Ascendente em Escorpião escrita por Lua Barreiro, Holden


Capítulo 1
Caixa de Pandora




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Ela me encarava ferozmente.

Seu olhar era tão provocante quanto intimidante. Quando eu a olhava me sentia eufórico e surreal, caminhando em estrelas.

Às vezes ela soltava um sorriso meio amarelado, sem graça, e continuava a escrever. Eu continuava flutuando, tentando desvendar seus sinais e seus segredos.

Ela me deixa angustiado, meus pelos arrepiados e o meu olhar caído. Tem vez que eu quero fugir quando estou perto dela, mas também quero ficar.

Um dia eu fui até ela em passos contínuos, sem hesitar em qualquer instante, porém como covarde sou, escarrei em toda a coragem quando minhas mãos já estavam postas em sua carteira de madeira áspera e rabiscada. Eu não sabia o que dizer, então apenas desisti, voltei para a minha cadeira sorrateiramente, sem fazer muito barulho ou chamar a atenção.

Ela nem se quer me olhou, nem quando minhas mãos estavam quase encostadas nas suas, apenas continuou a rabiscar maviosamente em sua caderneta. Ignorava tudo que estava em sua volta, todo o mundo real e vivia dentro dos seus desenhos e histórias.

Acho que o fato dela se prender em seu próprio universo lírico e fantasioso, me faz querer explorá-la como se fosse uma terra perdida. Em uma analogia histórica, ela seria a América e eu o Colombo.

Na aula eu sempre a observo, não como um adolescente pervertido, mas como um explorador. Tentando desvendar seus planetas, descobrir sua orbita.

Espero que o sinal soe e o professor de início as aulas de cálculos químicos avançados, quando ele chega, não cumprimenta nenhum aluno, nem mesmo os futuros doutores, apenas joga sua apostila de trezentas e poucas páginas em cima da mesa e arregaça suas mangas límpidas e bem passadas. Respira por alguns longos minutos e pigarreia logo em seguida, para limpar a sua voz, mas mesmo assim não fala nada. Apenas, pega um giz e começa a escrever no quadro negro.

A cada formula que ele escreve na lousa, aumenta a sensação do meu corpo putrefazendo-se na cadeira. Acredito que ele sentiria orgulho de me ouvir utilizando este termo, que é simplesmente decomposição na linguagem química, e não me acharia um completo imbecil.

Olho para ela tentando descobrir se dá importância para estas coisas de densidade e partes por milhão, ou se apenas dedica estas horas do seu dia para rabiscar no canto do caderno e escrever poesias com teor subjetivo. Ela tem cara daquelas garotas que desmancham todos seus sentimentos em palavras perdidas.

Ano passado, escrevi uma poesia facilmente achável no Google em um pedaço de papel e o deixei cair propositalmente ao seu lado, na esperança que de ela se apaixonasse pelo garoto que escreve poesias em post-it coloridos. De fato, ela pegou o pedaço de papel colorido, o que fez com que eu sentisse orgulho do meu plano patético que supostamente havia dado certo, porém ela o jogou no lixo e em seguida me encarou furiosa.

Aposto que se ela tivesse dito algo naquele momento, diria o quanto eu sou repulsivo por poluir o planeta e a quantidade de anos exatos que demora para que um papel se decomponha na natureza.

Não dei muita importância para o papel, era uma daquelas poesias que você encontra em livros de autoajuda no banheiro das suas tias ou na sala de espera de consultórios médicos.

Aquilo me fez pensar que as atitudes dela as vezes são tão agressivas quanto uma tempestade e outras vezes tão delicadas quanto uma garoa de verão.

Ela era o oposto dela mesma.

Caso eu tivesse que adivinhar algo sobre suas influências astrológicas, diria que é uma taurina com ascendência em escorpião.

Ela ama ou odeia.

Sorri ou chora.

Machuca ou é machucada.

Não existe o meio termo no seu vocabulário.

Continuo a observar enquanto o giz branco do professor faz um barulho estrondoso por conta do seu atrito com a lousa. Algumas pessoas estão com as mãos levantadas e outras tentam esconder seus rostos ou evitar contato visual com o professor, o que me faz crer que ele acabou de perguntar algo sobre a matéria. Olho para o professor e para a lousa consecutivamente, tentando descobrir o que possa ser. Tudo o que vejo e consigo decifrar são códigos satânicos escritos por algum maçom louco que passou por nossa sala, mas acredito que também possa ser fórmulas químicas.

Desisto de tentar descobrir o que está acontecendo na aula e volto a olhar para ela, vejo que não está mais rabiscando e sim olhando firmemente para o professor, como se soubesse a resposta, mas a timidez a impedisse de responder.

Então ela olhou para mim por alguns segundos e sussurrou algo quase inaudível:

— São trezentos e sessenta cinco gramas por mol. — Apontou para o professor brandamente, para que ninguém ouvisse, somente eu.

A princípio não entendi o que ela queria que eu fizesse com aquela resposta, mas ela me fitava como se estivesse esperando algo, então limpei minha voz em uma breve tosse e anunciei a resposta para o professor e o resto da turma. O velho ficou surpreso, conferiu o exercício na sua apostila e me parabenizou pela resposta e ficou alguns minutos intermináveis falando o quanto ele acreditava que eu era um lixo de aluno.

O sinal anunciando o fim da aula tocou, todos os alunos começaram a arrumar seus materiais como se houvesse alguma bomba relógio dentro da sala e todos precisassem sair o mais rápido possível do local. Eu apenas coloquei meu caderno apoiado ao meu antebraço e joguei meu estojo por cima.

Ela ainda estava sentada na carteira ao lado, arrumando suas canetas uma por uma, para que coubessem com perfeição dentro do estojo. Respirei profundamente umas três vezes e comecei a falar disparadamente, sem ao menos respirar:

— Por que você me deu a resposta? — Minha voz saiu trêmula, o que me deixou mais envergonhado e corado.

Ela finalmente fechou seu estojo.

— Acho que você passa muito tempo me olhando durante a aula, todo mundo percebe isto, principalmente os professores. Então seria uma boa, que algum professor acreditasse que na verdade você é um gênio mal compreendido. — Pausou e colocou seu estojo e cadernos dentro da sua mochila. — Além do mais, eu não sou muito fã de errar, então não seria muito legal para mim se a resposta estivesse errada.

Fiquei meio paralisado, pensando no que iria responder. Então lembrei que estamos conversando frente a frente, e que não posso demorar tanto quanto demoro em conversas virtuais.

— Qual é o problema em errar? — Sou quase uma caixa de pandora quando se diz a respeito de pecados e erros, então não concordo com o fato de que alguém não goste de errar, quer dizer, ninguém de fato gosta de errar, mas é algo normal. Nós erramos, aprendemos e erramos de novo.

— Nenhum, eu acho. — Olhou para o lado e semicerrou os olhos, como se estivesse bolando algo. — Você pode errar, eu não. — Quando terminou a frase jogou seus cabelos longos e encaracolados para o lado esquerdo do seu corpo e encaixou sua mochila no seu ombro direito, extremamente pálido e magro.

— Então você é um robô ou algo assim? Sabe, para nunca errar, você tem que no mínimo ser programada e perfeitamente projetada e do mesmo jeito ainda haveria erros, mesmo que mínimos.

Ela sorriu, não sei se estava me zombando internamente ou se apenas achou o que eu disse engraçado.

— Eu acredito no conceito de perfeição.

Ela disse a frase e saiu da sala tranquilamente, era como se ela fosse personagem de um livro em que todas as suas falas são metafóricas ou querem provocar algum efeito sentimental nos seus receptores.

Eu estava praticamente sozinho na sala, caso eu não contasse a presença do professor de química que vive por aqui. Olhei para ele e meneei a cabeça, num gesto completamente falho de despedida:

— Aceita um conselho do seu professor? — Perguntou de modo que se eu falasse não, ele daria o conselho do mesmo jeito.

— Aceito, eu acho. Não que eu vá seguir o conselho, mas eu quero ouvi-lo. — Respirei para recuperar o ar, pois eu havia falado tudo rápido demais. — Enfim, pode falar.

Ele riu e ajustou seus óculos que estavam caídos sobre seu nariz oleoso.

— Não se apaixone por alguém que acredite na perfeição, elas sempre vão a procurar, estejam vivas ou mortas.


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