O Basileu. escrita por Janice Nagell


Capítulo 1
Capítulo I


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura. Não mais digo porque a opinião do que se seguirá fica por vossa conta.



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O BASILEU

CAPÍTULO I

Existem causas não reveladas com as quais somente sonha o gênero humano, e que desafiam todo o contingente filosófico, científico, coordenado para explicar a procedência lógica dos movimentos da natureza. O homem sensato busca, com toda arte, justificar racionalmente os eventos desusuais que perturbam-lhe a vida ordinária, até que em um determinado dia, sem que nisso houvessem lho dado o direito de consulta, um espírito malogrado, um demônio que seja, esgueira-se ao mais recôndito de sua tenda e expõe-o á fatos cuja compreensão não se alcança senão por uma doutrina do absurdo.
Após a brigada militar no Afeganistão, estabeleci-me em uma habitação demasiado agradável em Londres que me concedera o oficialato, de forma que as eventuais visitas á óperas, cafés, clubes, e á todos estes caprichos nascidos da civilização européia me eram facilitadas, e observei que aí residia a chance de integrar-me novamente á uma existência trivial. Com muito gosto frequentava os cafés e os teatros, sobretudo; Parecia-me que minha alma padecia de fomes tenazes por entretenimento, e que eu havia de abismar-me em tudo que cantava, que tocava, que dançava, para que não se me fosse subtraído o fôlego vital.
Londres estava mais fuliginosa do que quaisquer recordações poderiam sugerir, mergulhava-se cada vez mais em tons púrpura e de ferro, a modernização decerto havia destinado a cidade a tornar-se uma dama industrial. O meu logradouro situa-se em tal privilégio que não deixa mais a saber, contudo, a julgar pelos vapores do subúrbio que evolam ao firmamento no período da tarde, o ar em alguns lugares da metrópole deve ser totalmente contrário ao desenvolvimento salubre da vida, como em alguns submundos de Paris, nos quais a aquisição mais fácil constitui um câncer.
Embora o oficialato me houvesse concedido morada, faltava-me ainda analisar os meios pelos quais manteria minha alimentação, vestuário, transporte e recreio, levando em conta o exercício de minha profissão. Um velho camarada dos tempos acadêmicos encontrara-me num dia de mercado na rua Cleveland, neste ínterim, havíamos acertado ocasião de prolongar nosso diálogo, a qual coincidiria com o concerto de Wagner no teatro de Haymarket, para onde dirigia-me uma caleche.
Dentre a multidão heterogênea que tumultuava o acesso ao teatro, aguardava-me, prontamente, um sujeito de compleição robusta, cujo cabelo alinhado e as saliências das faces coradas, levavam a crer, sem equívocos, que tratava-se de meu amigo Stamford. Sentamo-nos nos camarotes alteados, e pusemo-nos a palrear. Vogando pelos termos mais diversos, ele acertou-me o de interesse último, precisamente o que tangia o meu ofício. O exercício da medicina, segundo ele, não estava precário como eu poderia ser levado a presumir, em verdade, estava bem próspero devido ás complicações respiratórias, sobretudo do proletariado, advindas do ar poluto que costumo observar ser emanado do parque industrial.
"Se levardes em conta ainda os acidentes cotidianos nos maquinários, terás aí uma nova soma de pacientes. Tenho de remeter-me, por vezes, ao subúrbio para examinar, eu mesmo, todos estes causos." Salientou, inflamando um cachimbo, muito satisfeito consigo mesmo.
As suas baforadas de tabaco, junto ás dos charutos dos senhores e ás das cigarrilhas das madames compunham o incensório costumeiro desta ocasião a envolver nossa conversa, e nisto, resultou que entretessemo-nos com a prática mais vulgar desses eventos da corte, que é o escrutínio da vida particular.
Há algo no regozijo em ver e ser visto que me foge ao alcance da compreensão, mas que é de uma ordem tão visceral que arrisco inferir que para um vasto contingente da humanidade, este já há muito abandonou o lugar reservado ao capricho para tomar o de alimento. Retornado do oriente, eu estava como um camponês, alheio á todas as consecuções da sociedade londrina, que parecia-me diante dos olhos ter atravessado severas metamorfoses, conservando, contudo, em si uns e outros rostos antigos.
Com o auxílio de um compacto binóculo, observei a soberba entrada espaçada por duas colunas polifacéticas em gesso, sobre cada qual descansava verticalmente o corpo langue de uma estátua cujos olhos eram vendados, a segurar as candeias que proviam charmosa iluminação. Ali travava-se a convenção dos chapéus: Ora galantes cartolas, ora simples e saudosos "Bowlers", e o festim das rendas: Mimosas rosas e liláses, escarlatas dramáticas, sóbrias azuis e douradas.
"É o boticário da rua Windsor?"Perguntei ao notar um sujeito robusto envolto num casaco verde-limo a cevar um sorvete com genuíno entusiasmo.
Stamford munira-se de seu binóculo, e com uma breve análise, concluíra:"O mesmo, e ao lado jaz sua cordial esposa, a senhora Dapper."
"Quem é aquele a entrar com as duas moças?"Referi-me a um vetusto que assomava, em um casaco negro de inconfundível veludo alemão em cuja gola tramavam-se detalhes de prata. A apoiar-lhe, a bengala encrustada de uma opala na base superior, era o elemento que concluía a sua coqueteria.
"O vendeiro de Saint Albans. A soma de seus negócios pródigos por lá e de suas atividades paralelas como jurisconsulto garantem-lhe o estilo de vida sibarita que pratica"dissera o meu amigo,"e como podeis observar."
"Decerto, são suas filhas?"
"Ah, permita-me comunicar-lhe o meu profundo ceticismo quanto á isto, Watson."divertia-se Stamford,"São acompanhantes de aluguel."
"Bem",disse-lhe, conformado,"então, eis um autêntico 'flâneur', com toda a força do termo. Atualmente, é um espécime deveras recorrente na biocenose européia, não achais?"
"Deveras, Watson, deveras. Vede: Outro."
Indicava um mancebo a trajar um meio fraque azul marinho, o qual fazia uma justaposição de tons com o colete mais claro que trazia rente ao peito de Hércules. O bigode pitoresco acima dos espessos lábios e a altura elevada forneciam a impressão de um temperamento pertinaz, e a confirmação de um vigor demasiado afetado ao galanteio. Percebia-se a sua indisposição em deixar, com seus olhos de ave de rapina, escapar uma só visão adorável de mulher ou cauda de vestido, deitando beijos, quando oportuno, em inúmeras mãos formosas que se lhe apareciam; tomaria a mão da esposa do Conde Krammer se este pois se descuidasse ou se a sociedade não lho emitisse uma condenação. Ia ele como um cupido, borboletando graciosamente pelo teatro, esquadrinhar e estabelecer diálogo com as belezas que iam assomando, ou melhor, como um botânico ou jardineiro exímio a analisar, a cor, a textura e o olor das flores expostas á sua vasta perícia.
"Trata-se do Sr.Engelbert. Diz-se que também aspira á poesia, julga-a um excelente subterfúgio para se chegar ao coração das moças. Sua lira, segundo ele próprio, só canta a beleza e a alegria." Prosseguiu Stamford ao observarmos ambos a forma com que ele debruçava-se sobre as donzelas para secretar-lhes alguns verbos ao ouvido.
"Vede aquele artista da farsa. É impossível nascer a poesia do gozo abundante, tolo como unir forçosamente duas pedras com a esperança de se obter leite é crer que a poesia exige algo mais que não constitui a carne, a chaga, o remorso. De dor e ideal, é disso que ela se alimenta."Disse-lhe.
Meu companheiro ficou a contemplar-me estupefacto por um breve instante, para então arrematar:
"Quê houveras feito durante o período no Afeganistão? Leituras em Mallarmé?"Indagou, á guisa de alívio cômico, ao que um inocente sorriso debuxava-se nas suas faces roliças.
Um silêncio mais funéreo do que um cipreste instalou-se entre nós.
"Tive dias ruins, Stamford."Respondi-lhe um tanto absorvido nas longitudes memoriais evocadas por aquela questão.
"E...Não irás retornar á eclésia?"Perguntou, o receio sensível em sua voz.
Observei-o de soslaio com rápida censura, como um adulto que exproba da criança a pergunta insolente, volvendo-me a operação do binóculo afim de não gerar mais motivos para constranger-nos mutuamente.
"E aqueles, quem são?"Retomei nossas atividades d'outrora, reportando-me á dois homens e uma sexagenária que nunca dantes vira por aquelas imediações.
O primeiro, alto, nariz aquilino, tez leitosa e de arruivada cabeleira, ia á frente conduzindo os demais. A casaca e colete marrons esmeradamente alinhados que caíam-lhe com graça sobre o corpo esguio—distendendo ainda mais a impressão de sua estatura—faziam-no parecer um homem por excelência distinto. As sobrancelhas finas acima dos olhos escuros qual dois pélagos irosos mexiam-se com uma serenidade audaciosa como se num constante movimento analítico. Acompanhava-o um efebo não menos alto, contudo, decididamente mais jovem e recluso. Esguio, e fosse embora alvo, o seu perfil de neve era de um albor mineral, um branco-lua, carácter ressaltado pelo negror lustroso de sua cabeleira. Vestia-se com um meio fraque preto e sem nenhum aprumo, simplicidade quiçá proposital a qual evidenciava e erigia á uma nova potência a sua beleza pouco vulgar; isto ,todavia, não poderia ser dito com razão, posto que sua fronte a responder com leves e tímidos meneios contavam só de um coração inocente, que não havia ainda acordado para as vibrações daquele verbo sonoro, que é o do amor. A sua compleição virginal, o nariz romano e os lábios róseos e profusos carregavam inequivocadamente algo do elemento feminino e faziam-me crer que em outra existência pudesse haver constituído uma bela mulher, não que já não fosse nesta, com efeito, uma bela criatura. Ou talvez eu erro, e a natureza é sábia, e eu não haverei de sondar um átomo de seus propósitos. Contudo, a verdade era que esta mesma natureza havia pensado para aquele jovem uma refinada arquitetura, de sorte que nele tudo correspondia-se com inteligência.
"Ah, são os Holmes."Respondeu-me cuidadoso de não tropeçar nas próprias palavras, ainda sob o efeito do recente desconforto."O de casaca marrom é Mycroft Holmes, o irmão primogênito. Desde que o patriarca falecera, ele quem preside o lar, estabeleceu-se na cidade com 'um pequeno cargo no governo' como ele próprio alega, todavia, para mim, ele admite uma posição menor do que a qualidade de seu intelecto sugere. É um homem de notórias faculdades. Domina as línguas eslavas e o latim, fala francês como Hugo e o alemão como Heine, é um erudito, embora em raro mostre espírito."Contou-me Stamford,"E presumo que não conta nem vinte e cinco anos, devo acrescentar."
"Impressionante, prossiga."encorajei-o.
"O Sr.Stebbens teve oportunidade de travar relações com seu pai, ambos trabalhavam como sócios num empório de artigos do Oriente. Sujeito pragmático, talentoso para as finanças e infernalmente organizado, como dizia Stebbens, tais atributos eram largamente aproveitados na firma, ele, contudo, não era criativo, sua habilidade resumia-se á aritmética das cifras, das quais tratava com um rigor judaico. Podeis inferir a sovinice disso tudo, mas o falecido Sr.Holmes era generoso com a família, não privava sua esposa de frequentar a corte, nem de atualizar-se com a moda, enviando sempre recursos para ela e os filhos no campo."
"O mais jovem é Sherlock, recém-chegado da província onde residiu a vida toda até que o irmão o trouxesse para alinhá-lo em algum ofício na cidade, e para isso, o último preocupa-se em prover-lhe uma educação de ouro. Não completara ainda dezoito anos, não comunica-se senão por monossílabos; eu pressuponho que o faz não por maus modos ou por algum desprezo secreto, antes por donzelice. Sua procedência interiorana é pouco evidente, a não ser pela timidez, exibe uma leveza no gesto verificada em poucos da corte, e até mesmo da aristocracia."
Fitei meu amigo, impressionado.
"Creio que a introdução que aí fizeste haverá de sanar-me a curiosidade sobre eles por hora. Não vos demoraste na descrição dos outros como nestes, onde adquiriste tamanha informação?"Perguntei-lhe.
"É que sabeis, quando Londres ganha novos personagens, empolga-se e fala neles demasiado. Quando aparecerem outros mais extraordinários, ou quando eclodir um novo escândalo entre os nobres, nestes é que se falará."Explicou Stamford, razoável com as mãos nos bolsos de sua casaca xadrez.
"Falais corretamente, eu devo acatar esta vossa filosofia."
"Mesmo o vosso retorno já atrai as atenções de algumas gentes."Acrescentou.
"Falais sério?"
"Falo seríssimo."Cachimbou seu tabaco."Capitão John Watson, do Quinto Regimento de Fuzileiros de Northumberland, ferido em combate durante a Segunda Guerra Afegã, antes disso, dedicando-se ao sacerdócio em uma capela de Yorkshire, como padre. Não acreditais que é conteúdo extraordinário suficiente para mover o interesse alheio?"
"Ex-padre."Frisei.
"Como quiserdes."Ele dera de ombros.
Permiti-me contemplar os irmãos Holmes por mais algum tempo, introverso na beleza jovem daquele que atende pelo nome de Sherlock, quem era a todo tempo orientado pelo irmão mais velho no percurso até os assentos, como se este procurasse subtraí-lo sempre á sua vigilância. Próximo á ele, existia, como que antiteticamente, a figura idosa e deveras conhecida da Srtª.Dumoulin, quem há muitos anos ficara por casar devido á sua índole impossível aos homens, que não suportam uma esposa que os eclipsa nas habilidades, sobretudo, concernentes ao intelecto. Sua fronte agora rugosa, demonstrava ainda alguns vestígios de simetria e refino, qual algum fóssil ambulante de uma beleza outrora abismal. Ela sentava-se solitária em um camarote, a abanar com um leque o colo envolto em garbosos trajes verdes, os quais comportavam-se como uma extensão de sua dignidade. Ao lado, um grupo de indivíduos deviam certamente conspirar acerca da "solteirona", provando que na mocidade muito se perdoa, na velhice, nada.
Fui extraído de meus devaneios quando as candeias e o lustre do teatro apagaram-se e o prelúdio de "Percival" principiou a enriquecer pesadamente de lirismo germânico a atmosfera do Haymarket.





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Notas finais do capítulo

Se chegou até aqui, por favor, peço que diga o que achou. Sua opinião é da maior valia. ♥