" Cinza. "

Foi o primeiro pensamento de Lince ao olhar para a janela pela primeira vez após ser informado de que estavam chegando ao seu novo lar. Mas, dizem que lar é onde o seu coração está, e no momento, o que o coração do jovem queria era somente ficar sozinho, em algum canto isolado e não tão cinzento quanto o céu daquela manhã. Ah, e é claro, sem a pessoa que estava no banco da frente.

O garoto de dezesseis anos suspirou ao abaixar a cabeça novamente, encarando os joelhos cobertos pelo jeans escuro e o chão empoeirado do carro.

" Ainda não sei como é que ele conseguiu este carro... "

Lince avistou a placa de " Bem Vindo " da cidade, e se lembrou de imediato da última cidade que passara. E depois da anterior. Ao todo, já havia morado em três casas, em três lugares completamente diferentes. A primeira sempre lhe fora a melhor, sempre lhe dera as melhores lembranças de sua infância, mas por um lado, fora a que ele presenciou algo que desejaria nunca ter visto.

A segunda, fora uma que lhe atormentou por muito tempo. O bullying era forte, volta e meia aparecia com machucados de brigas em que não reagia, mas também fora o lugar onde conseguira se vingar pela primeira vez, até que sentiu o peso da culpa, o martelando cada vez mais forte, com a comparação entre ele e a pessoa que mais detestava.

A terceira parecia anunciar uma certa esperança, pois seus vizinhos eram calmos, educados e pelo menos agora ele era apenas ignorado, porque não pertencia aos " altos padrões " e regras daquele ambiente. Mas, a polícia de lá parecia ter algo contra o seu pai, e, não passaram nem dois anos naquele local, quando já procuravam outro lugar para viver.

Agora, com dezesseis anos completos, Lince se encontrava diante de um novo lugar. Novas pessoas, e...Uma nova casa, que ele por sinal detestara.

–Então é aqui que vamos morar ? Não podia arrumar nada melhor ? -Disse ao largar uma caixa no chão empoeirado e observando as paredes cor abacate podre que descascavam.

Se locomoveu pelo local apertado que deveria apelidar inadequadamente de cozinha, olhando o cinza enferrujado da pia, até que algo passou rápido pelo seu pé. Deu um passo para trás com o susto, mas logo descobriu o que era, ao ver o longo rabo pelado sumir em meio a um buraco na parede.

–E ainda tem ratos ?!

–Foi o que pude fazer. Você deveria agradecer. -Disse o pai, se espremendo em meio ao estreito espaço que separava a pia e os armários de uma pequena bancada no centro do lugar.

–Agradecer por ser arrastado para becos como esse por um fora da lei ? Tá legal, se essa é a sua imagem de uma boa vida. -Ironizou, e já ia se virando de costas para a figura paterna e dar o fora do local que ficara mais apertado, quando seguram o seu pulso.

–Escuta aqui moleque. Aprenda a ter mais respeito comigo ! Se não fosse por mim, você estaria até hoje em um orfanato !

–Eu iria preferir ser órfão do que viver assim ! E vou te tratar com a mesma educação com que você tratou a minha mãe ! -Disse em um tom elevado, soltando-se com violência, e cuspindo cada palavra com raiva, na cara do pai. -Seu infeliz !

TAP !

Virou o rosto para o lado esquerdo, com o tapa que acabara de levar. Sem perder a raiva, lançou um olhar fuzilador para o rosto paterno, que se encontrava vermelho de fúria.

–Saiba se colocar em seu lugar, pivete.

–Se cada um soubesse em que lugar deveria estar, você já estaria mofando na prisão.

Encarou o homem uma outra vez, e saiu do lugar pisando forte, xingando mentalmente tudo e todos em sua vida. Queria fugir, sair para algum lugar e não voltar até que se acalmasse, ou, se fosse possível, simplesmente não voltar.

Mas, parou em frente a porta da sala, a mão já na maçaneta que um dia, supôs, fora dourada.

Para onde iria ? Não conhecia nada daquela cidade.

Suspirou, xingando mentalmente o mundo novamente, e se voltou para a sala. Deu dois passos rápidos e raivosos antes de se jogar no sofá cinzento e sujo, que fez um barulho ao sentir o peso do garoto.

–Já perdeu a marra ? Amanhã você vai pra escola nova. -Escutou a voz paterna, vinda de algum outro cômodo próximo.

Lince revirou os olhos e bufou.

" Odeio a minha vida. " Pensou revoltado.

( ... ) No dia seguinte...

Risos. Conversas. Brincadeiras.

" Eu sou um completo estranho aqui. " Pensou Lince, encarando o pátio repleto de adolescentes que iam e viam com seus colegas.

Fora deixado lá por seu pai não havia mais de dois minutos, mas já detestava o local. Em todas as escolas que passara, nunca tivera nenhuma amizade ou algum grupo. Quando não era excluído, era aquele tipo de pessoa mais fraca que apanha durante os intervalos.

Começou a andar em direção as portas, sentindo alguns olharem queimarem em sua nuca. Olhava discretamente para os lados, conseguindo captar os esteriótipos de cada grupinho por qual passava. Atletas, que lhe olharam e riram, provavelmente falando da sua falta de músculos em comparação a eles ; Patricinhas e líderes de torcida, que o ignoraram completamente, continuando a conversar com suas vozes agudas e irritantes que só sabia pronunciar futilidades como maquiagens, roupas, capitães de time e por aí vai ; Nerds, que só o observaram por dois segundos, antes de voltarem para seus livros e anotações, provavelmente já o analisaram para saber que se tratava de uma pessoa com um QI não aceitável para seu grupo ; Góticos e roqueiros, que o analisaram com um pequeno interesse, até perceberem a cor do seu casaco e a sua falta de piercings, para voltarem a sua vida negra e deprimente cheia de heavy metal e etc.

Entrou no corredor principal, lendo mais uma vez o pequeno papel que lhe fora dado com o número do seu armário, e procurando o mesmo.

" Primeiro dia, aí vamos nós. " Pensou ao abrir o seu armário e se deparando com um papel colado na porta do mesmo, com os seus horários.

Releu por várias vezes o papel, com esperança de estar errado, mas não estava. Seu primeiro dia, ou melhor, fracasso, começaria com algo em que com certeza não conseguiria fugir de mais olhares e comentários. Educação Física.

" Oh, vida...Tinha mesmo que começar com o pior ? "