O Norte se lembra escrita por Simão Souza


Capítulo 1
Nunca esqueça seu nome.


Notas iniciais do capítulo

Personagens principais: Rickon Stark, Tom Sete Cordas, Lionel Umber, Lyanna Snow, Cregan Little.
Personagens mencionados: Jon Snow, Bran, Lady Stoneheart, Walder Frey, Edmure Tully, Roselin Frey, Sansa, Robb, Jaime Lannister.



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Em certo ponto da manhã, quando o sol estava apenas um pouco acima do horizonte, seus raios batiam na vasta paisagem de forma a criar cores e brilhos bem peculiares. A floresta hora fechava, hora abria clareiras para se poder ver ao longe. Desde que a paz voltara a Westeros, a Estrada do Rei voltara a ser um lugar seguro, e expedições como essa eram possíveis sem grandes escoltas.
Rickon Stark respirou profundamente o ar da primavera, com seus cheiros de mato, de terra, orvalho salpicando as copas dos pinheiros: cheiros do Norte. Sentiu-se quase como se estivesse na pele de Cão Felpudo, mas estava em sua própria pele e seu lobo negro trotava sempre por perto, acompanhando os cavalos, de ouvidos bem atentos, girando em várias direções. Vez ou outra o lobo parava, apontando o focinho pra o ar, farejando algo interessante trazido de longe por alguma brisa.

–Vê aquele brilho a leste, adiante da colina? - apontou Rickon, dirigindo-se à pequena Lyanna.

–Lago Longo! Respondeu a pequena sardenta, num sorriso atrevido que denunciava a certeza de sua resposta. Como ele assentiu com um sorriso, ela vibrou: - ganhei mais um ponto! Não esqueça de contar!

Conforme o jogo que os dois inventaram, a cada pergunta sobre o Norte que ela acertasse, ganhava um ponto e, com dez pontos, Rickon lhe contaria alguma história sobre seus pais. A pequena amava o Norte e sabia todas as histórias e lendas sobre ele, assim como amava seu protetor, Rickon sabia. E ele também sentia apreço por ela, como se fosse algum tipo de irmã mais nova. Tamanha era a cumplicidade entre eles, que Rickon decidiu trazê-la junto em sua misteriosa viagem às montanhas.

Há alguns anos, a plebe nortenha contava histórias sobre um monstro nas montanhas. Ninguém nunca viu, mas muitos ouviam seus gritos ecoando pelas montanhas nas noites sem lua. Quando vassalos do clã Little das montanhas disseram que mantinham a fera aprisionada, não demorou para que Rickon resolvesse ir vê-la. Os Little aguardavam sua chegada.
Além da pequena Lyanna Snow, a pequena comitiva que o acompanhava era formada também pelo bardo Tom Sete Cordas e o cavaleiro Lionel Umber, que insistiu em acompanhar Rickon, para sua segurança.

–Não vai mesmo me deixar ver o monstro também? - perguntou Lyanna.

–É claro que não. Você pode ser muito esperta e atrevida, mas ainda é uma garotinha de dez anos.

Lyanna fez uma carranca.

–Não é justo! Eu sobrevivi à longa noite! Não sou uma criança de verão.

–É verdade. - Rickon fez uma expressão de pesar. Tom Sete Cordas deu um risinho e lançou um olhar a ele como quem desafiava a vencer a queda de braço com a pequena. - Mas mesmo assim eu devo protegê-la. O que Lady Sansa diria se soubesse que lhe deixei correr qualquer tipo de perigo?

–Lady Sansa não precisa saber disso! - ela pensou um pouco. -Mas... nada do que eu disser vai adiantar, certo?

–Isso mesmo - assentiu ele. Pensar na longa noite fez um calafrio correr por sua espinha. Imaginou aquelas estradas tomadas por mortos caminhando com seus olhos azuis brilhantes. Lembrou da manhã em que o sol não veio… e pareceu que nunca mais viria. Por um tempo que pareceu para sempre, tochas eram o mais próximo do sol que se via. Tochas ou a respiração de dragões.

No dia seguinte, deixaram a estrada do Rei para adentrar nas montanhas ao norte da Mata de Lobos.

Conforme a altitude aumentava, a temperatura caía um pouco. Para o lado sul, as visões da Mata de Lobos e planícies nortenhas eram arrebatadoras.

Em uma das paradas para descanso, Rickon e a pequena conversavam.

–Os traidores da Parulha, que foram enterrados no gelo da Muralha, voltados para o Norte, com suas lanças e berrantes, como eles ficaram conhecidos?

–Essa é fácil: os 79 sentinelas.

–Está certo. Você sabe mais histórias que a Velha Ama, Lyanna! - Os dois riram e passaram a observar o horizonte, em direção à Muralha. Avistavam uma lebre, quando esta foi atingida por uma flecha. De trás dos arbustos, surgiu um homem alto, com uma hirsuta barba e cabelos negros. Lionel pôs-se em pé, alerta. Pareceu claro a eles que não era alguém de um clã das montanhas, era um selvagem. Ao percebê-los, o homem tornou mais lentos seus movimentos, ao que caminhava em direção à sua recém-abatida caça enquanto examinava todos ali. Puxou sua flecha do chão, apanhando sua lebre, então pareceu reconhecer quem tinha encontrado. Seu corpo tomou uma postura mais relaxada, e fez um gesto de cumprimento, parecendo àquela distância esboçar um sorriso descontraído. Imediatamente, Rickon apressou-se em responder ao gesto, deixando claro que todos ali estavam em paz. Passados os instantes de tensão, surgiu outro selvagem que também cumprimentou o grupo de Rickon e ambos seguiram em sua caçada, em outra direção.

–O dia em que Lionel Umber baixar a guarda para selvagens, a Muralha cairá.

–Espero que a Muralha não caia, sor Lionel, mas já é mais do que tempo de aceitar os selvagens. Há uma década eles já vivem entre nós, desde que o Senhor Comandante Snow selou a paz entre nós e eles, desde então não tivemos incidentes. - O cavaleiro limitou-se a baixar a cabeça em uma expressão carrancuda. Alguns selvagens permaneceram ao norte da Muralha, pensou. Nem todos sabiam viver sob as leis do sul. A lembrança de Jon o fez ficar por um tempo com olhar distante, saudoso, pensativo. Fazia muito tempo que não o via e Rickon pegou-se olhando o céu na vaga esperança de ser surpreendido. Não foi dessa vez.

Todos voltaram a suas posições de descanso, e Tom Sete Cordas anunciou:

–Aqui parece um bom lugar para montar acampamento hoje.

Naquela noite, sob a luz de uma pequena fogueira, Rickon e Tom Sete Cordas conversavam, enquanto, perto dali, Lyanna dormia profundamente e sor Lionel montava guarda em um local mais elevado.

–Ela não precisa saber, Tom. Ela nunca deverá saber. O segredo a mantém segura - afirmou Rickon.

–Certamente. Mas... não acha que ela poderia saber, se aceitasse manter o segredo? Já vimos a dor que esse tipo de segredo pode causar, se me permite a ousadia de lembrar – questionou Tom Sete Cordas.

Rickon sentiu uma certa amargura.

–Eu sei. Mas que bem fará a ela saber que é minha prima? Que é filha de Edmure Tully com Roselin? Que é a última Frey viva? Deuses sabem que ela seria odiada aqui no Norte. Depois do que aconteceu com a família da mãe dela, lembre da promessa que fiz a Sansa. Protegê-la do ódio. Que ela e todos pensem para sempre que seus pais eram nortenhos que morreram na grande noite.

Tom assentiu:

–Tem toda razão, meu senhor. Só fiquei pensando... que ela odeia sua própria gente sem saber. Ela vibra com o fim do avô naquele cerco - Tom fez uma pausa, pensativo. -Mas isso não é nada, considerando que ela esteja protegida, afinal é inocente.

–Aquele cerco… até hoje há mais lendas do que realidade. Quem poderá dizer o que aconteceu nas Gêmeas naqueles dias? Como bardo, sabe bem que a maioria das canções são enfeitadas – Rickon minimizou.

–Eu estava do lado de fora - Tom assumiu um ar sombrio. -Mas acredito em cada palavra das canções que fiz. Que a mulher de Walder Frey enforcou-se por medo do homem com cabeça de lobo. Que as pessoas apareciam mortas a cada amanhecer. Que o velho Walder congelou os pés e acordou com uma dor alucinante, para descobrir que algo havia lhe devorado os dois pés. E então… finalmente testemunhar o resto das pernas serem devoradas pelo fantasma de Robb Stark.

–Se ele morreu, como pode ter contado a alguém? E, por favor Tom, respeite a memória de meu irmão. Vai dizer que também acredita nas canções sobre minha mãe ter voltado dos mortos para enforcar dezenas de Freys ou Jaime Lannister? Já o proibi de cantar essa canção!

Tom fez uma expressão estranha, como se realmente acreditasse nas lendas e tivesse testemunhado algo terrível. Mas limitou-se a apenas pedir perdão.

Conforme a subida, sentiam pequenos estalidos dentro de seus ouvidos e o ar ficava cada vez mais temperado com aromas diferentes. Os cavalos pareciam cansar mais naquela terra dura e pedregosa. Percorreram um pequeno cânion flanqueado por represeiros muito antigos encravados na rocha. Os galhos pálidos levantavam-se preguiçosamente na direção da luz, enquanto as raízes penetravam na rocha onde parecia impossível. Haviam faces entalhadas nos troncos, de modo que os olhos sangrentos os acompanhavam sombriamente. Quando o vento soprava ali, fazia um som desconfortável de assobio. Rickon pegou-se imaginando quanta coisa aqueles olhos já teriam visto. Quantos Filhos da Floresta teriam feito aquele caminho há milênios atrás? Era uma sensação ao mesmo tempo de medo e de familiaridade.

–Depois daqui, a vila dos Little está a dois dias - informou Lionel.

Algumas horas depois do cânion, acamparam para passar a noite. Naquela noite, o coração de Rickon estava muito inquieto. Antes de cair no sono, rolou várias vezes, e quando adormeceu, teve um sonho estranho com Bran. Fazia muitos anos que não sonhava assim com o irmão. Sonhou que era criança e estava no Bosque Sagrado, chão coberto de folhas vermelhas e vapor subindo das fontes. Caminhava procurando o irmão, quando avistou-o em cima de um grande represeiro. Ele estava muito alto, então Rickon se assustou: -Desce logo daí, Bran, se cair vai se machucar de novo!

Mas então viu que o irmão já não era criança, e estava preso à árvore. Parecia que, do peito para baixo, Bran estava dentro da madeira da árvore, não dentro de um buraco no tronco, mas enfiado ali como um prego. Rickon ficou ainda mais nervoso. Bran tinha barba no rosto e um cabelo bem longo. Nos galhos do represeiro, haviam muitos corvos, centenas, todos silenciosos.

–Bran, sai daí! O que você fez?

–Não tenha medo, Rickon, não se preocupe mais comigo, eu estou bem. No escuro, ninguém me vê, mas eu vejo todo mundo.

Como previu Lionel, dois dias depois estavam chegando a seu destino.

O velho Cregan Little parecia mais um avô bonachão do que um homem endurecido pelos invernos nas montanhas. Atarracado e de maneiras rudes, demonstrou grande simpatia por Lyanna. Cão Felpudo havia desaparecido na mata, mas estava sempre por perto, Rickon sabia. Jantaram cabra assada, creme de cebolas, nabos na manteiga e abóboras carameladas no mel, tudo empurrado para baixo com uma amarga cerveja rústica. Um banquete e tanto, especialmente para os simplórios homens da montanha. Mas, segundo Cregan, longe de ser dingo para receber o Rei No Norte. Todos saborearam como se nunca tivessem comido tão bem.

Quando ficaram satisfeitos, Cregan e Rickon saíram a cavalo, rumo ao suposto lar do monstro.

–Sabe, Vossa Graça, há noites em que o monstro berra furiosamente que seus guinchos podem ser ouvidos ao longe e até na Muralha os irmãos negros estremecem.

–Já ouvi falar... Diga-me Cregan, a fera é perigosa?

–Seria, se estivesse livre, mas está devidamente contida, sabe. Deuses sabem que males causaria se ficasse andasse livremente por aí – respondeu o nortenho, que carregava um saco cheio de restos do banquete, par alimentar o monstro.

Conforme os cavalos andavam, parecia que o silêncio aprofundava-se na noite. Nem animais noturnos resmungavam mais ali. O coração de Rickon agitava-se a cada instante, de ansiedade.

Após pouco mais de um quilômetro, chegaram a seu destino: o lar do monstro era uma caverna escavada a partir de uma fenda na dura rocha da montanha. Parecia um tipo de habitação de selvagens, e Rickon não ficaria surpreso se soubesse que aquele covil existia há milhares de anos.

Desceram e amarraram seus garranos. O interior era escuro, então o velho Cregan acendeu uma lamparina. A caverna era perfeitamente, habitável, embora rústica e o corredor seguiu cerca de 80 metros montanha a dentro até o que parecia uma câmara maior. Rickon aguçou os ouvidos, para talvez captar algum som da coisa, mas tudo o que ouviu foi um gotejar à distância.

A luz revelou um cômodo bem amplo, com escavações nas paredes que poderiam ser tanto camas como compartimentos para guardas utensílios. O ar ali era parado e um pouco mais quente, e Rickon imaginou que nenhum frio entraria ali. O silêncio e o cheiro de abandono o fez lembrar das criptas de Winterfell.

– Aqui estamos, Vossa Graça. - Cregan ergueu a lamparina e a pendurou em algum suporte na parede. Quando ele falou, alguns morcegos se agitaram aos guinchos.

Foi então, com o cômodo iluminado, que Rickon pôde perceber, em um canto do cômodo, uma grande gaiola de ferro suspensa, com uma figura semi-humana dentro, nua, encolhida e imóvel. Logo na parede ao lado, corria uma fonte, que caía num poço, sobre o qual a gaiola pairava. O silêncio era absoluto.

–Acorde pra comer, demônio! - o velho levantou a voz e mais morcegos se agitaram em algum canto escondido. O monstro então começou a se mover, emitindo pequenos gemidos e grunhidos. Possuía garras muito compridas nas mãos e nos pés e uma juba negra ao redor da cabeça. Cregan jogou os restos de comida na gaiola e então o monstro começou a alimentar-se.

Ao ver a cara do monstro, o coração de Rickon pareceu parar por dois segundos. Tinha buracos negros no lugar dos olhos e não tinha lábios, de modo que os dentes ficavam sempre à mostra e a maior parte da comida ficava caindo enquanto ele tentava mastigar. Rickon notou que a criatura não tinha língua e parecia não ter sexo - ou este havia sido removido. Rickon retorceu a boca numa expressão dura e permaneceu sem nada dizer, até que o velho quebrou o silêncio:

– Ele se alimenta de qualquer coisa que atiremos a ele, até merda ou alguns morcegos quando estes vão ali beber água. O que aconteceu com os olhos, isso não foi obra minha, Vossa Graça. Sabe, urubus aproveitaram um momento em que ele dormia e comeram seus olhos. Passa a maior parte do tempo dormindo, há tanto tempo que quase não tem memória alguma a não ser reconhecer o som da minha voz.

O monstro continuava mastigando e grunhindo. Cregan Little continuou:

–Mas, sabe, de tempos em tempos, sua memória vem à tona, e é nessas noites que ele grita desesperadamente, por horas. E é assim que tem de ser. Ele tem de lembrar quem é, para que nunca mais pense em tocar no povo do Norte. Chegando mais perto da criatura, o velho falou:

–Nunca esqueça seu nome, Ramsey Snow.


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