-Inspetor - Começou Thénardier, sua voz embriagada pela aguardente e seu rosto coberto por sujeira e fuligem. Ele estava sentado de frente para Javert na sala de interrogatório da delegacia; fora pego tentando assaltar a casa de um burguês, um cidadão do bem muito conhecido e admirado, e a única maneira que encontrara de adentrar na casa do sujeito fora pela chaminé. Mal Thénardier caíra na lareira, a família do homem, que estava reunida na sala de estar, se apressara em chamar a polícia. -Ouvi dizer que o senhor tentou se matar semana passada.
Javert não respondeu. Além do fato de estar muito concentrado preenchendo alguns papéis, ele também ignorava completamente o criminosos sentado á sua frente. Imaginava que nada de bom poderia vir de um homem como Thénardier, e não estava errado.
-É muito triste, o suicídio. É pecado. Eu sei disso, Monsieur, pois sou um cristão devoto. Li a Bíblia. Minhas filhas foram educadas na fé cristã. Minha esposa, que o bom Deus a tenha, pobre mulher, queria que minha filha mais nova fosse uma freira! Imagine! Minha jovem Azelma, uma freira!
Novamente, Javert não respondeu. O próprio Thénardier parecia perdido em suas divagações.
-Por falar nisso - Continuou. -Minha menina mais velha morreu nas barricadas. Levou um tiro, de acordo com o que me contaram. Morreu nos braços de um garoto que agora está casado com outra - Thénardier riu e balançou a cabeça, como se a morte de sua filha fosse algo que o divertisse. -Era estúpida, a menina. Até hoje não sei o que estava fazendo lá! Vestida como um garoto! Seu nome era Éponine...?
-Eu sei qual era o nome dela.
Thénardier estremeceu. O repentino som da voz rouca de Javert no recinto o deixou aflito.
-O senhor...?
-Eu a conhecia. Eu a conhecia melhor do que você, se quer saber - Thénardier teve quase certeza de ouvir Javert suspirar. Ele levantou seus olhos, tirando a atenção de seus papéis, e encarou o criminoso: -Quando olho para você, eu me lembro dela. Éponine. Ela era mais do que você e sua esposa jamais mereceram. Corria por aí sorrindo e cantando, mas era muito triste por dentro. Sua vida era fria e escura, mas ela não tinha medo. Morreu para salvar o garoto que amava; eu estava lá. Eu vi tudo. Não deixou que os estudantes a ajudassem pois não queria continuar a viver. Disse que não valia a pena continuar viva se não houvesse amor em sua vida; parte disso é culpa sua, você sabe.
-Eu sei. E a outra parte é culpa sua; o senhor amava a garota, não amava? Se ela ainda estivesse viva, eu me enfureceria em relação a isso, mas ela não está. Pois bem, mesmo assim nunca disse a ela; Éponine morreu acreditando que ninguém a amava. Nós dividimos a culpa, Inspetor.
Javert se calou. Thénardier, e ele odiava admitir isso, estava certo, talvez pela primeira vez em sua vida, mas é claro que Javert nunca iria dizer isso. Ao invés disso, ele somente assentiu e murmurou um "eu sei" e conduziu Thénardier até uma das celas da delegacia, pensando no que teria acontecido se Éponine soubesse que ele a amava.