Entre a Íris e o Nanquim escrita por Aline Vataha


Capítulo 1
Capítulo 1




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/637557/chapter/1

Aline chegou da escola. Entrou em seu apartamento com pressa, jogando sua mochila no chão e fechando a porta sem trancar. Correu para o seu quarto, cumprimentando seus gatos que estavam pelo caminho, mas estes a ignoraram.

A garota olhou com orgulho para as paredes de seu quarto. Assim como o resto da casa, estavam repletas de quadros seus, cada um mais colorido que o anterior. Ela pintava desde os nove anos, e desde então, só tinha melhorado.

Fitou sua última criação. Ela havia passado os últimos quadros dias pintando, e estava quase no fim. Era um lobo com as cores do arco-íris, e com certeza ficaria belíssimo ao ser terminado.

Ela se sentou num banco. Havia esperado a manhã inteira para isso. Preparou as tintas na paleta e pegou seu pincel. Molhou a ponta com tinta, apenas o suficiente para um traço longo. Estendeu a mão em direção ao quadro... E parou. Tentou de novo, mas não conseguiu. Olhou para o quadro, e este pareceu olhá-la de volta. Ela franziu o cenho, subitamente confusa com as cores que tinha usado. Era um arco-íris no rabo do lobo, então não tinha como errar. Mas mesmo assim...

Ela virou o quadro. Isso sempre a ajudava a ter uma nova perspectiva das coisas. Conseguiu observar os padrões das cores de maneira melhor. Era fácil. Esticou a mão mais uma vez...

Ela pôs o pincel de lado após passar cinco minutos petrificada. Colocou a paleta em cima de um banco e saiu do quarto, zonza.

Aline foi até a sala. Deitou no sofá, sentindo a cabeça girar. Um de seus gatos foi até ela, deitando na sua barriga. Era laranja como o outono, com rajadas negras ao longo do corpo. Ela acariciou a cabeça do bichano, que ronronou em resposta. Ela tentou sorrir, mas não conseguiu. Fitou o teto, e até mesmo o seu branco parecia errado.

“Qual é o problema, Aline?”

Ela respirou fundo, sentindo um peso no peito. Pensou em coisas felizes, mas pouco ajudaram. Lembrou de como havia sido seu dia na escola, e ela só se sentiu pior.

“Eu acho que não quero mais pintar.”

“Mas você sempre pintou. Por que parar agora?”

“Porque ninguém se importa com o que eu faço.”

Sua visão embaçou. Limpou as lágrimas dos olhos, mas elas não paravam de sair.

“Eu ainda não entendo. “

Ela abraçou o gato e se virou de lado. Ficou em silêncio, assistindo a luz do sol banhar o chão da sala. Aquela cena já havia servido de inspiração um milhão de vezes, mas agora só parecia entristece-la.

“Aline, se você não conversar comigo, eu não vou poder te ajudar.”

“Me deixa.”

“Aline... Por favor...”

Ela mordeu o lábio. Não queria falar, mas as palavras vinham, afiadas como facas, rasgando sua garganta a cada respiração, desesperadas para sair.

“Eu só percebi que... Ninguém liga pra o que eu faço.”

Um de seus gatos apareceu, indo deitar no sol. Seu pelo branco se tornou dourado sob a luz, e por um momento, ela não o reconheceu.

“Eu sempre fico tão... Feliz... Quando eu termino alguma coisa, e eu só quero mostrar... Mas ninguém quer ver... E isso dói.... E não queria mais ter que sentir esse tipo de dor.”

Aline tentou se segurar, mas o choro veio. Cobriu a cabeça com as mãos, e a sensação de estar se escondendo trouxe alívio. Ela se curvou e chorou como uma criança que ela tentava tanto deixar de ser. Alguém maduro não se importaria com isso. Alguém maduro não choraria.

“Aline?”

Seu choro diminuiu depois de um tempo. Ela limpou o rosto, sem paciência até para chorar. Fitou seu gato que estava entre os seus braços, e ele a fitou de volta. De todos os gatos que ela tinha, Garfield era o mais amigável.

- O que foi?

O gato miou. Ela fez carinho no pescoço dele antes de levantar, indo para o banheiro.

Alina abriu a torneira. A água corrente atraiu seus olhos, hipnotizando-a por um momento. Jogou a água no rosto, e o frio a fez estremecer.

“O que foi que te fez mudar?”

“Eu não mudei. Continuo sendo a mesma pessoa.”

“Então o que foi que te fez tomar essa decisão?”

Ela segurou a pia com força, fazendo a ponta de seus dedos ficarem brancos.

“Ele tem uma namorada nova.”

“... Oh.”

Ela fechou a torneira com violência. Se olhou no espelho e teve vontade de soca-lo, mas se conteve no último instante. Irritada, foi até a sala, caindo no sofá e quase esmagando seu gato laranja.

- Eu sou uma idiota – Disse em voz alta, quase gritando. – Idiota, idiota, idiota, idiota, idiota.

Quis espernear, mas isso já era demais. Chorou mais um pouco e olhou para a imensidão branca do teto.

- Eu sou uma idiota por gostar dele – Sussurrou. – Eu não entendo o porquê, mas sempre gostei dele. E isso é horrível.

“Você não pode se culpar por gostar de alguém, Aline.”

- Mas é claro que eu posso. Des do dia em que eu o vi, eu me sinto atraída por ele. Fui apaixonada por mais de um ano por causa daqueles malditos olhos – Aline olhou para uma parede, aonde havia um quadro de dois olhos coloridos. – Meus desenhos melhoraram, mas foi porque eu os fazia para ele. Pensei que se eu colocasse cada coisa que eu sentia numa tela, ele me notaria. Mas nunca foi o bastante. Nunca fui.

Ela esticou a mão para cima, como se tentasse agarrar alguma coisa.

- O tempo passou e o sentimento morreu... Mas ainda tenho ele na minha cabeça quando desenho. Ainda mando o que eu faço, tentando ganhar algum tipo de aprovação. Mas hoje eu percebi o quão isso é patético... E o quão feliz ele está sem mim.

“A namorada?”

- É, a namorada. A vadia é linda. Tão bonita, tão legal, tão... – Ela fechou a mão. - Melhor.

“Aline...”

- Não precisa dizer nada. Eu não quero saber – Ela se abraçou. – Só quero ficar sozinha.

Olhou para o relógio em cima da televisão. Ainda tinha algumas horas até os seus pais chegarem em casa. Observou a luz do sol se mover lentamente conforme o tempo passava, procurando pensar em nada, mas só se lembrando de ver os dois se beijando na escola.

Realmente, era muito patético.

“Você não vai mais pintar?”

“Eu não sei. Sempre fiz isso para agradar alguém. Sempre fiz isso para ficar bonito, para atrair o olhar, para reconfortar... Para ser notada. Se eu não consigo fazer nada com isso, não sei porque eu deva tentar mais.”

“Talvez você devesse pintar alguma coisa diferente.”

Aline franziu o cenho. Olhou para todos os quadros pendurados pela sala, e se perguntou como poderia pintar algo além de arco-íris em animais e pessoas.

Um de seus gatos pulou na sua barriga. O susto e o peso no abdômen a fizeram perder o ar. Garfield, que ainda estava ao seu lado no sofá, saiu correndo. Anara, a gata branca que estava no sol, também saiu de perto, assustada.

- Shi?

O gato negro sempre foi o menos sociável dos seus três gatos. Odiava qualquer tipo de contato, sempre comendo e dormindo sozinho, ocupado demais para prestar atenção com qualquer outra coisa que acontecia pela casa. Aline ficou surpresa com razão, já que o gato nunca demonstrou afeto, e muito menos disposição a ter contato físico.

Shi a encarou. Seus olhos verdes eram frios e penetrantes, e sempre deram calafrios na garota. Era o gato mais velho da casa, com quase dez anos de idade, mas não possuía um único pelo branco sequer. Era comum para ela ter pesadelos quando era menor, principalmente depois que via os olhos do gato brilhando pela madrugada. Era como se a própria escuridão a olhasse.

Aline ficou imóvel, fitando o gato de volta. Este por sua vez começou a lamber casualmente a pata, como se estivesse em cima de algum outro móvel, e não de uma pessoa.

- Deve ser bom ser um gato – Murmurou baixinho. – Não depender de ninguém e fazer o que bem entender quando quiser. Se recusar a interagir com quem você não deseja. Eu invejo você, Shi.

O gato a encarou mais uma vez, fazendo uma expressão diferente. Ela não conseguiu decifrar o que era, mas podia ser um milhão de coisas diferentes. Ele pulou de cima dela para o chão, indo para aonde os outros dois gatos estavam. Estes saíram da frente de Shi, preocupados que pudessem ser agredidos. Garfield se escondeu embaixo da mesa e Anara correu para a cozinha.

Aline pensou no que viu durante muito tempo. O sol já estava quase sumindo quando percebeu o que tinha que fazer. Foi tomada pelo o que pareceu uma descarga elétrica, enchendo-a de motivação.

“Eu já sei o que fazer.”

Voltou para o seu quarto. Faltava pouco tempo para os seus pais voltarem agora, mas não havia problema. Ela ainda teria tempo de limpar qualquer sujeira desnecessária que fizesse.

Aline foi até o armário que guardava as latas de tinta. Estas geralmente eram usadas para pintar paredes. Ela costumava fazer bicos com os outros vizinhos do condomínio, pintando paredes para ganhar algum dinheiro. Até nisso ela tentava ser lembrada. Procurou no fundo do compartimento, sorrindo ao achar a única lata que nunca havia sido aberta.

Ela pegou uma chave de fenda que guardava numa gaveta. Tirou a tampa de tinta com a chave, olhando para o conteúdo da lata com grande interesse. Olhou para o quadro que estava quase completo. Ver todas aquelas cores a deixou incomodada.

“Aline, o que você vai fazer?”

Ela pegou a lata de tinta, segurando-a um pouco atrás da cintura.

- Vou virar um gato.

Ela jogou a tinta negra no quadro. Sentiu raiva, ódio, satisfação e tristeza. A tinta cobriu não apenas a pintura, como também a imagem mental que ela tinha dele. Jogou a tinta mais uma vez, e desta vez o negrume pareceu também encobrir todas as tentativas que ela havia feito para ganhar a atenção dele. As conversas. As vezes que ela o ajudou a estudar. As vezes que ela o ouviu quando ele tinha problemas. As centenas de vezes que ela olhou a imagem dele no celular, esperando uma resposta que ele nunca dava, as conversas que ela mesma iniciava e terminava porque ele nunca tinha tempo para ela.

Que tudo vá para o inferno.

Aline se sentiu bem. As lágrimas ferviam sob o seu rosto vermelho, mas era uma sensação boa, pois sabia que aquela seria a última vez que chorava por causa dele. Suas mãos tremiam um pouco, mas era uma excitação boa. A adrenalina fazia muito bem.

O lobo colorido havia sido engolido pela tinta negra. No lugar dele, uma imagem escura e assustadora havia tomado conta. Parecia um lobo maior, feroz, assustador, muito diferente daquela imagem pacífica comumente usada anteriormente. Também parecia um gato, como também parecia uma dúzia de animais diferentes.

Aline havia entendido o que devia fazer na sua vida. Não ia mais mostrar suas cores para qualquer um. Não ia mostra-las para ninguém. Ao invés disso, ia ter uma cor só sua, baseado no que ela era.

De agora em diante, ela não mais se prender no passado.

De agora em diante, ela seria feliz por ela mesma.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Entre a Íris e o Nanquim" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.