Entre a Íris e o Nanquim escrita por Aline Vataha


Capítulo 3
Capítulo 3


Notas iniciais do capítulo

O capítulo demorou muito mais que o previsto para sair D: Eu ganhei um gatinho novo (tinha 30 dias na época), e gastei três semanas para fazer ele se acostumar com a minha gata mais velha e vice-versa. Além disso, tive que fazer uma tonelada de trabalhados da faculdade, então não tive tempo algum para coisas importantes, como ser feliz.

Mas agora tudo se estabilizou um pouco mais (nem tanto porque o gatinho novo dorme encima do teclado), então espero escrever com maior frequência agora >



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Aline fez uma expressão carrancuda. Havia dois parágrafos de texto a mais na lousa desde a última vez em que ela havia olhado. Ela pousou a caneta em cima de seu caderno e cruzou os braços. O professor de história odiava que dormisse na aula dele, mas nunca falou nada sobre desistir dela.

A garota mordeu o lábio e respirou fundo. Olhou para a janela, aonde pôde ver o pátio da escola. Preferiria estar lá fazendo nada do que estar na sala fingindo que fazia alguma coisa. Queria estar em casa, dormindo ou brincando com seus gatos, ou até mesmo vendo TV como um zumbi.

Ao perceber que desenhar não tinha sido uma das opções, seus olhos umedeceram.

Aline odiava o que andava sentindo. Seu peito estava cada vez mais pesado, como se o seu coração bombeasse concreto ao invés de sangue. As aulas estavam mais chatas e desinteressantes do que nunca, e até mesmo copiar estava se tornando uma tarefa aversiva. A única coisa que fazia com consistência era dormir.

Ela também andava irritada. Irritada com gente que andava devagar demais, com gente que falava alto demais. Com o professor que demorava para chegar, com o seu celular que demorava para ligar, para os bochichos que aconteciam na aula, pelo jeito que olhavam para ela, pelos sorrisos que via logo cedo.

Queria mandar todos à merda.

O professor finalmente parou de escrever na lousa, e os alunos suspiraram de alívio. Virou-se com dificuldade para a turma, como uma roda de caminhão sendo lentamente girada no chão. Sua corcunda debilitava seus movimentos, assim como sua artrite. Encarou os alunos com uma expressão considerada neutra, mas Aline sempre a viu como sendo de desprezo sutil.

– Copiem tudo – Disse com sua voz áspera. – Teremos uma prova na quinta que vem.

Ninguém disse nada, mas a sala se encheu de protestos silenciosos. Bocas se comprimiram, lápis foram apertados e testas se franziram, mas não houve um piu sequer.

O velho professor fez uma procissão à sua mesa, arrastando os pés como se suas meias fossem feitas de chumbo. Sentou-se da mesma forma que uma pilastra caía no chão, desmoronando seu corpo cansado sobre a cadeira.

Aline olhou seu caderno uma última vez antes de guarda-lo. Havia rabiscado ao redor da folha e não havia copiado nem metade do que devia ter feito. Isso a preocuparia antigamente, mas estudar não andava sendo uma prioridade.

Ela olhou de soslaio para trás. Eric estava sentado a duas cadeiras de distância. Copiava o texto, concentrado. Seu enorme corpo estava curvado sobre o caderno, sua caneta deslizando pela folha com rapidez. O seu cabelo castanho caía sobre seus olhos de uma maneira delicada, e Aline já havia se imaginado um milhão de vezes acariciando-o entre os dedos.

O perfume era mesmo o pior de tudo, pensou. Podia senti-lo mesmo agora, com ele tão longe. Também o sentia quando ele se levantava, quando entrava na sala, quando se mexia. As vezes também jurava que sentia seu cheiro quando ia dormir, mas se perguntava se isso era algum tipo de sonho. Estava tão acostumada em vê-lo sempre que fechava os olhos que se espantava com o quanto ele era mais bonito no mundo real.

O sinal tocou. O professor foi o primeiro a sair da sala, apressado para ir comer. Os alunos levantaram-se vagarosamente, cansados de ficarem sentados tanto tempo. Conversas tímidas eclodiram, e logo se tornaram papos altos e animados, com alguns gritos inclusos. Aline pôs os braços em cima da carteira e deitou sobre eles, querendo que o barulho parasse. Queria muito ir embora.

Olhando para as pessoas ao seu redor, ela se indagou sobre quantos amigos ela realmente tinha. Ela sempre conversou com muita gente, e até mesmo participava de alguns grupinhos, mas não se sentia pertencente a nenhum deles. Não se sentia à vontade para expor aspectos da própria vida, e raramente entrava em conversas íntimas. Ninguém parecia sentir sua falta, e ela não acreditava que podia fazer a diferença em qualquer coisa.

Quem ela podia chamar quando precisasse? Não conseguia pensar em ninguém. Agora que tanto precisava, só tinha ela mesma. O que ela andou fazendo em todos estes anos? Só desenhando? Parecia existir tanta coisa para fazer, mas... Por que ela nunca tentou ir além?

A sensação que ela tinha era a de ser uma turista dentro da própria vida, sempre visitando lugares e pessoas diferentes, mas sem ter um lugar para voltar.

A namorada de Eric não demorou para entrar. Era de outra sala, uma série acima, e sempre vinha em todos os intervalos. Aline afundou um pouco mais a cabeça, mas não deixou de observá-la. Ela era extraordinariamente bonita, sempre chamando a atenção das pessoas aonde quer que passasse. Tinha o sorriso mais belo que Aline já havia visto, e um longo cabelo negro que chegava até a cintura, tão bem cuidado que parecia ter saído de uma propaganda de condicionador.

Ela abraçou o namorado a poucos metros de Aline, e uma rodinha de amigos se formou ao redor deles. Ela sorriu, e todos que a olhavam sorriram também. Aline se sentiu um pouco melhor, mas não muito. Ela então olhou para a própria blusa, tentando desviar sua atenção para algo mais agradável. Fechou os olhos quando começaram contar piadas e a rirem. Sentiu algo subir à garganta, mas ela engoliu a sensação com desgosto, como sempre fazia. Era um misto de dor e inveja, e ela não conseguia imaginar como colocar isso para fora sem machucar alguém... Ou a si mesma.

Aline já havia pensado muito sobre isso. Se ela fosse diferente, as coisas seriam melhores?

– Bom dia, Aline.

Ela abriu os olhos.

– Bom dia, Cinthia.

– Posso me sentar?

– Uhum.

A namorada de Eric sentou numa cadeira próxima. As duas conversavam sempre que tinham chance, sendo que a iniciativa sempre partia de Cinthia. O jeito que ela conseguia fazer amigos era impressionante. Aline nunca conseguiria ser como ela.

– Você não parece muito bem hoje, Aline. Aconteceu alguma coisa?

– Nada demais. Só não ando dormindo direito.

– Imagino. Época de provas sempre são um incômodo. Mas você sempre vai bem, não é?

– Costumo ir. Não é muito difícil.

– Não gosto de estudar – O rosto de Cinthia se fechou numa careta engraçada. – Prefiro mil vezes dançar do que pegar num livro. Sei que isso vai me ferrar mais tarde, mas não consigo evitar.

Aline se lembrou da última feira cultural da escola, em que cada sala se reunia para apresentar algo para todas as outras. Foi naquele dia que ela viu Cinthia dançar pela primeira vez. Se ela era linda parada, dançando ela era como uma deusa, capaz de hipnotizar centenas de olhares com um único movimento. Havia sido uma apresentação curta, mas parecia ter sido infinitamente mais longa. Aquela memória ainda queimava na mente de Aline, da mesma forma que ela sabia que queimava na mente de outras pessoas. Em poucos minutos, Cinthia havia feito sua arte se tornar reconhecida e lembrada por todos, enquanto Aline lutava para fugir da própria apatia.

– Você dança bem. Devia tentar trabalhar com isso.

– Obrigada – Ela corou um pouco. – Mas ainda não tenho certeza do que quero fazer.

– Você podia tentar ser professora de dança. Escolas sempre dão dinheiro, ainda mais com crianças.

Cinthia considerou isso por um momento.

– Pode ser... Não tinha pensado nisso. Mas não tenho certeza sobre qualquer coisa. E o Eric vive falando sobre viajar depois que acabarmos o colegial – Ela balançou a cabeça. – Mas de qualquer forma, e você? O que planeja fazer?

– Bem... Eu não sei. Não faço ideia.

– Você se dá bem em qualquer matéria, então não sei se algo vai ser especialmente difícil pra você. Mas o que eu queria mesmo era ver você se tornar uma artista. Já imaginou isso? Ser uma daquelas pintoras que põe os quadros a venda e ganham milhões com isso? Eu adoraria que isso acontecesse! – Ela sorriu. – Sempre adorei seus desenhos. Vivo roubando o celular do Eric pra ver alguma coisa sua, e por acaso, tenho que te adicionar pra você poder me passar e... Eu ... Disse algo de errado?

Aline limpou os olhos com pressa. Fez todo o esforço do mundo para forçar um sorriso, mas sua boca formou apenas uma linha torta.

– Estou bem – Sussurrou.

– ... Você tem certeza?

Aline balançou a cabeça. Cinthia abriu a boca, mas não disse nada. Fitaram-se em silêncio até o sinal do fim do intervalo tocar.

– Se quiser conversar comigo depois da aula, eu estou disponível, tá? – Cinthia sussurrou. – Dá um toque no Eric que ele me avisa. Só dizer que é importante, e ele não fazer perguntas. Fique bem.

Ela tocou de leve o ombro de Aline antes de ir. A garota voltou a deitar na mesa, tomando o cuidado para não deixar nenhuma parte do rosto à mostra. Respirou fundo várias vezes, fazendo o possível para controlar a respiração que ameaçava se descontrolar.

Era difícil não pensar em Cinthia como um ser de outro mundo. Os mitos de ninfas e sereias perto dela pareciam ser muito verdadeiros. Ela não era boa apenas numa coisa ou outra como as outras pessoas eram; ela era perfeita em tudo, e não parecia ter falha alguma. Tinha coragem para fazer o que amava, confiança para ser ela mesma e empatia com quem a cercava.

Eric amá-la não era nenhuma surpresa.

Aline queria ser que nem ela. Nem que fosse só um pouco. Ter só um pouquinho da força que ela tinha.

Só um pouco, e ela poderia lutar de alguma forma.

O que mais doía em tudo isso era elas serem amigas. Era Cinthia se importar com ela, com seus desenhos, com seu bem-estar. Era ela ter para si a coisa que Aline mais queria no mundo.

Aline a odiava um pouco por isso, e isso apenas a fazia se sentir suja por dentro.

Ela fechou os olhos e se afundou mais um pouco na carteira. Ouviu a professora de português entrar e dizer algo com a turma, mas não conseguiu entender muito bem o quê. As pessoas continuaram conversando, então não devia ter sido algo importante.

Ela começou a pensar em tudo o que aconteceu. No primeiro dia que se sentiu mal e tentou mudar sua situação, e em como ela só piorou depois disso. Houve momentos em que ela achou que conseguiria. Houve momentos que ela se sentiu feliz por não desenhar e por passar uma aula inteira sem olhar para trás, acreditando cegamente que estava melhorando, estava de alguma forma se tornando uma pessoa melhor, mais independente destas coisas.

Mas ela só caiu mais rápido até o fundo do poço.

“Eu nunca imaginei que eu seria tão patética”, Pensou. “Eu não sou um gato. Sou apenas uma garota boba que só sabe... Sabia desenhar. Como eu posso ser qualquer outra coisa, se eu sempre fui tão pouco? Eu queria saber.”

Ela sentiu uma pontada no peito e mordeu os dentes. Tentou esvaziar a cabeça, mas tudo o que vinha era a imagem de Cinthia sorrindo para ela.

“Eu queria ser diferente. Só isso. Não queria mais ser o que eu sou. Não queria mais ser nada. Queria ser que nem ela.”

E então, aquela voz dentro de sua cabeça respondeu:

“Se você sempre foi nada, então quer dizer que pode ser tudo, Aline.”

“Mas eu não sei mudar. Eu não sei o que de diferente eu posso fazer para conseguir isso.”

“Talvez você não tenha que fazer diferente. Talvez você só tenha que fazer o que sempre fez. Talvez você só tenha que pintar.”


***

A manhã transcorreu sem maiores complicações. Ao acabar a aula, Aline não foi para casa. Pegou um ônibus na direção contrária, indo para o centro. Desceu num ponto em que ela só havia usado duas vezes e seguiu em direção a um salão minúsculo, espremido entre duas lojas de instrumentos. Encarou a porta por um momento, sem ter certeza se ia fazer mesmo fazer isso. Mas antes que pudesse se decidir, a porta se abriu, e a dona do salão apareceu. Ela era uma mulher por volta dos quarenta anos que adorava maquiagem... Talvez até demais. O batom era muito vermelho, o pó era muito branco, a sombra era muito escura. Sua aparência transitava de cômica para assustadora dependendo da hora do dia. Mas independente disso tudo, ela possuía um coração enorme, e Aline sabia que podia contar com ela.

– Boa tarde, você vai querer entrar ou... Aline? – A mulher olhou para os dois lados da rua. – Aonde está a sua mãe?

– Oi, tia. Eu vim sozinha hoje.

– Ela sabe que você veio?

– Bem... Não.

A mulher acendeu um cigarro e pôs as mãos na cintura.

– Faz tempo que vocês não vem me visitar. Aconteceu alguma coisa?

– Não exatamente... É só que...

– ... Sim?

– Eu quero pintar o cabelo.


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