O Negrume escrita por Aryalie


Capítulo 1
O Anjo dá Boas Vindas


Notas iniciais do capítulo

Nova fic original, espero que gostem!!



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   Meu humor muda constantemente. Mas não é o jeito como penso sobre algo que muda, e sim o objeto a que meus pensamentos referem-se. Já ouvi dizer que cada um mora em seu próprio mundo, e que nós escolhemos o jeito como algo nos afeta. Tudo o que acontecer pode receber uma resposta boa ou ruim. Nós decidimos se queremos chorar ou sorrir.

        Devo ter lido algo semelhante em algum lugar.

        Claro que eu não poderia ter chegado a essa conclusão sozinha, até porque não posso dizer que concordo inteiramente com ela. Obviamente não é assim que funciona quando as coisas mudam a cada segundo.

       Meu nome é Wendy, e acho que há algo de errado com a minha vida. Ou talvez eu que seja errada. Afinal, existe alguém inteiramente certo? Talvez seja injusto atribuir a culpa dos últimos acontecimentos a uma única pessoa. Seria difícil de suportar.

       A paisagem do lado de fora da janela do carro era deprimente. O asfalto cedera há muito tempo a uma precária estrada de terra, ladeada por terrenos vazios, onde havia apenas mato e algumas poucas árvores. Eu tentava em vão esquentar minhas mãos geladas. Eu só queria poder ficar sozinha. Estava cansada de fingir que estava feliz.

      Eu estava no banco de trás do carro de meu pai, apertada entre malas e um bebê chorando. No motorista, meu pai, e ao seu lado, minha irmã mais velha, Annika. Depois de todas as mudanças, ali estava mais uma, e uma que poderia muito bem ter sido evitada. Eu gostaria de ter evitado a morte da mamãe, ou evitado que Julian partisse, deixando Annika com o pequeno Harry. Mas aquela mudança poderia muito bem ter sido evitada. Vila do Sul não nos ajudaria em nada. Papai resolveu que seria melhor mudar tudo de vez. Não sei se compreendi sua linha de raciocínio.

       Com os últimos acontecimentos eu me sentia bem solitária. O pequeno Harry era meu único confidente, mas chorava a maior parte do tempo. Sem dúvidas não era o melhor confidente, mas era o que eu tinha. Pelo menos ele ainda não sabia falar.

       Meu celular ficou subitamente sem sinal. Era o fim de todo o meu contato com minha antiga vida. Uma mudança radical, e para pior. Eu reclamava da falta de amigos na cidade, mas agora não me restava absolutamente nenhum.

       Eu gostaria de poder confortar Annika. Sempre foi desconfiada, mas acreditou em Julian. Acreditou que ele seria o amor de toda a sua vida. Acreditou que a paixão de ambos duraria para sempre. Mas ser pai antes mesmo de terminar os estudos não fazia parte do sonho de ninguém, e Julian desapareceu ao receber a notícia de que o pequeno Harry estava a caminho.

         Nós nos mudaríamos para uma cidadezinha que nem tinha tamanho para ser chamada de cidadezinha. Eram apenas algumas casas espalhadas no meio do mato, algumas a quilômetros das outras. Esse era o cenário paradisíaco onde eu passaria meus próximos dias, chamada de Vila do Sul. Na verdade, o nome fazia sentido, já que eu nunca estivera tanto ao sul. E o clima só esfriava.

         A estrada de terra e pedras era repleta de buracos. Harry ficou tão surpreso com o movimento violento que seu choro cessou, para meu alívio. O carro balançava muito, e não demorou para meu estômago reclamar.

        —Pai... —chamei, sobre os ruídos do carro sobre o terreno irregular e as malas se chocando no porta malas.

        — Só faltam alguns quilômetros. Tenho certeza de que irá gostar. — O velho Jaxson continuava insistindo em ser positivo. Papai não sabia, mas eu já o ouvira chorando por trás da porta. Annika também já vira dias melhores.

        —Pode parar um pouco? —peço baixinho —Meu estômago está reclamando...

        Por coincidência ou intervenção do destino, um pequeno chalé surgiu depois de uma curva fechada. Parecia um dia ter sido uma lanchonete, julgando pelo toldo amarelo encardido e uma placa grande de madeira que parecia um dia ter anunciado o nome do lugar, mas alguém a havia pintado de preto por cima. Paramos ao lado de um Chevrolet muito velho e eu coloquei tudo para fora assim que toquei meus pés no chão. Um gato malhado olhou para mim e soltou um miado longo e agudo que arrepiou minha espinha.

      O gato estava magro, e no lugar do olho direito havia uma antiga cicatriz. Mostrou seus dentes em ameaça para mim, então saltitou de volta para onde quer que ele vivesse.

      “Ok, estamos começando bem” pensei com amargura.

      —Vamos entrar e comer alguma coisa. Faz tempo que estamos na estrada, e assim podemos conhecer a vizinhança. —foi a ideia do meu pai.

     As portas duplas do estabelecimento abriram com um leve empurrão, e revelaram um interior mal iluminado e com cheiro de mofo.

     —A vigilância sanitária aprova isso? —Eu pergunto e recebo um beliscão de minha irmã, que finalmente havia feito a bebê calar a boca.

    —Deveríamos entrar? Não tenho certeza, mas talvez os proprietários não estejam aqui... —comentou Annika

    —Vou dar a volta. —Comuniquei

    Meus tênis faziam um ruído de sucção engraçado no barro que cercava a lanchonete. A garoa que caía antes estava começando a engrossar, e eu sentia um pouco de frio. As paredes de madeira da casa estavam começando a apodrecer com a umidade. Um pequeno córrego passava a leste da entrada principal, e provavelmente inundaria aquele lugar no verão, quando as chuvas seriam mais intensas.

    Ouvi algo metálico caindo no chão e me virei depressa com o coração á mil. O dia nublado contribuía para tornar a atmosfera ainda mais sombria. Eu não ficaria tão surpresa se um assassino em série ou um monstro do pântano se erguesse de seu esconderijo para me atacar naquele momento.

    Por sorte era apenas o gato malhado que me seguira, e derrubara uma lata velha de tinta no chão. A lata estava vazia, se não por uma moedinha de dez centavos, que enfiei no bolso. O gato se esfregava em minhas pernas pedindo atenção. Afaguei entre suas orelhas.

   —O gato sabe quando alguém tem más intenções. —disse uma mulher idosa que eu não havia notado antes, colhendo lençóis do varal atrás da lanchonete. —Ele me diz que apesar de ser uma ladrazinha posso confiar em você. Não há muitos em que se possa confiar por aqui.

   “Também não ficaria surpresa se fosse uma bruxa dos pântanos” penso, rindo internamente de como aquela mulher parecia realmente se parecia com a figura popular de bruxa.

    Fiquei confusa por um instante, e então enfiei a mão no bolso e estendi a moedinha para a senhora.

     —Compre uma bala com ela, menina. Dez centavos não me farão diferença. — ela diz com um suspiro, como se ouvisse meus pensamentos e houvesse se magoado.

     —Meu nome é Wendy. A senhora é ...? — me apresento

     —Tia Lia. O que alguém tão jovem faz por aqui? —perguntou— Não há nada nessa região para você. E lembre-se... —ela se cala repentinamente. Espero alguns segundos, mas ela não dá sinal de que vai continuar.

     —Meu pai e minha irmã estão lá na frente... – prossigo, com medo do silêncio –Estamos de mudança. Pensávamos em comprar sanduíches... 

     —A lanchonete não funciona há muito tempo, mas vou ver o que posso fazer por uma viajante tão simpática. Essa região deixa as pessoas amargas. A vida não é fácil por aqui.

     Suas rugas realmente denunciavam que na maior parte do tempo sua expressão era de amargura. Mas não se deve julgar alguém sem conhecer seu passado.

     Tia Lia me acompanhou até a frente da casa, onde meu pai e Annika esperavam. Ela então para em frente à minha irmã, e seus olhos parecem ter perdido o foco.

      —Fique longe da janela... Sempre bem longe das janelas. Tranque tudo e nunca durma perto da janela. Á noite...Fique longe da janela.

      A mulher repetia as palavras de forma doentia e sem sentido. Eu e Annika nos entreolhamos e um arrepio percorreu meu corpo. Percebi imediatamente que aquela mulher não estava em seu melhor estado de sanidade mental.

      —Acho melhor continuarmos...  Já estamos quase em casa. — papai disse e ninguém discordou.

      Seguimos a estrada de terra irregular por mais alguns quilômetros até chegarmos à casa. Era uma casa bem grande de madeira, e aposto que teria um valor alto se fosse reformada e estivesse dentro da cidade. Em sua entrada havia um pátio de cimento que estava tomado pelo capim. Exatamente no meio do círculo de cimento se erguia uma imensa fonte. Uma estátua de um anjo com as asas abertas com um jarro em suas mãos. Era enorme, com uns três metros de altura.      

       Papai estacionou o carro bem ao lado da fonte. O bebê acorda com a freada um pouco brusca e volta a chorar. Coloco minha mochila nos ombros e saio do carro. Tudo parece ter um clima meio sombrio, mas eu gosto disso. A casa é grande e vou ter muita coisa para explorar. Talvez eu consiga me distrair um pouco e esquecer tudo o que eu deixei para trás.

       —Me ajude com as malas, Annika! — meu pai pede —Wendy, pegue as chaves da casa no porta-luvas e destranque-a.

       Eu o obedeço. A chave da casa é estranha. Grande e antiga, em formato de cabeça de leão com detalhes espiralados. Destranco e empurro com um pouco de dificuldade as pesadas portas de carvalho. Poeira se levanta com o movimento repentino de ar e eu inspiro toda aquela sujeira. Sinto o que vai acontecer em seguida. Crise de Asma.

        Sinto um aperto no peito e uma falta de ar repentina. Penso que nada vai acontecer, mas as bordas de minha visão começam a escurecer, até que apago completamente.


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Notas finais do capítulo

E aí, o que acharam? Devo continuar??



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