45% escrita por SobPoesia


Capítulo 2
Telhado




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Antes que eu comesse a contar tudo sobre a 45%, tenho de avisar que o final dessa história não será feliz. Nenhum de nós achou a cura ou vai sair dessa vivo, então se preparem para o que está por vir.

Era um dia absurdamente normal em Saint Mary’s, tanto que até hoje eu não me recordo qual era o exato dia da semana ou do mês. O que me lembro era de estar no telhado, fumando, enquanto Evans fazia dever de casa, mesmo que a aula tivesse acabado em menos de meia hora.

—Sabia que agora tem um novo quarto livre? – ele suspirou, ainda com os olhos vidrados em seu pequeno computador, com as costas apoiadas na parede.

Evans gostava de tomar distância de mim quando fumava, algo sobre a possibilidade de se desenvolver câncer não o agradava muito. Porém o telhado não era muito grande. Eu ficava no parapeito sentada, olhando para os quatro andares de queda, tentando fazer com que a fumaça não fosse para seu rosto, enquanto ele ficava a parede ao lado da porta com seus loiros cabelos cumpridos jogados ao rosto digitando o que quer que fosse em seu pequeno computador branco de bateria infinita.

—Quem morreu? – me virei, ficando de costas para a rua.

—Porque você sempre pensa no pior? – ele levantou a cabeça, me olhando com seus profundos olhos castanhos.

—Porque eu sou uma paciente terminal. – sorri.

—Essa desculpa funciona apenas com pessoas saudáveis. – ele sorriu, mostrando como seus dentes inferiores eram tortos – Richard, o cego, foi para casa. – sua cabeça baixou para o computador novamente.

—Quem é esse? – dei minha última tragada.

—Um garoto cego que fazia trabalho conosco em química experimental. – enquanto ele falava eu apaguei o resto do cigarro no chão e joguei prédio abaixo.

—O cara que andava com uma acompanhante? – fui um pouco mais para frente, mexendo em minha mochila a procura do meu celular.

—Sim. Aparentemente ele quis ir para casa e agora teremos carne podre fresca. – Evans fechou o computador, deixou todas as suas coisas em um canto e veio se sentar ao meu lado.

—É só querer que você vai para casa agora? – continuei conversando, mas sem achar meu celular.

Evans se sentou ao meu lado e foi aí que algo perto do fatal aconteceu em câmera lenta. Ao se sentar, o loiro esbarrou em Hazel, que não estava com seus freios puxados. Meu tanque começou a lentamente andar até o grande abismo de quatro andares e eu não notei nada acontecendo pela realmente enorme extensão dos fios.

Joguei a minha mochila de lado e fui me deitar em seu ombro, mas senti um puxão no tubo, em direção ao estacionamento.

Evans notou o que estava acontecendo mais rapidamente do que eu mesma e retirou os fios presos em meu rosto com apenas um puxão e olhos arregalados. Tudo que aconteceria em seguida se passou em minha cabeça em uma fração de segundos: o tanque explodiria ao colidir com o chão e tínhamos cerca de três minutos antes que todo o meu sangue metabolizasse o resto de oxigênio que tinha em meu corpo.

Em uníssono, ambos se encarando com os olhos arregalados, gritamos:

—Três minutos!

Puxei a minha mochila, No bolso da frente, de forma solitária estava a minha bomba de asma, colocada ali para me ajudar a sobreviver a essas ocasiões sem perder a consciência. Fui colocada nas costas do loiro que correu para as escadas enquanto gritava pedindo ajuda. A cena em si era bem engraçada, mas eu não tinha tempo para rir, tinha de contar trinta segundos em minha cabeça e aspirar a bomba para que minhas fracas mãos não soltassem de seu pescoço ou eu começasse a sufocar.

Assim que chegamos ao segundo andar – o que não deve ter demorado os três minutos – fomos recebidos na escada pela nossa enfermeira que carregava uma máscara de oxigênio e um pequeno galão de ar que durava cerca de meia hora, usado em emergências. Segurei a mesma com as últimas forças que tinha e a apertei contra meu rosto.

A falta de ar me fez soar frio, enjoar e ter uma dor de cabeça insuportável. Era como uma queda de pressão em proporções desastrosas. Evans se jogou no chão rindo de forma nervosa e compulsiva.

—É um recorde!

—O que vocês dois estavam fazendo lá em cima de novo? Sabem que não temos como dar assistência e poderiam ter causado um desastre enorme se o seu tanque não tivesse batido no terceiro andar e furado! – a enfermeira nos matou com os olhos.

—Estamos morrendo, não podemos resolver isso depois? – sorri, apertando a máscara contra meu rosto, sentada no chão de forma vergonhosa, enquanto a minha voz soava fraca.

—Por incrível que pareça, a dose de adrenalina curou minha dor usual, então só você está morrendo. – Evans se sentou, tendo se controlado.

—Vão arrumar logo essa bagunça, eu não quero saber de problemas até o jantar. – a enfermeira gritou.

—Uma coisa contradiz a outra. – ironizei, um pouco cedo demais.

—Não, eu acho que ela disse para arrumarmos tudo e dormir depois. – o loiro me olhou, levando a minha brincadeira.

—Não estou lidando com crianças. – a enfermeira continuou, irritada.

—As ordens, general. – a mão de Evans fez um sinal na cabeça daqueles de exército e eu ri.

Meu riso iniciou uma compulsiva tosse e me deitei no chão frio do hospital. A enfermeira saiu, não havíamos vencido essa ainda. Fiquei deitada durante algum tempo, me recuperando, mas meus membros começaram a doer e eu sabia que câimbra significava oxigenação, então me sentei.

—Vamos buscar nossas coisas? – ele se levantou, estendendo uma mão de ajuda para mim.

—Vamos buscar outro tanque primeiro, por favor, esse aqui não vai durar muito mais do que dez minutos. – ele assentiu, me levantou e caminhamos abraçados até nosso quarto.

Carreguei meu pequeno tanque emprestado. Todos eram pequenos cilindros pratas, como garrafas de quase meio metro, mesmo que esse em específico não tivesse a metade desse tamanho. Geralmente, nas pontas haviam reguladores azuis, nos quais se colocavam os tubos que ligavam ou diretamente ao nariz como o que já se conhecesse ou aquelas máscaras horrorosas e ineficazes. Se compra um suporte à parte, que faziam com que os tanques virassem uma espécie de mochila de rodinhas, os meus tinham freios, porque eu sempre acabava destruindo meus tanques e alças para carregá-los. Sempre que eu trocava de cilindro, comprava uma cartela nova de adesivos e fazia alguns desenhos no mesmo, e eles normalmente duravam cerca de uma semana.

Fomos ao nosso quarto e pegamos um outro tanque, já decorado, que ficava embaixo da única escrivaninha que havia ali. Enquanto eu me acostumava com o ar novo e o gosto de metal, Evans subiu em uma cadeira e pegou no topo do meu armário o meu antigo suporte que tinha alças que me machucavam. Com realmente muita sorte, conseguiria recuperar meu antigo suporte.

Subimos novamente ao telhado, todas as coisas estavam da forma como as jogamos. Meu telefone sofreu um grave arranhão em sua parte de trás e era a única prova da nossa grande façanha e a única grande perda da tarde.

Mas assim que descíamos de elevador Evans gritou e eu conhecia bem a dor. Não era comum, mas às vezes ele tinha de ficar dopado para que as suas dores não o fizessem perder a cabeça. Então ele foi levado, em uma maca, para o nosso quarto.

Lá, eu arrumei todas as coisas, mas ele já estava dormindo por drogas grátis de hospital. Queria ficar ali ao seu lado, como sempre fazia, mas a nossa enfermeira me deu um ultimato para recolher a minha bagunça ao lado de fora e eu segui, com medo de quais seriam as consequências.

A grande verdade é que do lado do meu fiel escudeiro, eu era relativamente uma rebelde, mas sozinha, não me arriscaria. Sempre fui daquelas que precisa de cobertura e o loiro era o guarda-costas que eu sempre pedi para Deus.

Ainda que preocupada, segui para o segundo andar, onde tinha derrubado a minha bombinha e a achei. Segui ao terraço e fui para o lado de fora, buscar todo o meu equipamento caro, destruído.

O telhado dava para a garagem, mas todas as coisas, de alguma forma, pararam na porta de entrada. Meu tanque tinha sido transformado em um pedaço de papel, muito provavelmente por alguma ambulância assassina que agora tinha seu pinel furado, então peguei o mesmo e joguei fora. Precisei de alguma ajuda, mas desenrolei todo o meu antigo tubo de um poste, porém o sol havia o danificado e agora tudo que me restava era jogá-lo no lixo também.

O mais estranho de tudo foi ainda encontrar o meu suporte parado ao lado da porta de entrada, completamente intacto. Eu mesma o avaliei e constatei que era o meu pelas pinturas em esmalte. Uma das pequenas rodas soltou, mas não haviam perdas grandes.

Peguei o mesmo dali e o segurei, caminhando de costas. Acabei esbarrando em alguém.

Se eu fosse avisada de que ali seria o momento no qual conheceria 45%, não teria virado. Seguiria com a minha curta vida, ela seria apenas uma garota bonita em minha classe e esse seria o final da história, mas, não fui avisada.

Virei-me já pensando nas desculpas, mas assim que a vi eu queria ter tido outra parada respiratória. Fiquei boquiaberta de uma forma especialmente ridícula. 45% tinha os cabelos mais longos, mais negros e mais lisos que já vi, seu nariz era fino, assim como sua boca, mas suas feições eram maravilhosas e eu não podia ver muito além daquilo porque ela usava uns óculos aviadores gigantes cobrindo a sua maior e mais bonita característica.

—Olhe por onde anda, garota. – ela esbravejou.

—Não comece assim, é ruim. Você está entrando... Ou saindo, da minha casa. Eu até te pediria desculpas, mas não irei mais. – não era uma pessoa tímida e brincar com estranhos para aliviar o meu próprio nervosismo era algo bem particular, estava sarcástica e era o único jeito de não parecer idiota na frente de uma garota tão linda.

—Sua casa? – ela sorriu.

—Prazer, eu sou a pessoa que está há mais tempo viva aqui. Sou paciente residente terminal há cinco anos.

—Você está para morrer a realmente muito tempo.

—Eu continuo a combater a morte, diariamente. É uma luta. – sorri, 45% riu, então eu estendi minha mão. – Violet.

—45%... Bruni, mas ninguém me chama pelo nome. Você me daria à honra de me mostrar a sua casa e me levar até meu quarto? – ela me cumprimentou.

—Claro, 45%. Qual seu quarto?

Enquanto eu pensava em quão estranho era o apelido da garota ser 45% a coisa mais estranha do mundo aconteceu e acho que todos vocês devem prestar muita atenção. Ela pegou um papel e retirou do seu bolso, então leu algumas coisas e me disse:

—Achei! Terceiro andar... 39C.

O problema é que C era a designação do bloco dos cegos.


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