. Estavam quase raspados, mas, segundo eles, tiveram de fazê-lo por estar perdendo muito cabelo. A nanotecnologia em seu corpo permitia que ele se curasse rapidamente, e isso servia para todo seu organismo, principalmente quando ativadas com os reagentes do laboratório que utilizaram em seu corpo. Ele perdera peso, também, estando mais magro do que deveria. A pele estava mais pálida que o normal, mas sabia que logo retomaria o tom de antigamente, se não tivesse sofrido nenhuma mutação. Seus olhos, esses eram os que mais o assustavam, tinham adquirido uma coloração completamente nova. O direito ainda estava castanho, mas com um tom avermelhado nas bordas, como se ali tivesse perdido completamente a melanina que antes definia sua cor, e o esquerdo estava exatamente como eram os de Dilian, entre o castanho e o verde, com tons dourados.

Ele era ele, mas quando se olhava no espelho sentia-se uma pessoa diferente. Os exames, pelo menos os que podiam ser feitos no laboratório da nave, não mostravam nada de anormal em suas células, além daquela mutação física que elas passaram a apresentar, mas Kilian pensava se algo mais não se modificara. Também havia instabilidade hormonal, mas isso era normal devido ao baque que sofrera. Em alguns dias era para estar novo.

Agora ele tinha coisas mais importantes para fazer do que preocupar-se com seu físico.

Em passos lentos, ainda relutantes com medo de falhar, como diversas vezes acontecera durante a semana, Kilian chegou à sala de controle. Parecia uma pequena reunião em que todos se encontravam lá, esperando somente que ele aparecesse. Passou a mão pelos cabelos extremamente curtos e sentiu-os pinicar, não gostando daquela sensação.

— Não aceito mais esquivas como respostas. Onde está Ras’Shire? — Ana foi a primeira a se manifestar, soltando um som meio engasgado como um bufar. Ela tinha a postura rígida, os braços cruzados em frente ao corpo, enquanto o pé batia no chão, impacientemente. Os olhos escuros de Ana pareciam não querer encará-lo, olhando para qualquer lugar daquele ambiente, menos ele. Os outros pareciam meramente constrangidos. — Comece a falar, Ana.

— Você está muito mandão para quem acabou de sair de uma cama. — Ela era assim mesmo, e ele nem se importava mais com suas palavras duras. Encarou-a levantando o cenho, como se incentivasse ela a prosseguir. — Aquela espécime me dá nojo. Está na ala oriental.

Ele virou-se para sair, mas antes que pudesse, Pierail segurou-o.

— Não vai gostar do que vai ver lá. Tentamos contê-la. — Ele tinha reparado nas vezes que Pierail e Jora apareceram machucados. Virou-se para Ana novamente, caminhando até ela.

— Eu gosto de você, Ana. Mas também te odeio. Tenho isso em mente até eu voltar.

Era uma verdade inegável e todos sabiam disso. O relacionamento daqueles dois era baseado em amor e ódio. Eles se preocupavam um com o outro, assim como tinham aquelas necessidades físicas constantes, mas eram diferentes, e em resto se odiavam. O amor prevalecera até aquele momento.

Dali em diante seria ódio e o objetivo em comum que os manteria unidos.

Com passos rápidos, mais rápidos que os anteriores, mas ainda assim cuidadosos, caminhou em direção à ala que era designada como segurança total. Ele tremeu um pouco antes de digitar a senha, com real medo do que encontraria.

E Ras’Shire estava lá, deitado no chão. Apesar da situação feia em que se encontrava, os outros membros da sua equipe cuidavam dele. Os machucados estavam limpos e vários enfaixados e cuidados. O ambiente não tinha sangue e cheirava a desinfetante.

Ele se viu segurando o outro entre seus braços.

Ras’Shire não tinha movimentos. Estava sedado pela dor. Aquilo deixou-o preocupado e, antes que conseguisse, tentava levantá-lo, tirá-lo daquele ambiente. Não conseguia. Ambos não tinham forças o suficiente para isso.

E as palavras de ambos estavam mergulhadas em lágrimas e desculpas. Nenhum dos dois tinha culpa daquilo, mas ambos sentiam-se culpados. Ras’Shire sussurrava desculpas pela dor que Kilian sentira por ter seu Condutor de Pulso Elétrico danificado, e o mestiço pedia desculpas pelas ações de seus colegas.

Ele não soube no momento, mas assim que Ras’Shire o vira em agonia, seu desespero atingira níveis que o fizera ir contra todos de seu povo, com medo de que Kilian morresse, e ele tivesse falhado em salvá-lo, assim como falhara com Dilian.

Não teve noção de quando aconteceu, mas Jora e Pierail apareceram, levantando Ras’Shire e levando-o para onde Kilian mandara. O quarto destinado a ele. Ali o outro permanecera, enquanto o mestiço cuidava de seu sono, analisando o rosto inchado, as marcas escuras sobre a pele antigamente tão dourada, e agora pálida pelos dias trancafiados e torturado. Os cortes superficiais a vista...

Cobriu-o, sentindo-se desesperado com aquela visão.

Ele próprio estava instável.

Talvez fosse essa instabilidade que ligava-o tanto a Ana.

Pensou em retribuir o que ela fizera. Pensou em tudo que poderia fazer com ela, e em todas as formas de tortura que conhecia, e que nunca utilizara. Pensou na primeira vez que matou um humano, e em todas os autaríanos que matara. Pensou em como Ana era humana e pensou em sua própria culpa.

Pensou em seus outros companheiros de equipe e desistiu.

Ele não era assim.

Depois de bem tratado, alimentado e com uma aparência mais agradável, Ras’Shire lhe contou sobre aquela noite. Ele tinha ciência que o metal de suas armas eram prejudiciais aos humanos, porque ele próprio já machucara um Explorador. Um parceiro de Dilian, a última vez que ele viera. Contou que esse era o seu medo desde que Kilian aparecera, que fosse condenado pelo Julgamento dos filhos da floresta.

Kilian lembrou-se que mais um morrera naquela missão, além de seu irmão.

— O Julgamento ocorrera para culpar sua espécie pelos erros cometidos pelos seus antecessores. Pelos outros Exploradores depois de Dilian.

— Esse planeta é considerado inabitável pela Base. Por que isso? — Era uma pergunta que se fizera desde que chegara e vira todo o verde e toda a vida existente naquele lugar.

— Dilian providenciou isso para que ficássemos longe dos outros planetas. Para que continuássemos com nossa forma de viver, sem termos de ser dominados ou dominantes. — Kilian se jogou contra a poltrona, encarando o céu lá fora, com uma sensação amarga na garganta. Dilian fizera tanta coisa e ele só se preocupando em desvendar a morte de seu irmão.

E trouxera os Exploradores de volta para a terra que seu irmão queria manter pura.

— Ele deixou algo para você. Sabia que viria aqui. — Encarou-o surpreso. Ras’Shire tinha os verdes felinos mais encantadores que já vira, mesmo que seus olhos ainda estivessem inchados. — Mas precisamos voltar. Você precisa provar para o conselho que é inocente.

Assentiu, ingenuamente. Nem prestara atenção nas palavras, e sim naqueles olhos.

Era por isso que Dilian o amara.

Sentou-se ao seu lado na cama, deitando-se sobre o corpo de Ras’Shire. Os lábios se encontraram e ele sentiu a pele rachada deles, pela tortura sofrida. Ouviu o gemido e sentiu os braços apertarem-no para perto.

E era um beijo calmo, um que nunca compartilhara com Ana.

Ele entendia porque Dilian amara Ras’Shire, porque ele nunca iria conhecer um ser tão amável quanto aquele filho da floresta.

...

— Enfrentar o julgamento foi algo duro. Com Ras’Shire torturado daquela forma, os filhos da floresta queriam que eu fosse culpado. Não sei como consegui convencê-los do contrário. Nem com a voz de Ras’Shire ao meu lado foi fácil. — Kilian ainda estava deitado, os braços atrás da cabeça. Ele soltou uma risada, quase irônica. — Eu sei sim porque não fui julgado culpado. Eu ainda podia ver aquele leve brilho exalar das pessoas. O mesmo brilho que via quando estava com o pingente de Sumir. Isso é uma dádiva que eu ganhei da minha experiência quase morte. Que eu desenvolvi em contato com a árvore da vida. Segundo os filhos da floresta, eu agora era um escolhido.

Kilian ainda tinha um leve sorriso no rosto. Recebera todo seu material de volta, que Ras’Shire escondera, e um disco de metal que sabia conter a última mensagem de seu irmão.

As palavras de Ras’Shire voltaram a rondar sua mente “— Ele sabia que ia morrer. Estava preparado para isso. Fazia parte de te treinar, Kilian”.

Essa parte ele nunca pronunciou para Emir. Não era necessário. Muitas coisas foram omitidas durante sua vida e ele decidira omitir muitas outras.

Emir nunca entenderia o que era ser um escolhido.


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