Tesouro escrita por P J Aveck


Capítulo 1
"Diego"




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A brincadeira preferida de Laura era a caça ao tesouro.
Sempre que seus pais lhe deixavam brincar um pouco no playground perto de sua casa, ela se juntava a quem mais que estivesse ali para formar um grupo de destemidos caçadores de riquezas enterradas — e, claro, ela era sempre a líder.
O playground era um lugar cheio de riquezas enterradas. E era como se Laura tivesse um dom para encontra-las. Bastava alguns minutos para que ela encontrasse o lugar certo, e imediatamente ela e seus companheiros começavam a cavar.
Pedras brilhantes, objetos velhos e desgastados pelo tempo, e até mesmo insetos mortos, ao fim do dia, Laura voltava para casa com as unhas sujas da terra escura e os braços cheios de “riquezas”. Seus pais chamavam aquilo tudo de lixo, mas para Laura, a despeito de ela ser apenas uma criança com uma imaginação fértil, aquilo era valioso, pois seja lá o que fosse, havia uma história por trás.
E como alguém que amava histórias tanto quanto as caçadas a tesouros, Laura guardava aquilo com o maior zelo do mundo em um pequeno baú embaixo de sua cama, e toda noite — porque seus pais estavam sempre ocupados demais — ela apanhava um desses tesouros e contava uma história a si mesma para dormir.
Até que num belo dia, Laura encontrou o último, e aquele que viria a se tornar o mais importante de seus tesouros.
Como de costume, depois de insistir até receber a permissão de sua mãe para brincar, a garota saiu pela porta de casa, passou pelo portão e correu até o playground que ficava do outro lado da rua, feliz da vida e já antecipando a grande caçada do dia.
Mas naquela tarde não encontrou nenhum de seus amigos no playground.
Em vez disso, encontrou alguns adultos e até mesmo um policial, reunidos em volta do escorregador, que, por alguma razão, estava amassado e tombado pro lado. Ninguém pareceu notar sua aproximação, então ela se escondeu atrás da gangorra e conseguiu entreouvir as conversas sem ser repreendida:
— Que coisa horrível! — dizia uma mulher. — Esse parquinho nunca foi seguro. Não existe uma lombada sequer na rua, e todo motorista passa feito um louco sem se importar com nada. Era questão de tempo até algum perder o controle e...
— Verdade, menina — disse outra mulher. — Eu vi da sacada de casa quando o maldito veio. Perdeu o controle ali no começo da via e veio desembestado pra cima da calçada. Só por um milagre de Deus foi que as crianças conseguiram sair do caminho a tempo. Os brinquedos tão espalhados por aí ainda, olha só...
— Não vou deixar meu filho voltar aqui enquanto não tomarem medidas pra tornar mais seguro esse bairro — um homem comentou com o policial, que tomava nota de tudo.
— Vou é me mudar daqui! — disse a mulher que falara primeiro. — Não quero que minha filha acabe sendo uma vítima desses malucos. — Os outros adultos assentiram e concordaram. Quando ela começou a se afastar, os adultos se cumprimentaram, cumprimentaram o policial e começaram a se afastar.
— Ei, mocinha, você não pode ficar aqui — disse o policial, surpreendendo Laura, que estava distraída com seus próprios pensamentos.
— Vão fechar o parquinho? — ela perguntou.
O policial tirou o chapéu e coçou a cabeça, parecendo um pouco consternado, até que enfim se agachou diante dela e falou, afagando seu braço:
— Aqui não é seguro, garotinha. O parquinho vai ficar fechado só por um tempo, viu? Agora volte pra sua casa, assista desenhos, também é legal. — O policial sorriu e abriu a boca para falar mais alguma coisa, mas nesse instante o rádio e sua cintura chiou e alguém disse algo, então ele se levantou e se afastou, imediatamente esquecendo de Laura, a desolada.
Laura não era uma chorona, e se orgulhava muito disso, mas aquilo era triste demais para se segurar e antes que ela se desse conta, corriam mais lágrimas pelo seu rosto do que ela capaz de conter. Fechariam o parquinho! O que ela faria agora que não teria mais caçadas ao tesouro? O policial dissera também que seria só por um tempo, mas a mãe de Laura vivia dizendo que daqui a algum tempo ela seria uma mocinha, e Laura já ouvira a avó dizer que mocinhas não podem brincar na terra.
Então isso significava que ela jamais voltaria àquele parquinho para procurar tesouros. Aquela era a última vez. Laura não estava com seus coleguinhas, mas tinha que aproveitar essa única oportunidade. Logo o policial voltaria, e se ela não fosse rápida, não encontraria nada de valor...
Sendo assim, Laura apanhou a pá do baldinho que trouxera consigo e imediatamente começou a procurar um lugar para cavar. E procurou, procurou, e procurou mais, caminhando pelo parquinho deserto debaixo do sol quente da tarde; porém, antes que encontrasse o ponto certo para cavar, ela se obrigou a parar, pois algo meio enterrado no chão chamara a sua atenção.
Uma foto.
Ela se abaixou e apanhou a fotografia suja de poeira, a qual limpou e olhou com atenção. Era uma daquelas fotografias instantâneas, onde um garoto mais velho de cabelos loiros bagunçados, roupas rasgadas e dentes meio tortos sorria alegremente sentado no capô de um carro. Aquilo não parecia muito valioso, mas mesmo assim Laura meteu a fotografia no bolso e continuou a procurar o lugar onde cavaria.
No entanto, o policial voltou mais cedo do que ela esperava. Com medo de levar uma bronca, a pequena Laura recolheu suas coisas e correu de volta para casa, sem, infelizmente, conseguir nenhum grande tesouro. Ela teria que esperar por uma próxima oportunidade...
... que nunca chegaria.
Quando souberam das notícias, os pais de Laura ficaram muito preocupados. Os adultos eram muito confusos, e a garotinha se sentiu tão confusa quanto um adulto quando os pais lhe contaram que se mudariam, pois aquele bairro não era bom — o que era estranho, já que Laura considerava o melhor lugar do mundo.
Já no dia seguinte eles arrumaram as coisas, colocaram tudo num caminhão de mudança e saíram da cidade. Laura ficou triste de ir embora, mas seus pais lhe asseguraram que ela adoraria seu novo lar e seria muito feliz lá.
E, de fato, seu novo lar parecia um lugar legal. Uma grande fazenda com muitos animais e até mesmo uma piscina, e principalmente: muitos lugares para Laura cavar e procurar por tesouros.
Por um mês, ela se sentiu muito satisfeita de poder sair, fazer buracos na terra e aumentar cada dia mais sua coleção de coisas preciosas... mas, eventualmente, aquilo perdeu a graça, porque embora ela tivesse toda a liberdade do mundo, ali não havia nenhuma outra criança com quem Laura pudesse brincar, e ela descobriu que sentia mais saudade de seus amigos do que as caçadas em seu bairro antigo.
Quando a caça ao tesouro deixou de ser algo legal, pouco restou à Laura para fazer naquele lugar isolado. Agora, ela constantemente ficava em seu quarto junto de sua coleção de tesouros. Os mais antigos a lembravam de seus amigos, e ela às vezes se flagrava conversando com os objetos, fingindo que eram seus amigos. Mas aquilo não parecia certo; ela não era amiga de uma pedra velha ou besouros mortos, e nem queria ser. Laura estava crescendo, amadurecendo, e aqueles tesouros, de repente, se tornaram as coisas banais que eram. Tudo tinha perdido o encanto.
Então, numa manhã qualquer, ela reunira todas aquelas tralhas no baú para jogá-las fora. No momento em que ela erguera o baú para levar para fora do quarto e enfim terminar o serviço, algo escorregou de dentro dele, e a garota observou um dos seus tesouros flutuar para longe e voltar rodopiando, aterrissando bem no seu pé.
O menos importante de seus tesouros. A foto do garoto.
Naquela manhã, Laura jogara seus tesouros fora. Aquela era ma espécie de ritual, uma ação simbolizando sua transição, mas, por alguma razão, ela decidira ficar com a foto do garoto.
A vida seguiu seu curso, e viver naquela fazenda isolada não se tornara melhor com o tempo. Laura não tinha amigos; ela sequer ia à escola; seus pais haviam contratado uma professora para lhe ensinar em casa, porque eles moravam muito longe do centro da cidade. Por causa disso, num momento de carência social, a garota procurara o único rosto de que não enjoara ainda naquele lugar: o rosto estático do garoto da foto.
Ela subira para o quarto e trancara a porta atrás de si, sem desejar ser incomodada. A foto do garoto ainda estava guardada no lugar que ela deixara, pelo menos três anos atrás. Ela apanhou a fotografia e se sentou na cama, observando com atenção o moço na foto.
Ele era bonito. Era engraçado como ela só conseguia reparar nisso agora; o ar meio rebelde, o sorriso verdadeiro, mesmo que com dentes tortos, os braços fortes. Laura achou que gostaria de conhece-lo, mas jamais conheceria.
— Qual seu nome? — perguntou ela. Ele não respondeu. É claro que não respondeu. — Tem cara de Diogo. — Concluiu. — É. Você se chama Diogo.
Aquilo era um pouco extremo, mas viver longe das pessoas e estar sempre tão carente também era, e foi isso que levou Laura a procurar Diogo muitas vezes depois.
Eles conversavam sobre muitos assuntos: sobre os desenhos animados, sobre o que a professora particular de Laura ensinava, sobre os animais da fazendo, enfim, sobre tudo. Diogo era a melhor companhia naquele lugar. Todas as noites antes de dormir ela o procurava, e antes de fechar os olhos, cuidadosamente devolvia o amigo a seu esconderijo para que ninguém soubesse.
Os anos continuaram passando, até que finalmente Laura conseguiu convencer os pais a deixa-la ir para a escola como as outras meninas. Era uma sensação nova e gostosa de liberdade; era incrível ver várias pessoas todas as manhãs e ser amiga delas, mas Laura nunca se esquecia de Diego. Eles não conversavam mais tanto assim, mas agora ela o levava consigo na bolsa; era como se ele lhe desse sorte. Às vezes até se permitia imaginar como seria encontrar Diego de verdade...
Laura gostava muito de história. Na oitava série, ela ganhou seu primeiro prêmio por um projeto científico e apesar de ter amigos com quem comemorar, ela devia aquele prêmio à sorte que Diego lhe dava. Se ela ao menos pudesse abraça-lo...
Laura tirava boas notas em tudo, mas história parecia ser o campo onde ela se dava melhor, e ela já parecia saber o que queria fazer da vida. Não parecia ser à toa que, quando criança, ela gostava tanto de desenterrar coisas. Quando saísse da escola, talvez ela voltasse a fazer isso; ela seria uma grande paleontóloga.
— Torça por mim, Diego — Laura disse a ele no dia em que faria a prova do vestibular que mudaria a sua vida. Aquilo era importante para ela, e Diego também, por isso ela carregava a foto dele em seu bolso quando entrou na sala para realizar a prova.
E a torcida de Diego pareceu ter sido realmente boa, pois alguns dias depois Laura recebeu a notícia de que havia ido muito bem no vestibular.
No ano seguinte, Laura foi para a faculdade. Ela estudou muito, trabalhou muito e se esforçou muito ao longo dos quatro anos que durou o curso de paleontologia — numa das faculdades mais prestigiadas do campo no país — e se formou com méritos no final.
Daí em diante, a vida da moça só se tornou mais e mais emocionante. Um pouco depois de se formar, ela foi convidada a participar de um projeto e viajou por vários países do Oriente Médio. Mais tarde, ela foi inserida numa pesquisa importante que envolvia alguns fósseis descobertos em algum lugar da Ásia, onde ela morou por três anos. Quando enfim voltou ao Brasil, Laura conseguiu a vaga de professora num instituto de São Paulo, onde enfim deixou que suas raízes começassem a crescer.
Foi nesse emprego que Laura se apaixonara por um homem chamado Marcos. Marcos também era professor naquele instituto; um homem um pouco mais velho, muito bonito, muito bem humorado, e que a amava demais. Depois de alguns anos namorando, enfim veio o pedido, e Laura e Marcos se casaram em uma linda cerimônia na praia.
Não demorou a Laura engravidar. Ter um filho sempre fora um de seus grandes desejos, e de Marcos também. E como se um não bastasse, Laura dera a luz a gêmeos numa tarde chuvosa de fevereiro. Ela escolhera o nome do garoto — Júlio — enquanto Marcos escolhera o da garota — Annelise.
Os bebês eram a vida daquela casa. Quando atingiram idade suficiente, Laura deixara Júlio e Annelise experimentarem pela primeira vez a emoção de brincar na terra, e parecia algo enterrado no DNA aquela paixão por desenterrar coisas, pois os gêmeos eram as criaturinhas mais felizes da terra quando faziam aquilo, o que fazia Laura se lembrar de sua própria infância e os tesouros que encontrava.
Esse momento de recordação consequentemente a levou a se lembrar de um de seus tesouros. O tesouro menos importante que se tornara seu maior tesouro.
Laura pediu a Marcos que ficasse com os gêmeos enquanto ela fazia algo, e com o OK do marido subiu para o quarto. Suas coisas mais antigas estavam enterradas sob montes e mais montes de muitas outras posses que ela acumulara ao longo do tempo, mas Laura sabia que encontraria, e logo encontrou, guardada entre as páginas de um livro de paleobiologia da época da faculdade, a foto amarelada de Diego.
Olhar para Diego novamente depois de tanto tempo trouxe lágrimas a seus olhos. As coisas estavam muito diferentes agora, mas ela ainda sentia por Diego o mesmo que sentiu há quinze anos. Era um sentimento agridoce, o de reencontrar alguém que fora tão importante em sua vida, mas que ela sabia que jamais encontraria. Diego talvez estivesse tocando sua vida agora também.
— É hora de se despedir, Diego — disse Laura. Ela não era do tipo que chorava, mas agora suas lágrimas molhavam a colha da cama onde ela estava sentada. Diego de bem com aquilo, sorrindo seu sorriso torto, em sua despedida amena e muda.
— Laura? — A moça foi surpreendida por Marcos, que aparecera na porta do quarto. Ela tentou responder, mas as palavras se engasgavam e se atropelavam. Ele sentou-se ao lado dela e a envolveu em seu abraço, e a confortou durante algum tempo antes de perguntar: — Por quê está chorando?
— Lembranças — disse ela com a voz embargada, ainda segurando a fotografia velha nas mãos.
Ao ver a fotografia, Marcos ergueu as sobrancelhas. Laura deu um sorrio molhado.
— Ok, jura que não vai me chamar de louca, Marcos? Tenho algo pra te contar.
— Mas é claro que não, querida. Vá em frente, conte.
Lentamente, Laura estendeu a mão e entregou a fotografia de Diego a Marcos, que a ergueu e passou algum tempo olhando. Ainda enquanto o marido encarava a fotografia com uma expressão enigmática, ela começou a explicar:
— Essa fotografia é um dos tesouros da minha infância. O tesouro menos e mais importante. É o Diego. Ele já foi um amigo, um talismã, e... bem, um amor. Ele foi o meu primeiro amor. Mas eu nunca o conheci...
Marcos continuava a encarar a foto em silêncio, e Laura imaginava que aquilo poderia ter aborrecido o marido. Talvez não fosse algo para se contar, ou o jeito errado de fazê-lo. Ela tinha se deixado levar pela emoção sem pensar nas consequências.
— Marcos, me desculpe — disse ela, aproximando-se mais do marido. — Eu não queria te chatear com isso. Não é nada além de um delírio adolescente, querido. É você quem eu amo. — Ela colocou as mãos no rosto de Marcos e o ergueu, para que ele olhasse para ela, mas não esperava vê-lo sorrindo.
— Essas fotografias instantâneas eram muito populares quando éramos crianças, não é? — Laura ficou menos tensa e sorriu diante do comentário de Marcos. Talvez ele também tivesse suas memórias ligadas à fotos de polaroid. — Meus pais viviam me fotografando, mas eu realmente não gostava muito. Eles faziam isso mais quando bebiam, então eu estava sempre aborrecido. Exceto num dia desses quando eles me levaram na represa e não tomaram nada, eu estava feliz, então isso rendeu uma fotografia bem legal Infelizmente, quando estávamos voltando desse passeio, eles beberam um pouco e ficaram meio embriagados. Meu pai dirigia muito bem, mas conseguiu perder o controle da direção quando estávamos passando por um bairro em algum lugar no centro de São Paulo. O carro bateu e eu me machuquei; minha mãe também se machucou, e muitas coisas que estavam dentro do carro voaram pelos ares. — Com um sorriso ainda mais largo, Marcos depositou a foto de Diego no colo de Laura, que estava chocada demais para reagir. — Inclusive a única foto onde eu estava sorrindo.


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