45% escrita por SobPoesia


Capítulo 32
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Ainda que houvesse passado a noite inteira sem a minha máquina de dormir, nunca havia estado melhor. Queria desistir de usá-la permanentemente, a falta do barulho repetitivo e de uma máscara que me impedia de me mover compensavam morrer mais rapidamente por fumaça residual dos meus amados cigarros.

A cama de solteiro fora empurrada para longe durante a noite. Dormíamos os três, Bruni, Evans e eu, nesta ordem, abraçados e apertados. O loiro era um tremendo chutador noturno, marcando nossas pernas com roxos. Toda essa ideia pode até parecer ruim, mas no inverno e com um aquecedor quebrado, preferíamos nos espremer em um ringue do que congelar sozinhas.

Em algum momento antes das dez da manhã, meu sono parou de sucumbir a dor e fui obrigada a me levantar. Coloquei a mesma calça do dia anterior e a primeira blusa de botões que achei. Queria ficar ouvindo as minhas músicas e lendo as minhas mensagens de desespero, mas meu estômago também queria algo e a sua vontade costuma ser a minha prioridade.

Pensei em compensar pela horrível tragédia que fora o nosso início de viagem, já que a culpa era inteiramente minha. Usei um aplicativo e achei uma cafeteria há dois quarteirões do nosso hotel e segui para lá. Um banquete sempre deixa tudo melhor.

Evans sempre queria um descafeinado, meu humor melhorava consideravelmente com um cappuccino cheio de creme e 45% era viciada em um chá gelado. Além de uma variedade enorme de pãezinhos com algum recheio. Tudo por um preço absurdamente baixo. Tínhamos um cronograma a seguir e tudo ficaria ótimo se começássemos o dia com aquelas compras.

Assim que cheguei no caixa, a atendente me deu um daqueles olhares estranhos que você acaba perguntando o que é, só parar ter certeza que a pessoa não está constipada e você se sentiu atingida. Passei pela minha cabeça um cenário bem rápido de tudo que podia ser, mexi em meus tubos e disse:

—É isso?

Com a cabeça baixa, ela assentiu.

Estranhei. Como aquilo poderia não ser comum? Olhei ao meu redor. Onde estavam os garotos nas cadeiras de rodas? Os sorrisos de dentes amarelos? As meninas carregando hastes de metal com soros e outros remédios pendurados e ligados em suas veias? As cabeças raspadas? As cicatrizes de cirurgias recentes? Isso – meus tubos – não eram comuns, eram?

—Eu tenho uma anomalia pulmonar. Sozinhos meus pequenos pulmões não dão conta de oxigenar meu corpo inteiro, então uso isso para me manter viva. – sorri, tentando disfarçar o quando aquilo tudo tinha me atingido bem no peito.

—Não é como em A Culpa É das Estrelas?

Bom, era. Eu e meus pulmões. Bruni e Isaac. Augustus e Evans. Todos sabiam quem morria primeiro.

—Nem todo adolescente que está morrendo tem câncer, romance ou drama. Somos só adolescentes que querem viver. – talvez não, já que eu estava bem feliz com sete palmos abaixo da terra.

A atendente assentiu novamente. Coloquei Hazel em minhas costas e segui para o hotel, carregando cafés e sacolas de papel marrom.

Mas aquilo não sairia da minha cabeça facilmente.

Dentro do hospital, tinha sobrevivido cinco anos. Era uma lenda. Vi a minha sala de aula se reconfigurar por completo em menos de meio ano letivo. Fui a mais enterros do que uma pessoa deveria ser convidada a ir. Dentro de lá, eu era a única vencedora.

Fora dele, eu era a única com uma aparência devastadoramente perdedora. Evans já não estava amarelo e 45% com seus óculos escuros escondiam a única coisa que mostrava a sua doença.

Pessoas normais seguiam suas vidas e encaram as coisas impossíveis para mim com tanta facilidade. Esse garoto passou por mim em cima de seu skate. Essa mãe correu todo o estacionamento para abraçar o seu filho, que saiu de dentro do carro do pai. Um senhor me ultrapassou. Uma garota usava uma blusa que deixava a sua barriga a mostra. Um time passou rindo, segurando sua bola. E eu? Tive de me sentar na metade do caminho porque meus pulmões ratearam, me deixando com uma leve falta de ar.

Uma garota se sentou ao meu lado e cruzou as pernas. Alta, com a pele escura e um cabelo crespo armado e amarrado em uma espécie de moicano.

—Você não deveria estar triste por não ser como eles.

—Porque? – a observei por um instante.

Seus traços rústicos, sua pele brilhante e seus olhos negros eram uma composição quase angelical de tão bela. Por segundos achei que nunca houvesse visto algo tão bonito em toda a minha vida, mas meus pulmões persistiram.

Meu pulso acelerou e pela primeira vez em toda a minha vida eu finalmente respirei. 17 anos e eu nunca soube o que era inspirar e expirar.

—Eles não vivem suas vidas plenamente. Todas essas pessoas pensam no amanhã, no futuro e sempre desconsideram que podem morrer a qualquer instante. Não sabem o que arriscar ou realmente curtir um momento antes que ele acabe, porque tudo pode ser o último segundo. Vivem 10, 20, 30, no máximo 45% de suas vidas, sem dar valor aos seus suspiros.

Seu rosto se virou  e seus olhos foram fundo em minha alma, me despindo. Sua voz rouca se infiltrou em minha cabeça.

Nunca havia sentido nada daquela forma.

Seu cheiro me excitava e qualquer palavra proferida me arrancava um suspiro.

Já sentiu saudade de uma relação que nunca teve? É um sentimento devastador e reconfortante de se conhecer algo, mas saber que nunca existiu.

Era tudo tão confuso, uma desorganização que me inundava. Como se meu coração estivesse em um liquidificador.

Suas mãos, seu decote, seus braços, suas pernas, seus pés e suas bochechas.

—Acho que sou como eles. – gaguejei.

—45% de uma vida?

—45% de uma morte.


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