45% escrita por SobPoesia


Capítulo 36
Memorias




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O dia na praia passava em tempo diferente do resto do mundo. Tudo era mais calmo, devagar e conseguimos tirar o máximo dele. Comemos nos quiosques perto da praia, tomamos água de coco e sorvete, Bruni comprou um grande chapéu, construímos um castelo de areia e a noite chegou.

Seguimos para um canto rochoso ao final da praia e montamos uma pequena fogueira. Sentamo-nos lado a lado e observamos o fogo por algum tempo.

Aquela era a despedida, não era?

—Eu posso ir a qualquer momento agora. – ele sorriu.

Sim, aquela era a maldita despedida.

—Você poderia ter ido a qualquer momento do dia inteiro, mas não foi Evans. Porque agora tem de ser diferente? – continuei concentrada no fogo, não queria olhar para a sua face uma última vez.

—Mas foi um dia bom, não acham? – 45% continuou.

—Podemos acabar com esse clima horrível, por favor? Não quero participar nisso... Nessa despedida. Vocês sabem muito bem que eu odeio despedidas. – ele abaixou a cabeça.

—Como você quer ir embora e não ganhar uma grande despedida? Você salvou o resto da minha pequena existência e a fez a mais feliz possível. Nós te amamos e queremos dizer adeus. – o observei, pelo que seria a última vez.

—Eu simplesmente não quero, Violet! Tudo tem de ser sobre você, tem de ser para você! Deixei que, pelo menos uma vez, as coisas sejam por mim e não por nós. – ele segurou a minha mão e olhou fundo nos meus olhos, pelo que seria a última vez.

Suspirei. Ele tinha razão. Eu era vadia egoísta.

—O que você quer?

—Ir para um hospital e morrer lá, sozinho. – ele suspirou.

Peguei meu telefone e abri um desses aplicativos de táxi, chamando um deles.

Bruni o abraçou, ficando naquele abraço por exatamente dois minutos. Os dois se beijaram e fui eu quem chorou. Eles tinham algo, mesmo que negassem, algo que acabaria ali.

O táxi chegou e ele se levantou, passou por mim, me abraçou, beijou a minha testa pelo que seria a última vez e saiu em lágrimas.

Ele simplesmente, saiu, entrou no carro e foi embora.

Ele foi embora.

Voltei a me sentar. Nunca havia me sentido mais perdida em toda a minha vida. Um vazio subiu pelas minhas pernas e só parou ao chegar em minha garganta, se entalando em um nó. O loiro era tudo, meu chão, meu porto seguro e, sem ele, respirar não valia mais a pena.

Ergui a minha cabeça. 45% havia retirado seus óculos, estava com a cabeça baixa, entre ambas as mãos. Chorava, copiosamente, gemia e soluçava, desesperadamente. Ela estava acabada. Ela também tinha perdido alguém.

A observei por algum tempo. Eu tinha um motivo para respirar, para viver, porque ela precisava de mim.

Andei até ela, a abracei com cuidado e ela se ajeitou em meus braços, a segurei com força. Seu choro se intensificou, era como uma cachoeira que varria todo o seu rosto em grossas lágrimas.

Achei que poderia ficar ali até que ela se acalmasse, então iriamos para o hotel e a noite acabaria. A noite tinha de acabar logo.

Meus batimentos cardíacos aceleraram e eu sabia o que ia acontecer, sabia que aquilo não estava nem próximo de acabar.

—Vou ter um ataque de pânico.

Levantei-me e fui até o mar. Sem drogas grátis de hospital, sedativos e remédios para fazer meu corpo se acalmar forçadamente, não sabia qual era o destino daquele surto, apenas que tinha de tentar muito para não perder o controle total das coisas.

Acendi um cigarro e fiquei observando o mar.

Aquele dia não esgotou meus recursos psicológicos apenas com Evans. Havia algo a mais, algo que eu precisava reprimir.

Ainda que tivesse conseguido segurar tudo durante muito tempo, agora, que o loiro tinha ido embora para sempre, tudo aquilo estava muito difícil. Existiam memórias que não poderiam chegar a superfície, mas estavam perto demais de emergir.

Fumei um cigarro inteiro, o que me fez relaxar. Bruni chegou correndo, carregando sua bolsa de praia e segurando seu chapéu. Ela parou em minha frente, jogou todas as suas coisas no chão, apontou o dedo indicador no meio do meu rosto, juntou as sobrancelhas e gritou:

—Qual é o seu problema?!

—O que? – fiz uma careta, realmente não entendia.

—O que tem de tão errado com você? Qual é o seu problema? Porque você não pode simplesmente ser uma pessoa normal com problemas normais? Você é um trem sem trilho que saí destruindo tudo o que encosta! Isso machuca! Violet, você me machuca! – sua voz aguda ecoou dentro da minha cabeça.

—Porque eu vou morrer. – suspirei.

Não, esse não era o problema.

Por deuses, eu queria estar morta, assim não teria de tentar com todas as forças segurar aquelas memórias dentro de mim como fiz. Sentia o cheiro do porão, as gotas de suor dele caindo sobre meu rosto.

Como eu queria estar morta.

Não ter passado por tudo aquilo que nenhuma garota de dez anos não deveria passar. Não ter de me esconder, me enojar com minha própria pele e meus prazeres. Não ter de fumar e fumar para esquecer o gosto amargo de tudo que ele colocou dentro da minha boca.

Como eu queria estar morta.

A morte não era o problema, era a solução, e todos estavam a tendo antes de mim.

—Nós todos vamos morrer! Você, eu e as pessoas saudáveis! Essa não é a merda da sua desculpa e eu não vou deixar que a use! Qual é a merda do seu problema?!

Ela não parava de gritar.

Como a minha irmã não parava de gritar ao fundo para que meu próprio pai parasse.

As memórias retornaram em um baque.

Um baque tão grande que me fez cair sobre meus próprios joelhos, naquela areia molhada, junto as ondas que calmas vinham tocar minhas pernas frias, magras e sem força.

Lágrimas foram arrancadas dos meus olhos pela intensidade das memórias.

Fiquei ao chão, em prantos, até que ela se abaixou, comovida, me tomou em um abraço, se sentando na areia comigo.

—Eu fui estuprada, Bruni. Várias vezes, nesta merda desta praia.


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