Apóstolos de Pedra escrita por Alec Silva


Capítulo 4
A desolação da longevidade




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— Quanto tempo, moça! — exclamou o velho, ajeitando o toco de charuto na boca.

O tempo havia passado para ele, que não era mais aquele rapaz que ouvia canções de Elvis Presley ou se preocupada com as baladinhas; não era aquele sujeito que atuou de forma significativa em algumas guerras que não eram suas, buscando aventuras para uma alma rebelde; e não tinha mais a beleza que cativou uma imortal, que o presenteou com mais anos do que deveria ter. Para ela, contudo, era como se não tivesse se passado um minuto sequer; e era um fardo doloroso que Camile carregava e suportava cada vez que confrontava aquilo que desejava apenas deixar para trás.

— Cumpriu mesmo sua promessa de permanecer no Brasil, hein? — comentou a garota, sorrindo meigamente.

— Com aquela fortuna que me deixou, ainda tinha dúvidas? — retrucou ele, gargalhando e tossindo.

— Fico feliz que esteja por perto, pois preciso de um favor seu.

— Lacônica, como sempre.

— A imortalidade nos ajuda a ser bem objetivos, às vezes.

O velho se ajeitou na poltrona, olhando as paredes cobertas de fotografias de diversas épocas e lugares; o brilho semimorto no olhar era de saudosismo.

— Quando soube que você era imortal, invejei-a muito — confessou, pondo o charuto no cinzeiro. — Pensei que seria bacana ter tantos anos, desfrutar as coisas boas da vida e todas aquelas bobagens que você deve imaginar. E fiquei contente quando me disse que poderia me dar algumas décadas a mais para desfrutar a vida como bem entendesse.

Ele esboçou um sorriso amarelo.

— Eu o adverti que a longevidade é desesperadora — falou Camile, compreendendo o ponto que o antigo amante queria chegar. — Pedi que pensasse bem se queria mesmo viver mais do que deveria, se aguentaria o fardo de ver quem estimava morrer antes de você. Lembra?

— Lembro.

— E o que você me respondeu?

— Que eu aceitava o preço que fosse.

— Pelo que lembro também, não lhe resta mais do que dez anos pela frente. Seu corpo não vai suportar mais do que isso.

A longevidade dada àquele homem era limitada; por ser um ser humano normal, com um corpo natural, sem traços de artemagia ou capacidade de se renovar num ritmo acima de qualquer mediana, o presente dado por Camile retardou o envelhecimento ao máximo, porém os efeitos do tempo vieram ainda assim. Até os setenta anos, aparentava ter não mais do que quarenta, época em que ganhou os anos a mais; aos noventa, impotência sexual, lapsos de memória, doenças e depressão; tentou se matar algumas vezes, de maneiras diversas — afogamento, enforcamento, tiro na cabeça, envenenamento, asfixia, acidente de carro, hemorragia —, mas nada funcionava e ele apenas ganhava cicatrizes e algumas enfermidades que logo se curavam. Enquanto o tempo dado não acabasse, era um imortal.

— Você quer minha ajuda, não? — o velho mudou de assunto, contendo as emoções que o dominavam.

— Sim, quero — respondeu a garota, identificando os sinais de frustração do interlocutor. — Como bem sabe, há muitas coisas, criaturas inomináveis e lugares ocultos aos olhos da humanidade e dos mais fanáticos conspiradores, segredos tão antigos que talvez apenas eu conheça. Enfim, há um grupo de entidades que necessita de mim, dos meus conhecimentos arcaicos, para encontrar templos de civilizações que deixaram de existir há milhares de anos. E o transporte convencional, até onde sei, não é uma boa ideia por causa da aparência deles; por isso preciso de sua ajuda, pois você conhece o submundo também, o qual possui meios de fornecer mercenários que não nos questionem sobre as viagens ou sobre quem somos.

— Certamente. Só que não será algo muito barato.

— Valores não me importam, desde que possam cumprir o itinerário, tanto no Brasil quanto fora dele, por muitos dias.

Quando era exigido, Camile adotava um tom frio o bastante para se impor e conseguir o que queria; não era algo que apreciava fazer, mas o fez naquele momento, quando detectou o comportamento inicialmente agressivo do velho amante. Seus olhos negros brilhavam com intensidade, realçando aquela postura autoritária.

— Até amanhã terei feito todas as ligações para providenciar os mercenários — falou o velho, pegando um novo charuto.

— Agradeço imensamente — replicou a imortal, sorrindo com sinceridade. — E prometo voltar, quando achar um meio de abreviar os anos que lhe faltam.

— É possível?

Ele se mostrou bastante surpreso e interessado num segundo apenas.

— Se existe um meio de passar anos para você, há como tirá-los igualmente de você. Só não sei ainda como, mas posso tentar, se é o que quer. Não é uma promessa nem uma certeza, mas não me custa tempo algum buscar isso.

Aquilo fez o anfitrião esboçar um sorriso largo e trêmulo; ele acendeu o isqueiro sobrevivente de muitas guerras, marcado por histórias de batalhas, mortes e trapaças, levando a chama ao charuto, tragando com prazer um pouco de veneno. Câncer de pulmões era um privilégio que desconhecia.

— Você e seus amigos têm algum local para passar a noite? — perguntou.

— Eles estão aqui perto, escondidos em armazéns abandonados. Voltarei para lá e aguardarei o prazo que me deu.

— Certo, moça, certo.

Quando Camile acabou de relatar o encontro e a conversa com o velho conhecido, os dois ouvintes tinham chegado à mesma conclusão que ela: foi um erro gravíssimo ter ido até ele, pois os Apóstatas haviam feito contato, talvez anos antes, e oferecido a sonhada morte que o humano desejava em troca de informações sobre a imortal. Fugir não seria uma alternativa e tampouco era favorável aos planos deles permanecer ali, aguardando uma invasão. Apenas Niciel possuía armas; Salém era forte o suficiente para combater vários oponentes, mas não por um tempo prolongado; e Camile aparentemente não mataria o mais fraco dos seguidores da Apostasia.

— Cometi um erro — admitiu a garota, arfando. — Viajamos com dificuldades até aqui para sermos traídos e entregues a eles sem nem ao menos termos alcançado o começo da tarefa que vocês me pediram ajuda.

— Ao menos temos um aprendizado, não? — consolou o metamorfo, tocando o ombro dela.

— Se um dia reencontrá-lo, juro que o farei se arrepender de ter me traído.

O sentimento de ódio que um imortal carregava era tão duradouro quanto a sua existência; e Camile evitava senti-lo, pois era quando perdia o controle de si e acabava cometendo atos que viria se arrepender. Havia, num passado não muito distante, agido tomada por ira e desejo de vingança — e amargava a culpa pela maioria desses ímpetos irados. Algo, entretanto, alertava que naquela ocasião não teria o menor arrependimento.

— O plano é ficar e lutar ou fugir e lutar? — perguntou o híbrido, fitando o rosto pétreo e severo do Apóstolo.

— Ficaremos e lutaremos — respondeu o outro, com um leve sorriso. — Em breve um de meus companheiros estará conosco, para a festividade. Se dermos sorte, ele nos ajuda a vencer os Apóstatas e ir atrás do traidor.

— Quem dos seis?

— Isso não sei, mas recebi um aviso fraquíssimo de um aqui por perto. Espero que tenha captado nossa atual circunstância.

Salém olhou para as sacolas plásticas que a imortal trouxera; faminto, não fez muita cerimônia para fuçá-las e encontrar algo para comer; pegou alguns pães e uma caneca cheia de café, sentando-se sobre um enorme bloco de cimento. Dentre as formas possíveis para sua natureza, adotou a mais próxima da humana — como um rapaz com os pelos negros e curtos, traços felinos mesclados aos de um adolescente —, revelando ser bonito, apesar de ser um híbrido.

Camile pegou o pedaço de torta de chocolate com cobertura de chantilly e cerejas cristalizadas, retirando o plástico que o protegia; encontrou um garfo descartável e provou um pouco. Ela tinha uma queda por sabores doces, tendo provado de quase tudo, em diferentes lugares e épocas, acompanhado a evolução da alimentação humana, encontrando prazeres pequeninos que a motivavam a não surtar diante da longa existência.

— Oh, a vida é boa — suspirou ela, sorrindo com meiguice e fitando Niciel, o único ali que não necessitava de sono, alimentos, água ou descanso.

O Apóstolo assentiu, antes de se acomodar sobre uma escada metálica e contemplar a parte vazia do armazém em que estavam escondidos. A turquesa pelo corpo e olhos não emitia brilho algum, ostentando uma opacidade sinistra.

A espera foi longa.

Como tinha um ou dois livros que não lera, a garota o fez aproveitando a pouca luz disponível; parava vez ou outra ao ouvir ruídos exteriores, sons comuns de uma longa madrugada; olhava para os dois companheiros — o metamorfo dormiu em vários momentos, assumindo a forma menor, aquela que manteve por tantos anos quando a espionava —, que a avisavam com um olhar de que estava tudo bem ainda. Quando sentiu sono, Salém assumiu a forma de imenso jaguar e ofereceu-se como almofada.

— Não sou tão fofo quanto sua cama — complementou, com a voz potente —, mas posso oferecer um pouco de calor e conforto.

Ela não recusou; deitou-se sobre o dorso animal, que ronronou um pouco alto antes de se ajeitar melhor, habituando-se com o peso do corpo pequeno da imortal.

Niciel observou a cena, achando curioso a relação afetuosa que Camile havia nutrido com aquele ser; não ficou zangada por ser espionada em sua intimidade e tampouco procurou saber os reais motivos de tal invasão de privacidade. Ele, contudo, estava intrigado com o interesse dos clãs de artemagos naquilo tudo; não desconfiava de más intenções, e sim de alguma coisa que estava ainda oculta de seu conhecimento, mas não tardaria a aparecer, restando apenas ter paciência, muita paciência.

Os dois adormeceram logo; estavam cansados da viagem até ali, e faria bem para eles algumas poucas horas de sono. Nem um nem outro estava preparado para o que estava por vir; na verdade, nem o Apóstolo que vigiava o armazém imaginava o que enfrentariam para deter a Apostasia e destruir os templos; ou quais os planos por trás do desejo dos inimigos de se apossarem desses locais sagrados.

Era quase nascer do sol quando aconteceu o ataque.

As orelhas de Salém se mexeram antes de a cabeça felina se levantar e os olhos amarelos encararem o aliado, que já estava com ambas espadas maiores em punho, mas ainda sentado; movendo sutilmente, acordou a garota imortal, sussurrando devagar sobre a presença de intrusos. Ela caiu pro lado, terminando de se despertar, enquanto o metamorfo assumia a forma híbrida mais animalesca: esguio, com quase dois metros de altura, bípede e monstruoso, tal como um lobisomem seria.

— Qual é o plano, Estátua? — perguntou ele, após pular para perto do Apóstolo.

— Sente o cheiro de pólvora e metal se aquecendo?

— Pólvora, sim.

— Humanos e Apóstatas juntos. Você cuida dos humanos; eles estão com armas de fogo, metralhadoras, pistolas, revólveres e fuzis, além de granadas. Ajudarei quando e se puder. Portanto, desvie dos projéteis.

O híbrido nada pronunciou. Cerrou os punhos, ansiando praticar alguns golpes há muito aprendidos num intensivo treinamento.

No lado externo, trinta e seis homens, mercenários contratados pelo traidor, iam se espalhando por pontos estratégicos, posicionando-se conforme as armas que portavam: atiradores em pontos mais elevados, com rifles, fuzis e metralhadoras; o grupo de assalto, pouco mais numeroso do que o primeiro, portavam fuzis, submetralhadoras e lançadores de granadas; e a terceira equipe era a mais extraordinária possível, pois era formada por cinco guerreiros de metal e fogo, cada um acompanhado por feras monstruosas e híbridas, jamais antes vistas por olhos contemporâneos. Os animais eram enormes, quase do tamanho de um touro; corpos felinos, possuíam escamas duras e salientes semelhantes aos de crocodilos, apesar de alguns tufos de pelos avermelhados pelo pescoço, ponta da cauda e barriga; eram meio leões, meio répteis, criaturas há muito tidas como extintas até mesmo pelos artemagos que estudaram e catalogaram cada ser vivente, natural ou sobrenatural.

Com um gesto, um dos Apóstatas, que portava apenas uma espingarda de repetição, gesticulou aos demais, que entenderam a tática que seria adotada naquela invasão; fitando o felino-réptil que o acompanhava, acariciou os poucos pelos de sua juba horrenda, pensando em como detestava aquela aliança entre a Apostasia e humanos.

O grupo de assalto entrou por uma porta, em fila indiana, espalhando-se pelo local, checando os pontos e buscando os alvos; dois deveriam ser neutralizados, mortos sem qualquer hesitação, e um, a garota, levado para o líder daquela raça de seres metálicos. Não parecia um plano complicado, visto que os mercenários estavam bem armados e com o apoio sobrenatural; e mantiveram tal pensamento até o primeiro ataque.

Rápido, fulminante e mortal, Salém pulou sobre dois deles, que estavam próximos um do outro, cortando gargantas e quebrando ossos do pescoço; antes que os demais pudessem apontar suas armas nele, saltou para as sombras, fechando os olhos, tornando-se quase invisível. Sem barulho, escapou da saraivada de balas jogando-se para dentro de um buraco no chão; caiu sobre algo relativamente macio, ergueu-se, correu por um túnel estreito e saiu de novo entre os mercenários, matando quase o dobro na segunda investida. E repetiu a fuga, satisfeito por ainda se lembrar de boa parte das manobras de combate de seu povo.

— Alguém, pelo amor de Deus, mate esse filho da puta?! — berrou um dos homens, dirigindo-se aos atiradores.

Embora estivessem em pontos favoráveis para a visão, a agilidade do metamorfo era acima das habilidades de tiro dos atiradores; tudo o que restavam a eles era tentar a sorte, mirando em qualquer sombra que se movesse ou disparar sem ter alvo determinado, pondo em risco os companheiros dentro do armazém. Os Apóstatas, constatando a estupidez dos humanos, agiram: cada um entrou pelas vidraças e portas, enquanto os enormes leões reptilianos saltavam o velho telhado ou arrebentavam as paredes, revelando grande força e resistência. Um deles avistou Salém entre a penumbra e apontou as pistolas, porém não disparou nenhuma delas.

Niciel avançou contra o líder da missão, que bloqueou a investida com a espingarda; os outros dispararam algumas vezes, mas sem acertá-lo, o que possibilitou ao Apóstolo sacar a quama e dispará-la na cabeça do que queria matar o metamorfo. Quando o metal da arma se enterrou quase toda no crânio do alvo, este se desfez em fragmentos irregulares, caindo com estrondo no piso metálico. Voltando a atenção ao oponente mais próximo, que se preparava para uma manobra de contra-ataque, o guerreiro otomano sacou a yataghan, usando-a para golpear o braço livre do Apóstata; com o corte, o membro decepado se transformou em estilhaços.

Enquanto o aliado cuidava dos inimigos mais fortes, o híbrido continuava a matança lá embaixo, saltando sobre os mercenários, torcendo pescoços e rasgando carne; ágil e fatal, desviava das facas e disparos de armas menores com malabarismos, distribuindo socos e chutes tão poderosos que quebravam ossos e arremessavam os humanos para longe. Num breve descuido, uma lâmina cortou suas costas, o que o fez se virar e rasgar o rosto do agressor, de baixo para cima, destroçando a mandíbula inferior, que se partiu em meio à uma hemorragia sem fim.

Ao concluir sua parte, Salém saltou para cima, vislumbrando outro Apóstata ser reduzido a fragmentos metálicos; sem se descuidar outra vez, conseguiu escapar da fera que emergiu de algum lugar, com a bocarra aberta, jogando-se para o lado e caindo sobre uma pilha de sacos imundos. Pondo-se de pé, encarou o animal, cuja língua escura sibilava com a de um ofídio; exibiu os dentes alvos em resposta, como um gato arisco, pressentindo os companheiros daquele monstro mamífero-réptil.

Lutando contra três oponentes, Niciel usava ambas as espadas maiores, bloqueando os golpes e se esquivando dos tiros de pistolas; embora preferissem armas de fogo, as habilidades de luta dos seguidores da Apostasia eram do mesmo nível do Apóstolo, o que tornava o combate levemente desfavorável para ele, que começava a apanhar mais do que bater. O Apóstolo ainda conseguiu escapar de algumas investidas, cravando a saif no piso e agarrando a quama, que foi arremessada para o metamorfo, que a pegou no ar e degolou uma das criaturas felino-reptilianas antes que fosse abocanhado; ágil, voltou toda a atenção para o combate que travava.

Os quatro animais cercaram o jovem híbrido, rugindo e sibilando, mesclando sons de leões, crocodilos e víboras; serpenteavam as caudas, que se assemelhavam a de lagartos, apesar dos tufos nas pontas, enquanto os olhos amarelados, em pupilas esverdeadas e verticais, fixavam-se naquele garoto de natureza ímpar. A lâmina artemágica da arma brilhava sob a mais tênue amostra de luz; o sangue rubro que escorria por ela e sujava os pelos negros de seu manipulador gotejava pesadamente de encontro ao chão de tábuas grossas. E aquela energia era sentida pelas feras, que foram forjadas, em tempos imemoráveis, de testes para aperfeiçoar o parco conhecimento sobre seu uso.

Quando o primeiro leão-draconado saltou, rugindo enfurecidamente, Salém fez um movimento ligeiro, deixando a quama à frente do corpo; o corte foi devastador, rasgando carne e ossos com extrema facilidade. Movendo-se para o lado, ouviu o corpo mutilado do oponente tombar em meio a uma poça de sangue, em agonia moribunda, quase ao lado do primeiro, com a garganta cortada.

Niciel havia conseguido vencer outro Apóstata, porém foi chutado com violência para baixo, caindo sobre uma quantidade imensa de entulho. Levantou-se num pulo, girando a yataghan e golpeando o adversário que caía ao seu lado; não o matou de imediato, mas desarmou-o de uma das pistolas com munição pela metade. Esquivando-se de uma baioneta, dobrou o joelho esquerdo e se jogou para frente, acertando a coxa do agressor, no mesmo instante que a lâmina voltada para frente da yataghan eliminava o outro atacante, que se preparava para disparar em sua cabeça.

Salém corria e pulava de um lado, perseguido pelos dois leões reptilianos que restaram; ao escalar uma pilastra, tendo a quama em punho, observou o lado externo, vislumbrando objetos estranhos voarem pelo ar, em ritmo frenético; não pôde ver o que eram bem para onde iam e vinham, pois um dos animais se jogou com força contra a coluna, exigindo sua atenção. Olhando a fera que rosnava e babava metros abaixo, ele se jogou sobre seu dorso, cravando a lâmina na cabeça; saltou pro lado, escapando da última ainda viva; sem a arma, teria de matá-la com as mãos vazias, confiando nas garras retráteis, que expôs ao mesmo tempo que exibia os dentes alvos de gato.

O Apóstolo decapitou o Apóstata restante, voltando os olhos de turquesa para fora; sorriria, se pudesse, ao identificar quem eliminou os atiradores espalhados no prédio ao lado. Olhou para onde o metamorfo socava e agarrava o leão-draconado, desviando-se das mordidas poderosas que o animal tentava dar; admirou-se com a determinação naquele garoto, que não desista de completar a chave-de-braço, prendendo o pescoço volumoso do oponente entre os braços.

Quando o híbrido conseguiu fechar o golpe, apertou tanto que sentiu mais dor do que o monstro que tentava abater; forçando o corpo para o lado, caiu e derrubou-o junto, suportando a agitação desesperada. A cauda da criatura chicoteou o ar duas ou três vezes, querendo se soltar de Salém, contudo este se manteve firme, ouvindo os rugidos cada vez mais fracos até não restarem mais que miados.

— Se eu o largar, nem ouse me ferir, entendido? — sussurrou no ouvido do leão. — Eu sou seu mestre agora e você me deve sua vida. Seus companheiros estão mortos, assim como seus antigos senhores. Agora, deixando que você viva, sou seu companheiro e seu senhor.

E foi afrouxando aos poucos a pressão; ao se sentir livre, o animal respirou com urgência e ruído, contraindo e, em seguida, relaxando os músculos; arrastou-se um pouco para se afastar, posicionando-se de maneira a encarar aquele que poderia ter retirado seu direito de viver. Curvou a cabeça, cansado, aceitando a oferta.

— Camile — chamou Niciel, pulando para baixo, erguendo poeira e causando estrondo —, acabou.

A garota saiu de um canto escuro, onde assistiu parte das lutas ocorridas embaixo; era um local bem seguro — e ainda que não fosse, em nada representaria perigo à sua imortalidade. Ela olhou para os cadáveres distribuídos por todos os lados, as vísceras e o sangue abundante; fazia tanto tempo que viu cenas parecidas; estava as deixando bem guardadas antes daquilo. Depois fitou o guerreiro de pedra, que limpava as lâminas e as guardava nas bainhas, antes de se dirigir para o leão com a quama presa à cabeça; o seu protetor, ainda deitado ao chão, ofegante, o peito subindo e descendo com fúria; e a fera vencida, que a ignorou.

— Onftiel veio em boa hora — falou, voltando a olhar o Apóstolo.

— Ela sempre vem em boa hora — replicou ele, retirando a quama do crânio do animal. — E o que pretende fazer? Perdemos uma aliança.

— Eu dei, eu tomo.

Niciel compreendeu a frase lacônica.

— Garoto, recupere-se logo! — exclamou uma voz feminina e grave. — Temos mais batalhas pela frente!

Onftiel era uma Apóstolo predominantemente australiana: seminua, apenas algumas tiras do que parecia ser couro cobriam os mamilos dos seios pequenos, além de prender os três pares de bumerangues que ela usava, e um tipo de saia, feita com penas de uma ave inexistente na Terra, cujas cores mesclavam tons sombrios e frios — azul, cinza e preto. O maior par de armas, com setenta e três centímetros, ficava presos às costas, num complexo de nós que o mantinho firme, mas facilmente acessível, caso precisasse ser usado; eram os principais instrumentos de combate, sendo um usado como gancho para enroscar escudos ou armas dos adversários, puxar para frente, girar o corpo e acertá-lo com o outro — ou como duas clavas que podiam também perfurar e fraturar ossos. O com setenta e cinco centímetros ficava nas laterais de seu corpo esguio; possuía ângulo acentuado e símbolos que retratavam as origens e a língua dos que vieram antes dos Apóstolos; o uso era típico: ser arremessado contra oponentes ou alvo específicos, sem a intenção de matá-los quase sempre. E o menor, quatro centímetros a menos que o anterior, era o mais mortal: convexo, uma vez arremessado, cortava e serrava sem chances de sobrevivência à vítima; e permaneciam amarrados às coxas dela, que naquele momento estavam machadas de sangue.

— A Apostasia está vindo para cá — notificou, caminhando até o companheiro de credo. — Um pequeno exército, eu posso afirmar. Precisamos nos locomover e rumar para o templo. E proteger a imortal.

— Uma hora com o traidor — disse Camile, séria. — É tudo o que preciso para consertar a merda que fiz. Uma hora.

— Tem certeza de que quer fazer isso? — perguntou Niciel, tentando encontrar na expressão da garota algum sinal de hesitação.

— Sim.

Os olhos de jaspe — vermelho com listras amarelas — de Onftiel encararam o companheiro; enquanto o líder do Apostolado não retornasse, cabia à ele tomar as decisões, por ser sua vez de assumir a vigília e observar a ordem natural do mundo.

— Uma hora e nada mais — sentenciou Niciel.


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