Elementar escrita por LunaLótus


Capítulo 1
Que joguem os dados


Notas iniciais do capítulo

"Às vezes calma, às vezes inquieta. Indecisa quando não sabe que destino tomar. Mas na maioria das vezes, um refresco para os dias quentes."



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O ano é 2200.

Thaís está sentada num banco de concreto, olhando para o nada logo à frente. A marca em seu braço parece ter sido gravada a fogo, embora nem isso a tenha alertado do perigo em que se encontra. O jardim onde se acha representa um paraíso escondido, lugar na Holanda que muitos nem sabem que existe. Um pequeno vilarejo, nascido das ruínas de um povoado que há quase 40 anos tinha lutado contra o que o mundo havia se tornado.

Ela suspira e olha para o lado. Ele está atrasado. É sempre assim. Renato, seu namorado, parece distante e frio depois da convocação dela. Thaís tentou explicar, chorou e implorou. Disse que não é culpa dela, a família tem um passado incriminador. Como ela pode negar isso? E como pode dar as costas ao chamado se aquilo é justamente o que ela quer? Uma chance para acabar com aquela situação...

Um robô chega perto dela. Se não o conhecesse, poderia dizer que era um humano. E poderia até ser. Afinal, ninguém sabe o que acontece naqueles laboratórios de criação.

- Precisa de alguma coisa, senhora? – pergunta a máquina de aparência humana.

- Não, obrigada, Ajax – responde Thaís, suspirando.

Ajax, o robô, retira-se. Ele é o servo da família. Por mais que goste dele, Thaís não pode deixar de sentir horror àqueles seres que agora infestam o mundo em que ela vive. “Gostaria de ter vivido há 200 anos”, pensa ela. Sim, sem dúvida, era um espaço melhor, mas já naquele tempo a era tecnológica dominava as vidas terrestres.

- Demorei? – pergunta uma voz masculina por trás da garota, fazendo-a sobressaltar-se. Ela vira a cabeça e cede um espaço para que ele se sente também.

- Como sempre – diz ela.

- Desculpe-me. Estive ocupado. Meus pais estão preocupados...

- É? – O tom de voz dela demonstra cansaço e irritação.

- Você podia entender o meu lado, Thaís. – Ele irrita-se também. – Não é fácil, sabe? Meu pai pode perder tudo por causa de um erro numa máquina e...

Thaís levanta, interrompendo-o e estendendo o braço para que ele veja a marca.

- Você está vendo isso? – indaga ela. – Fui chamada, estou preocupada, e você não se importa! É contra essas pessoas que podem fazer seu pai perder tudo que terei que lutar! Acha que não tenho medo? Pois eu tenho!

- Estou preocupado com você também, ora! – replica ele.

- Mesmo? Não parece. – Thaís dá as costas a Renato. Ele levanta e vai até ela.

- Desculpe. Sei o quanto você está tensa...

- Não, Renato. É você que está distante, frio comigo. Quase não nos falamos mais. Você não se esforça para que possamos aproveitar o tempo que nos resta.

Eles se encaram. Renato parece querer discutir, negar tudo aquilo. Mas não precisa falar nada. O casal se conhece tão bem que não precisa palavra para descrever o que estão sentindo.

- Posso não voltar viva de lá – sentencia Thaís.

- Não diga isso, Thai. Você vai voltar, e vamos nos casar, e...

- Não faça planos, Renato. Conheço meus pontos fracos. Imaginar algo e depois não suportar ser esquecida. Você pode se cansar e escolher outra garota que não tenha um futuro tão comprometido com a possibilidade de não existir.

Renato tenta negar, mas por fim assente e eles se sentam novamente. Tudo está calmo e ela nada diz ou faz. Por mais que tente esconder, não admitir, Thaís está encantada com Renato. Gosta muito dele, não pode negar isso. Acha até mesmo que o ama. Mas tem medo. Medo de se entregar e se ferir depois. Medo de ele a trocar enquanto ela não estiver perto. Não, ela prefere não entregar seu coração tão fácil.

No entanto...

O futuro dela pode não existir, e Thaís quer fazer cada minuto valer a pena. Quer viver, rir, se divertir... E aqueles momentos com Renato são simplesmente incríveis. É fato que quando começara a namorá-lo, ela não estava completamente apaixonada, no máximo fascinada. Mas agora... Agora ela começa a sentir algo forte, e a entristece pensar que terá que ficar longe dele.

- Tenho medo – sussurra ela.

Ele acaricia seus cabelos e pergunta:

- De quê?

- De não voltar.

- Não precisa ter medo, Thai, eu vou esperar por você. Eu... Eu te amo. Ouviu? Eu te amo.

Thaís não responde. Olha fixamente para o rosto de Renato. Como ele é lindo! Os cabelos loiros, como os dela, caiam-lhe perfeitamente curtos. Os olhos castanhos que brilhavam como o sol. A boca sorridente e com uma pequena marca no lábio inferior, herança de uma briga em que ele a defendia dos ladrões. Ela suspira e lhe dá um beijo em cima da cicatriz. Eles se abraçam e ficam assim por um longo tempo.

Pronto, era o que precisava pra Thaís entregar seu coração, mesmo que inconscientemente. Se lhe perguntassem, ela negaria, é claro, mas com um sorriso travesso nos lábios e seus olhos traindo-a quando brilhavam na simples menção do nome do amado. E, claro, está constantemente de bom humor, rindo por qualquer coisa.

É quando Ajax os interrompe:

- Sua mãe os chama para o jantar, senhora.

- Já estamos indo, obrigada, Ajax – diz ela.

O robô inclina levemente a cabeça, olhando rancoroso para Renato. Ajax nunca gostou de nenhum humano. A única exceção é Thaís e sua família. Por eles, a máquina tem uma verdadeira veneração. Ainda assim, às vezes, Thaís pensa vê-lo espionando-a, mas tenta esquecer. Ajax não pode saber contra quem ela irá lutar, ele não tem como saber...

Mas por momentos, ela acha que ele sabe, e que a qualquer momento amanheceria morta, obra de Ajax. Por isso, tenta esconder tudo: a marca, suas conversas, suas cartas... Nada pode ficar ao alcance do robô. Afinal, Thaís luta contra seres como ele, não é? Fora convocada justamente para isso... Não, Ajax não pode nem desconfiar disso.

Thaís olha para o pulso, onde mantém uma espécie de minicomputador. Com ele, ela pode fazer tudo, mas tem que tomar cuidado. É uma arma do governo, pensa ela. Uma arma para controlar a população.

Porém, nem o governo pode impedir aquilo que está por vir. Então, é aí que Thaís entra. Ela pode impedir.

- São seis horas... – murmura ela, meio triste.

Renato levanta-se, estende a mão para ela e diz:

- Vamos. Hoje é o dia. Não devemos nos atrasar.

Quando chegam a casa, os pais de Thaís estão sentados no sofá, abraçados, assistindo a uma reportagem na TV altamente tecnológica, que é mais uma projeção do que um aparelho propriamente dito: mais um desastre causado pelos robôs. Somente no início desse ano, foram milhares de desempregados. E, além disso, ainda tem o número de mortos por “acidentes” com máquinas. Thaís não acredita em nenhuma dessas histórias de acidentes.

Ela e Renato apresentam-se aos pais e esperam em pé enquanto desligam a TV. Thaís olha em volta: até a própria casa lhe causa repugnância. A sala ostenta a tecnologia. Tudo é feito com apenas um controle. As luzes são todas artificiais, o que deixa Thaís com a sensação de claustrofobia. Seus pais também não gostam, mas preferem aceitar viver assim a acabarem presos ou mortos como outros tantos. Da cadeia, eles não seriam úteis. E é por isso que Thaís luta.

- Vamos comer então. Eles não vão demorar – diz a mãe de Thaís, chamada Luiza.

- Olá, Renato – cumprimenta Augusto, o pai da jovem.

- Olá, senhor Augusto.

- Ora, dispensemos o “senhor”, por favor! – replica o homem, com um grande sorriso.

Augusto é do tipo brincalhão e de bem com a vida. Thaís parece muito mais com ele do que com Luiza. Até a aparência dela o lembra. Loiro, olhos mel, com a mesma altura. Luiza é um pouco mais séria que Augusto, mas ama o marido e o escolheu por seu jeito despojado. É mais baixa que a filha, com cabelos negros e curtos, com olhos também negros.

Eles seguem para a sala de jantar, e Thaíssa, a irmã mais nova de Thaís, encontra-se à mesa. Ela tem sete anos, e parece mais com Luiza, mas com a personalidade da irmã mais velha. A verdade é que foi a própria Thaís que mais cuidou de Thaíssa, porque seus pais iam trabalhar e só voltavam tarde da noite. Todos se sentam e a refeição é servida por Ajax.

- Então, Renato, como está seu pai? – pergunta Augusto.

Renato demora um pouco pra responder, até que fala:

- O mesmo de sempre. Minha mãe briga com ele o tempo todo, mas ele não pode evitar. Querem lhe tirar o emprego.

A mesa fica em silêncio profundo. Até Thaíssa, que nunca gostou muito de Renato, fica calada em solidariedade ao rapaz. Então Thaís pigarreia e diz:

- Mãe, quando vão chegar?

- Daqui alguns minutos. Você deveria ir esconder a marca – responde ela.

- Certo.

Thaís levanta-se da mesa, passa pela sala, sobe as escadas e vai até o seu quarto. Renato não precisa vê-la gritar de dor enquanto tenta esconder a marca da convocação. Para garantir que Ajax não a veja e nem a escute, a jovem tranca a porta e corre ao armário, onde guarda a única coisa que poderia salvá-la em um momento desses.

Eles, aqueles que estão vindo, fazem parte do governo. São controlados pela seita contra qual Thaís luta. Estão a procura de qualquer convocado, para prendê-lo, torturá-lo, obrigá-lo a dizer onde está a base, e depois o matam. Mas eles nunca chegam a saber. Nem os marcados sabem onde é a base. Só tomarão conhecimento quando estiverem reunidos, e os chamados têm que se encontrar sozinhos para continuar a viagem.

Isso resume a primeira parte da busca de Thaís. Encontrar os outros convocados.

A jovem olha para o braço novamente. A marca é perfeita, sem dúvida. Um círculo em espiral, lembrando um ciclone visto de cima. O ar. Ela é a representante do ar. Isso significa que Thaís pode controlar o ar e, principalmente, que o ar é como a personalidade dela. Às vezes calma, às vezes inquieta. Indecisa quando não sabe que destino tomar. Mas na maioria das vezes, um refresco para os dias quentes.

Porém, significa também que Thaís precisa ir atrás dos representantes da água, da terra e do fogo. O problema é que ela não tem nenhuma pista sobre de onde virão essas pessoas, nem como elas são. Se são garotas ou garotos. Thaís prefere não pensar. Balança a cabeça fortemente e pega o santo remédio.

A cápsula que Thaís segura é a única coisa que pode esconder a marca sem deixar vestígios. É enviada pela base para os convocados, porque todos sabem que o governo os procura. Assim, a loira toma o comprimido e se joga na cama, o rosto enterrado no travesseiro, a espera da dor.

E ela vem. A dor vem mais forte do que qualquer um suportaria. Mas o corpo do convocado tem que suportar. Ele passará por coisas muito piores... A marca vai sumindo pouco a pouco. Thaís arrisca-se a olhar. Parece que está sendo sugada para dentro de sua pele. A jovem grita novamente, mas não tem problema, porque seu quarto é a prova de som. Então, o chamado some e ela olha em volta.

Sua visão está turva, mas ela consegue distinguir os objetos do quarto. Sua cama, seu armário, sua cômoda, sua escrivaninha. Tudo altamente tecnológico. A cama, coberta com lençóis brancos, é embutida na parede, e, com um comando de voz, ela aparece. O armário é, na verdade, uma espécie de tubo, onde, em um controle especial pregado ao lado, Thaís pode escolher a roupa que quer vestir, entrar na máquina e sair de lá já pronta. A cômoda possui um engenhoso mecanismo de segurança, e a escrivaninha só abre suas gavetas ao toque dela.

A jovem estremece. Aquele quarto é tudo o que ela mais odeia em todo o mundo. Lembra-lhe, o tempo todo, a grandeza da coisa contra qual vai lutar. Thaís balança a cabeça, levanta da cama e vai até o grande espelho, ao lado do armário.

- Vamos lá, Thaís. O seu melhor sorriso. Você não é uma convocada – diz ela para si mesma.

Thaís ensaia sorrisos e expressões que escondam o seu nervosismo. Sempre fora uma boa atriz e logo consegue bons resultados. Depois de quinze minutos, considera-se pronta para descer e já com uma desculpa na ponta da língua caso eles já tivessem chegado e perguntassem o porquê do seu atraso. Ela abre a porta, respira fundo e desce as escadas lentamente.

Ao chegar à cozinha, os representantes do governo já estão lá, como Thaís havia previsto. Os olhos deles desviam-se para o braço da jovem, que oportunamente tinha trocado sua camisa de mangas longas por uma regata azul de alças finas. Luiza levanta-se e abraça a filha, com um enorme sorriso. Renato e Augusto estão lado a lado, descontraídos e conversando. Thaís se aproxima dos oficiais e oferece seu melhor sorriso.

- Boa noite – diz ela.

- Boa noite. Eu sou o tenente Alexandre. A senhorita já deve saber o que viemos fazer aqui – responde um homem de aparência rústica, com olhar altivo. O seu tom tende a ser amigável, mas Thaís tem sensores naturais contra esse tipo de jogo.

- Ah, sim! Claro!

O tenente curva ligeiramente a cabeça e Thaís estende os braços para que ele procure a marca. Por mais que esteja nervosa, ela parece se divertir com a situação e quando Alexandre solta suas mãos, ela os convida para jantar.

- Ora, por favor! – insiste ela. – Vocês com certeza vão querer olhar o resto da casa. Achei que vocês fossem revistar meu quarto e tudo o mais...

- Bem, então está bem. Temos mesmo que revistar seu quarto, senhorita.

- Pois, então, fique a vontade! Mas antes vamos comer um pouco?

- Claro, vamos.

Eles seguem para a mesa de jantar novamente, que já está posta com mais pratos. Thaís convida o tenente Alexandre para sentar-se ao seu lado, e enquanto ele come, ela o observa.

Alexandre é o tipo de homem que sabe cativar as pessoas. Thaís não consegue entender o porquê de uma pessoa assim servir ao governo. Ele é forte, com cabelos e olhos negros, mas com um sorriso gentil e calmo. Não é velho, deve ter 22 anos, no máximo. Gosta de conversar e logo se identifica com Augusto. Thaís fica calada, sorrindo eventualmente e mantendo uma distância razoável de Renato. Se algo der errado, ela não pode colocar seu namorado em perigo.

Os minutos arrastam-se lentamente, mas todos comem e bebem felizes. Finalmente Alexandre levanta-se e diz:

- Não podemos demorar mais. Vamos revistar a casa.

- Claro, claro – responde Augusto.

- Então, vamos lá – diz Luiza.

- Obrigado. – E vira-se para os outros policiais. – Comecem. Principalmente nos quartos das garotas.

Thaís, Renato, Augusto e Luiza vão para a sala. Thaíssa fica andando para todo lado, mexendo em todos os aparelhos da sala. Coloca música, liga a TV, aumenta a temperatura, bebe água. Thaís deixa-se a contemplar a irmã, o pensamento em lugares muito longe dali, onde provavelmente estão os outros convocados. A sua sorte é que a base não tinha entrado em contato com ela. Não mandaram cartas ou e-mails ou qualquer outro tipo de coisa. Apenas a cápsula, que apareceu um dia em cima da sua cama.

Alexandre, com o uniforme azul bem alinhado lhe assentando o corpo, fica na sala também, em pé a frente da família, olhando para o rosto de Thaís com uma expressão indefinível. Renato nota e incomoda-se com aquele interesse. Augusto e Luiza estão entretidos em uma animada conversa sobre o próximo chip de programação de geladeiras.

Estão todos ainda em suas posições quando os policiais voltam e balançam a cabeça negativamente. Alexandre indica que devem ir embora e Thaís oferece-se para levá-los a porta.

- Obrigado – diz Alexandre.

Os policiais saem primeiro e o tenente demora-se a porta, despedindo-se da jovem.

- Obrigado pela hospitalidade. Seria ótimo se todos os cidadãos fossem como a senhorita.

- Obrigada. Igualmente. – Sorri ela.

Ele sorri também e diz:

- Talvez pudéssemos nos ver, outro dia.

O olhar de Thaís vacila. Alexandre não sabe que Renato é seu namorado. Ela não esperava esse tipo de coisa, mas responde mesmo assim.

- Claro. Se você quer saber, não consigo imaginar como uma pessoa como você não pensou em um futuro mais brilhante do que viver a sombra do governo.

- Pensei, mas poderemos conversar sobre isso depois. Você não gosta do governo?

- Não é isso! É claro que gosto! – exclama ela, com um tom totalmente convincente.

- Bom. O governo me formou, sou parte dele. Poucas coisas me mudariam.

- Tipo...

Ele sorri e balança a cabeça.

- A senhorita é bastante curiosa. Nos vemos em breve, espero, senhorita. – E se afasta.

Thaís o observa ir e vira-se, dando de cara com Renato, que está enciumado. Ela joga-se nos braços dele e o beija, permitindo-se chorar por tempo indeterminado. Ele afaga seus cabelos e a leva para o quarto, onde a deita na cama e espera que ela adormeça.


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Notas finais do capítulo

Hey! Sentiram minha falta?
Não, né, eu sei! E aí, e o novo estilo? Mais impessoal, em terceira pessoa... Me digam o que acharam!
Em breve, voltarei com mais novidades - e histórias em primeira pessoa ♥
Amo vocês, senti saudades!
Beijoos



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