Reunião do Mundo Condenado escrita por AkireBell


Capítulo 3
A Aliança dos Remanescentes


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo fresquinho.
Espero que gostem, e se gostarem, comentem, por favor.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/636944/chapter/3

Desperto com Mark me cutucando.

Solto um gemido, que fica abafado pelo travesseiro, e rolo pela cama enorme e macia, esticando as pernas e os braços conforme vou reunindo forças para abrir os olhos.

Os raios de luz atingem minha retina de forma dolorosa, mas a medida que eles vão se acostumando com a claridade, meus olhos podem admirar a beleza e o requinte do quarto ao qual me encontro.

O forro de madeira escura brilhante é tão belamente esculpido e organizado que me faz pensar que poderia claramente ser considerado uma obra de arte. E o lustre grande e indubitavelmente de cristal é tão milimetricamente bem feito que não encontro adjetivos para descrever sua beleza.

Nunca estive em um lugar tão chique em toda a minha vida.

Isso me faz pensar se toda essa situação realmente só tem lado negativo.

Sento-me na cama e esfrego os olhos, olhando pelo quarto assim que termino, somente para confirmar que Mark já não está mais no cômodo. A sua cama (que ele havia arrastado de um dos outros quartos para este) já está perfeitamente arrumada e organizada. Concluo que ele quer me dar privacidade, então a aproveito de bom grado.

Desço da cama, calço a sandália havaiana que está debaixo dela e vou até o banheiro. Analiso o ambiente para ver se tem alguma toalha limpa e, quando a encontro, tranco a porta e vou até a ducha.

Regulo a temperatura e aguardo a água esquentar. Enquanto isso, sento em cima do vaso sanitário tampado e fecho os olhos, permitindo que, enfim, todas as lembranças da noite anterior venham a tona.

Nem em meus sonhos mais mirabolantes e fantasiosos eu poderia ter estado preparada para o que aconteceu.

Meu quarto estava trancado enquanto eu me preparava para dormir.

Lembro de escutar os passos da minha mãe ecoarem pelo piso de madeira conforme ela descia, aproximadamente às 23:00 da noite, para olhar algo que estava acontecendo na rua. Recordo, também, de fingir que não havia escutado nada e continuar lendo o livro que tinha em mãos, um exemplar surrado de "A Culpa É Das Estrelas". Havia brigado algumas horas antes com ela e eu ainda estava magoada demais para voltar ao normal; por isso sequer dei ouvidos quando escutei sua voz esbravejando, enquanto voltava para o seu quarto, que um dos pivetes da rua tinha se drogado a tal ponto que acabou mordendo-a quando a viu na porta.

Lá estava o momento: se eu tivesse me tocado no mesmo instante, saído do quarto e ido averiguar a situação dela, eu poderia ter dado um jeito. Poderia ter cortado o membro que foi mordido, ou tê-la matado (caso fosse tarde demais) antes que ela pudesse transformar minha irmã e meu pai.

Mas não.

Eu fui estúpida e orgulhosa.

Fui uma péssima filha.

E acabei perdendo toda a minha família .

Escuto uma batida na porta do banheiro e a voz de Mark logo em seguida, dizendo que vai revistar os quartos a procura de algo para comermos. Grito um breve "tudo bem" e olho para o box do banheiro. O vapor já está tomando conta do cômodo todo.

Levanto, então, do vaso e tiro a camisa branca com que dormi, seguida pelo short preto. Entro debaixo do chuveiro e deixo a água quente lavar o restante das minhas memórias.

Recordo de ter dormido não muito depois daquele momento, e de acordar com batidas bruscas e irregulares na porta do meu quarto. Quando olhei no relógio, eram 4:00 da manhã, então imediatamente soube que havia algo de errado. Fui andando devagar até a porta e encostei o ouvido na madeira, somente para escutar gemidos desconexos e terrivelmente horríveis. Na mesma hora eu fui até meu guarda-roupa, puxei a única mala que eu tinha lá dentro (uma enorme, por sinal), e comecei a jogar as primeiras roupas que encontrei por lá. Peguei dinheiro, todos os meus artigos de higiene, meus inseparáveis livros, meu celular e meu notebook, algumas fotos da família e um mapa do baixo Tocantins. Quando terminei, soube de pronto que havia exagerado, mas não havia como eu me desfazer daquelas coisas. Por isso não hesitei em deixar a mala do jeito que estava e revirar o quarto a procura de uma arma. Eu sabia que havia algo acontecendo, e já desconfiava o que era, mas eu acreditava? Orava com todas as forças para que estivesse errada.

Eu ainda revirava a última gaveta do criado mudo quando notei o grande tripé do meu microfone bem ao meu lado. Sem pensar duas vezes, segurei-o com ambas as mãos e fui até a porta. Destranquei, girei a maçaneta e me preparei para o que quer estivesse do outro lado.

Mas nem em um milhão de anos estava preparada para o que vi.

Se não fosse pelo colar de pingente rosa e pelos cabelos loiros, eu nunca diria que aquela coisa que estava na minha frente era a minha mãe. Seu rosto estava deteriorando, seu nariz já não existia e seus dentes, sempre tão bem cuidados e brancos, estavam incrustados de sangue e rangiam em direção do meu rosto.

Tive que reunir todas as minhas forças para fazer o que fiz logo depois.

Com um giro para o lado, impulsionei a cabeça do tripé com toda a força que tinha diretamente no crânio do que a algumas horas atrás fora a minha mãe.

Sangue putrefato respingou por todos os lados, e não pude impedir-me de vomitar ali mesmo. As lágrimas caiam compulsivamente por meu rosto quando escutei mais um gemido e olhei para o lado, encontrando meu pai completamente transformado.

Desse momento em diante, não lembro de muita coisa, somente de atacá-lo repetidas vezes até ele cair imóvel no chão, e de arrancar a cabeça da minha irmã quando ela tentou me morder enquanto eu lutava para ir para a cozinha.

Quando cheguei na sala onde a minha mãe costurava, peguei algumas tiras de tecido bem resistentes e amarrei nos braços. Desci para a cozinha logo depois (com o tripé na mão e a mala que tinha resgatado do meu quarto), e fui diretamente para o faqueiro, tirando todas as facas que haviam lá e prendendo entre o meu braço e as tiras de tecido.

Respirei fundo e contei até vinte.

Tentei não pensar em nada exceto em sair dali.

Fui a passos largos até a sala de estar e notei, pela primeira vez, que meu poodle toy estava dormindo. Senti uma pontada de dor e remorso pelo que estava prestes a fazer com ele, mas logo me conformei de que não tinha outra opção. Tirei a alça da sua coleira do gancho e fui andando com ele até a porta. Seu rabo balançava alegremente ao meu lado, e lembro que, nesse momento, foi a única vez que senti o peso do preço que eu estava pagando pela minha vida.

Tive que matar quatro seres vivos para salvar a mim mesma.

Quão egoísta isso faz de mim?

Respirei fundo, arrastei a mala até a batente, prendi o tripé debaixo do meu braço e abri a porta.

A primeira coisa que lembro ter me atingido foi o cheiro pungente dos corpos em decomposição. Parecia que tinham depositado todo o conteúdo do lixão ali mesmo, em frente de casa.

Depois veio o barulho.

A cacofonia de sons fantasmagóricos e gemidos roucos que somente os zumbis são capazes de emitir quase me deixaram surda, mas consegui suportar com um pouco de concentração.

E, por último, veio a constatação de que haviam mais zumbis ali do que eu realmente esperava. E, no mesmo instante, me vi pedindo com todas as forças para Deus me ajudar. Meu plano tinha que dar certo, senão me tornaria mais um membro daquele clube medonho em questão de poucas horas.

Respirando pesadamente, peguei Marley do chão, dei um último abraço apertado em seu corpo pequeno e peludo, depositei um beijo cálido em seu focinho e tirei sua coleira. Conhecia meu cachorro mais que qualquer pessoa, por isso não me surpreendi quando, no momento em que o pus no chão, ele saiu correndo apressadamente pela rua, aproveitando o gosto da sua sonhada e curta liberdade.

E os zumbis, como eu havia presumido, foram todos atrás do barulhento e veloz cachorrinho que corria apressado pela rua.

Não pensei duas vezes antes de pegar minha mala, fechar a porta de casa com um baque e sair correndo pela calçada, tentando a todo custo chegar no cruzamento que me levaria à liberdade.

Depois disso, Mark me encontrou e me trouxe pra cá, onde estou sendo incrivelmente patética, chorando que nem criança por algo que não tem mais volta.

O barulho do chuveiro martela em meus ouvidos e, quando volto a realidade, não sei mais o que são lágrimas e o que são gotas de água.

Sinto meu olhos inchados, minha boca seca demais e meu corpo fraco, fraco, tão fraco.

O que sou eu, afinal?

O que me tornei?

Já virei um monstro?

Que tipo de ser humano mata outras pessoas e consegue dormir em paz?

Fico longos minutos martelando, flagelando minha mente em busca da resposta, até que, repentinamente, enquanto estou lavando os resquícios de sabão do meu corpo, ela chega em minha cabeça de forma tão clara quanto um pedaço de cristal;

Eu me tornei, concluo, apenas uma casca do que já fui.

***

Saio do banho no momento em que Mark chega com a comida, e ainda estou secando meus cabelos molhados quando chego ao seu lado e tento espiar o que ele conseguiu trazer.

– Lasanha? - questiono quando sinto o cheiro inconfundível do queijo mussarela. Ele solta um sorriso de canto e estende uma mão em minha direção, impedindo-me de chegar mais perto.

– Deixa eu terminar de arrumar os pratos primeiro. - ele fala em tom brincalhão. Reviro os olhos e sento na cama em que ele dormiu.

Hoje de madrugada, quando chegamos, ambos cansados e extremamente abalados, concordamos que seria melhor ficarmos no mesmo quarto, já que nenhum dos dois estava bem o suficiente para ficar sozinho novamente. Então ele foi até o quarto vizinho, trouxe a cama que havia lá e depositou no outro canto deste quarto.

Adimirei ele um pouco mais depois daquilo.

– Prontinho - diz enquanto se vira em minha direção, com um prato em cada mão. - Aqui o seu - entrega-me um e se senta ao meu lado. Ele estende a colher para dar a primeira mordida e solta um murmurio de prazer. - Estava morrendo de fome - acrescenta um pouco sem graça. Sorrio para ele e uso a colher para pegar uma quantidade considerável de lasanha. Ponho na boca e imito o som que ele soltou há momentos. Escuto-o gargalhar. É um som rico e agradável aos ouvidos, e acabo soltando um sorriso, orgulhosa por ter conseguido fazê-lo rir.

Depois disso, comemos em silêncio, cada um aparentemente perdido em seus próprios pensamentos. Depois vamos para a "cozinha" pequena e lavamos os pratos.

Mark fica estranhamente calado o tempo todo, e descubro o porquê assim que chegamos na cama e nos sentamos.

– Teremos que sair hoje - ele diz subitamente. Viro-me em sua direção e arqueio uma sobrancelha.

– Por quê? - minha voz sai um tanto tremida, assustada, e não deixo de repreender-me por isso. Não quero parecer fraca, principalmente na frente dele, mas ainda não estou preparada para sair e encarar o que a cidade se tornou.

– Procurei pelo hotel todo e não achei muitos mantimentos. - e o que ele diz - Tudo é perecível e já estava praticamente estragado quando encontrei. Somente essa lasanha, alguns pacotes de macarrão, arroz e frangos empanados estavam intactos - ele suspira - Então não vejo outra opção. E eu estou sem combustível. Quero ir num posto antes que algum outro sobrevivente pegue tudo. - a frustração em sua voz é visível. Fico alguns segundos ponderando entre fazer ou não uma pergunta que está martelando em minha mente, e acabo optando por seguir minha intuição.

– Você... - faço uma pausa. - Você estava sozinho na cidade quando isso aconteceu? - minha voz sai baixa e receosa. Escuto ele sugar o ar com força e vejo-o focar o olhar em algum ponto qualquer da parede.

Alguns segundos se passam antes dele responder.

– Não... - sua voz se quebra - Estava com o meu pai aqui - ele me olha - Ele estava fazendo a tese de PhD sobre esse vírus. Ele... - seu rosto se franze - Ele estava no hospital quando tudo isso começou. Não tive notícia nenhuma dele até o momento. - vejo o rosto de Mark franzir mediante milhares de distintas emoções: tristeza, desamparo, raiva, saudade... E a pior de todas: abandono.

Perco o ar quando noto que não sou a única a sofrer com isso tudo.

E fico horrorizada por perceber isso só agora.

Sou realmente egoísta.

– Você acha que ele está morto? - pergunto depois de alguns segundos. Mark me olha, realmente me olha, e eu permito a mim mesma ficar calada pelo resto do dia.

Vejo tanto sofrimento em seus olhos que me sinto uma intrusa por estar sequer notando isso.

– Eu só vou acreditar que ele está morto quando tiver alguma prova. Enquanto isso? Só faço rezar para que ele esteja bem. - ele se levanta logo depois de dizer isso e anda até o guarda-roupa. Pega dois casacos lá de dentro, um maior e um menor, sendo que um deles ele joga pra mim e o outro ele coloca em sim mesmo. - Temos que ir antes que escureça por completo - ele diz - A noite é traiçoeira demais para nos arriscarmos nela. - e ele estende a mão para mim, me pega, abre a porta e me leva, junto dele, até o pesadelo do qual lutamos tanto para fugir.

E eu me vejo pedido a Deus, por favor

Por favor

Por favor

Só espero que fiquemos bem.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Espero que gostem :333333



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Reunião do Mundo Condenado" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.