Inquietos - Jena M. Savítch escrita por Jena Malone


Capítulo 1
Capítulo 1 - Os Funerais




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As vezes eu gostava de pensar em como é estar morto, em como tudo seria mais fácil se eu estivesse morto, em como seria legal ter o contorno do meu corpo feito a giz no asfalto frio e melancólico e o quão surreal seria ver a reação das pessoas que por ali passariam e veriam o meu contorno e pensariam em coisas como “coitadinho” ou “Deus o tenha” e o mais esplêndido seria ver as suas expressões únicas de dó e de dor por alguém que nem ao menos conheciam.

Na verdade não era só as vezes que eu pensava nisso, era todo dia, todas as manhãs quando eu me levantava e entrava no meu habitual ônibus das 10h e ia até o cemitério de Louisville, até que em uma dessas manhãs fui até a cerimonia de Chris e sentado em uma das últimas cadeiras ouvindo o discurso de seu irmão mais velho, que agradecia-nos por termos vindo e que significa muito para eles e também para o seu irmão, que onde quer que ele estivesse com certeza ele ficaria muito feliz por ver o tanto de gente que estava ali. Ele dizia o quanto Chris era feliz, e como ele era um comediante nato e quem o conhecia já tinha ouvido suas piadas clássicas, como “quantas pessoas cabem num elevador? Num carro?” e que o desfecho era sempre o mesmo.

— Uma, com um cabeção enorme! — todas as pessoas que estavam ali disseram em um uníssono.

Eu fiquei pensando por um momento e percebi que fazia sentido a piada de Chris, a causa de sua morte foi nada menos do que câncer e ele tinha Hidrocefalia, irônico não? Fiquei observando todas aquelas pessoas, e me perguntando se elas também pensavam que um dia alguém estaria falando coisas bonitas sobre elas ou até mesmo se alguém iria em sua cerimônia lhe dar o último adeus e se Chris sabia que morreria assim. Enquanto o irmão de Chris continuava com seu discurso falando sobre o livro secreto de piadas do Chris que ele escondia e que antes de morrer ele o chamou para contar algo e disse “Eddie, não tinha nenhum livro com essas piadas”. “Eu as inventava. Não queria que você ficasse procurando por ele”, eu observei um chapéu marrom de camurça que ao se virar para ajeitar seu sobretudo verde musgo, sorriu em minha direção, sua expressão era suave, não era de tristeza nem de dó, era uma expressão de tranquilidade, a última expressão que alguém teria em uma cerimônia como essas, era como se ela já tivesse passado por isso, não com alguém próximo ou um familiar mas com ela mesma.

Assim que a cerimonia terminou, fui até a mesa de lanches, mas não consegui comer nada, eu nunca conseguia comer nada é tudo tão estranho, comer no mesmo lugar onde uma pessoa morta que eu não conhecia está é tudo muito complexo, ninguém nunca comia ou estavam muito abalados ou era porque nunca tinha nada de bom nessas mesas. Peguei algumas bolachas e estava empilhando-as quando fui surpreendido por uma voz feminina e suave.

— Gostei do castelo de bolachas — disse ela mastigando algumas.

— A gente se conhece? — eu disse assustado olhando-a.

Ela olhou em volta e depois olhou para mim e disse ainda mastigando a bolacha.

— Alguém aqui te conhece?

Não estava nos planos alguém falar comigo, isso nunca tinha acontecido e eu não sabia como lidar com a situação, intrigado me virei de costas para ela e sai andando em direção a porta de saída mais próxima dali, pensando que seria fácil escapar mas ela não desistiu e continuou me seguindo.

— Ei, espera!

Continuei andando sem olhar para trás e sem dar importância por ela ter me pedido para esperar, eu tinha que me livrar dela, a última coisa que queria era ser notado naquele lugar e não seria fácil com uma maluca de chapéu e sobretudo verde musgo me seguindo.

— O terno te entregou — disse ela apressando os passos para me acompanhar, pude ouvir o Toc toc dos seus sapatos em um ritmo mais rápido atrás de mim, aquilo me deixou mais nervoso ainda.

— Não se usa mais roupa preta nessas ocasiões.

— Por que não? — pergunto me virando para ficar de frente com ela, quem era ela para me dizer o que se usava quando estava de luto.

— Porque é deprimente! — ela disse com um tom meio envergonhado e colocando as mãos nos bolsos do sobretudo e olhando para os pés e depois para mim. ­— Hoje, todos gostam de usar cores vivas.

— Não tenho nada em cores vivas — me virei passando pela porta de vidro que dava para a saída.

— Não vou contar que veio de penetra no funeral – ela insistiu

— Que bom, sinto muito pela sua perda — sai.

Por sorte, parecia que ela tinha desistido de me pressionar, olhei para trás para me certificar se ela realmente tinha desistido, e fiquei aliviado por não ver aquele chapéu marrom me seguindo.

Fui para outro recinto onde estava acontecendo a cerimonia de uma garotinha, Vicki seu nome, olhei-a por um breve momento dentro do caixão, ela era loira com um rosto meio gorducho e pálido, parecia que estava dormindo, olhei para todo aquele pessoal que ali estavam sentados, vi uma mulher não muito velha, mãe da Vicki pensei, elas se pareciam muito até seus cabelos loiros. O padre estava falando algumas palavras de conforto e da bíblia, alguma coisa como Eclesiastes: “Lança teu pão sobre as aguas, porque depois de muitos dias o acharás.” E depois falou que isso o lembrava sobre um esquilinho de um dos poemas de Vicki, um poema muito bonito por sinal, o gravei na mente e mais tarde ao chegar em casa o escrevi no papel.

Eis o poema: “A cor das folhas está mudando, mudando.

Amarelo, laranja, vermelho

As cores da morte

Como o esquilo sem a sua noz, sem a sua mãe...

Eu estou sozinha.

Como um cervo anseia por riachos,

Minha alma anseia por ti, Deus

Minha alma anseia por ti”.

Eu não conhecia a garotinha que fez esse poema, nem a sua mãe, seu pai, sua família, ninguém dali, mas de uma coisa eu sabia, a mesma dor que eu sinto, todos eles estão sentindo com a mesma intensidade, talvez um dia, essa intensidade irá abaixar e outra garotinha ou um garotinho poderá fazer com que isso aconteça naquela família, eles serão felizes de novo e uma intensidade maior de alegria irá cair entre eles, e aquele dia, aqueles choros, por aquela garotinha irão acabar e não ser lembrados nem sentidos com a mesma intensidade, não sei, talvez isso não aconteça e eles viverão iguais a mim, terão que viver com a angustia e a dor os perseguindo por todos os cantos.

Eu estou sozinho agora, como o esquilo de Vicky, estamos sem as nossas nozes e sem as nossas mães, estamos sozinhos e ansiando por algo que nos dê conforto e tranquilidade, não tenho muitos amigos, na verdade, acho que só tenho o Hiroshi como amigo, mas não me importo, não encontraria melhor companhia, é um pouco difícil se acostumar com a ideia de que ele é um fantasma, no começo me senti assim, cheguei a pensar até que estava louco, mas era minha única saída.

Sai discretamente da cerimonia de Vicky, assim que um homem provavelmente um segurança começou a desconfiar de mim, voltei para a casa as seis, e depois do jantar, em uma partida de batalha naval com Hiroshi, decidi contar-lhe o que tinha acontecido naquela tarde.

— Não é tão sério. — foi a resposta de Hiroshi. — C-8.

— Atingido! — Movi algumas peças no tabuleiro — Como não? Estou ferrado, graças a ela, vão ficar de olho em mim agora. Vou ter que tomar cuidado. — disse. — F-5.

— Água!

— Cadê a droga desse seu navio, Hiroshi?!

— Você deveria parar de frequentar funerais de desconhecidos. — Hiroshi disse - me olhando nos olhos por um breve momento. — C-6.

— Atingido! — Falei, ignorando totalmente o que ele tinha sugerido sobre parar de ir nos funerais, não dei importância, apesar do Hiroshi ser meu melhor amigo e tentar me ajudar, quase nunca dou ouvidos a ele. — A-7?

— Água! C-9.

— É impressionante, como é que você sempre ganha?

Era um mistério, Hiroshi nunca me dizia como ele conseguia ganhar sempre, eu me sentia inútil por perder para um fantasma depois de tantos anos, nunca ganhei nenhuma partida sequer, mas não desisto, e não vou, acredito que um dia irei ganhar e assim como no jogo, espero ganhar algo de útil na vida também além de angustia, se é que isso seja possível no estado que estou.

Acordei as 9 horas no dia seguinte, uma hora mais cedo do que o habitual, pensei em passar em um dos meus lugares preferidos antes de ir ao cemitério, era nos fundos de um escola abandonada, onde tinha brinquedos velhos e enferrujados e uma quadra com um desenho de amarelinha desbotado no chão, eu gostava de ir lá para desenhar o meu próprio corpo no chão gelado e duro, era um dia ensolarado porem frio, como todas as manhãs de verão por aqui, fui caminhando até a entrada do estacionamento onde ocorria os funerais até que uma voz percorreu o lugar vazio e me pegou de surpresa, bem atrás de mim.

— Decidi experimentar — a voz que não me era estranha disse, eu me virei para olha-la e ela continuou. — Não é minha melhor cor, é um vestido antigo da mamãe, está meio grande mas vai servir, né?

Fiquei observando aquela garota, e lá estava ela, de novo, tentando arruinar meu dia, agora com um vestido preto enorme e um chapéu que parecia mais para o Halloween do que para um velório.

— É impressão minha ou você está me seguindo? — me virei e continuei andando.

— Não, achei que te encontraria aqui. — ela disse caminhando ao meu lado.

— Bom, me encontrou.

— Posso te acompanhar? — ela suplicou.

— Não.

— E por que não? — ela disse, parando em minha frente.

— Porque não pode.

Ela olhou para os lados e me fitou por um breve momento e em questão de segundos ela estava com seus braços envolta do meu pescoço e forjando um choro melancólico seguidos por soluços que durou exatamente sete segundos até eu afasta-la cuidadosamente.

Eu não tinha a menor ideia de quais seriam as suas intenções, mas eu já estava ficando nervoso, eu só queria ficar sozinho, não precisava de companhia, nunca precisei.

— Não preciso de ajuda, ouviu? — eu disse, me segurando para não gritar com ela.

— Por quê? — ela insistiu.

— Não há nada com que me ajudar.

— Posso só...

— Me deixa em paz. — me virei e sai dali o mais rápido possível, deixei – a falando sozinha, afinal, ela não tinha com que me ajudar mesmo, só atrapalhar, e eu não estava precisando disso, não agora.

Posso ter sido um pouco arrogante e ignorante, mas foi preciso, imagine o estrago que ela faria no meu dia, na minha vida se eu a deixasse me ajudar em seja lá o que for.

Já um pouco longe, ouvi quando ela gritou:

— Tá bom, eu me chamo Annabel.

Como o biscoito Mabel, pensei, e nunca mais me esqueci de seu nome.

Ela não me seguiu, me surpreendi por ela ter chegado no limite, me parecia tão insistente. Entrei no primeiro lote, um homem estava sendo velado, eu o estava olhando bem de perto quando uma mão tocou em meu ombro, olhei para trás e era o mesmo homem do outro dia, o suposto segurança, não sei ao certo o que ele é.

— Posso falar com você? – ele disse.

— Claro – falei sem demonstrar nenhuma reação, como se tudo estivesse completamente normal

Enquanto ele seguia para um corredor, ao qual eu deveria seguir também e era o que não pretendia fazer, me virei e fui pelo outro lado apressado, quase correndo, quando parei para pensar em qual lado eu iria, o homem apareceu bem em minha frente.

— Não sei o que pretende aqui, filho... — ele disse me olhando fixamente — mas é o 4º funeral em que o vejo este mês. Ou é o garoto mais azarado do mundo ou é um moleque desrespeitoso. Se o vir de novo, aviso a policia ou...

— Marcus? – uma voz feminina disse, a mesma voz, aquela voz – Marcus, estava te procurando, venha conhecer minha prima. Falei de você para ela. – me virei e era Annabel.

Ela estava encenando direitinho, e o homem caindo em sua farsa como uma mosca em uma teia de aranha, fiquei admirando aquele teatrinho como se estivesse realmente em uma peça barata, aquelas de escola em que somos obrigados a assistir.

— Agradeço pelo funeral do meu tio. – disse ela ao homem – Ele era um grande homem. Ficamos todos arrasados. Este é o meu namorado, Marcus.

— Marcus. Marcus Daly – eu disse entrando em cena.

— Muito prazer Marcus – o homem agora confuso disse.

— O prazer é todo seu, aposto – eu disse com uma vontade enorme de rir.

— Lamento muito a sua perda – disse o homem.

— Obrigada – Annabel respondeu. – a minha tia está sofrendo muito, então não queremos deixa-la sozinha.

— É eu agradeço cara – eu disse.

— Vem – Annabel disse me puxando.

Saímos correndo pelos corredores, saímos e fomos até o estacionamento, sentei para recuperar o folego enquanto observava Annabel tentando se equilibrar em cima de um murinho, eu disse a ela que deveria aprender como se lamentava se quisesse me acompanhar aos funerais, pois não foi muito convincente encenando, ela riu e começou com seus lamentos falsos.

— Outra vez – eu disse.

— “Lamento muito a sua perda” – ela disse tentando fazer voz de convincente.

— Você vai pegar o jeito. – eu encorajei ela.

— Diz outra – ela me pediu.

— “Sinto muito pela sua perda. Ele fará falta” – recitei com voz de tristeza, e com a experiência que eu tinha.

— “ Vamos rezar por vocês nessa hora difícil.” – ela continuou.

— Formal demais. – eu disse.

— É mas eu gosto – ela sorriu.

— Não me chamo Marcus, você sabe.

— Eu imaginava. – ela continuava tentando se equilibrar para lá e para cá no murinho – Não sei por que o escolhi, você não tem cara de Marcus.

— Eu me chamo Enoch – disse ao me levantar e continuar a observa-la.

— Bem melhor. Sou Annabel, mas já te disse isso.

Ela parou e se sentou, tirou o chapéu e pude ver finalmente seus cabelos, eram de um loiro escuro, curto como o meu, bem radical ter o cabelo curto na idade dela. Todas as meninas que conheci, bom não foram muitas mas de todas elas, de todas que vejo, sempre com os cabelos longos e cheios, mas o dela era assim, nada de mais, combinava com ela e a deixava bonita.

Bom, eu não queria pensar nela desse jeito, eu nem queria pensar nela na verdade, mas era inevitável, ela era bonita e eu não podia negar, a pele dela era de um pêssego perfeito, eu não sou de demonstrar o que sinto, guardo pra mim porque acho que assim que deve ser, sou estranho, sou um nada, ninguém se importa.

Ficou um silencio constrangedor por uns três minutos e me senti obrigado a falar alguma coisa.

— Você conhecia o garoto com câncer? – perguntei.

— Quê? O garoto do outro funeral? Ah, sim, sou voluntaria no hospital, na ala Webber.

— É onde fica os jovens cancerosos?

— “Jovens com câncer”. – ela me corrigiu.

— Deprimente. – eu disse sentando novamente.

— Não acho – ela disse, puxando a bolsa para pegar um livro.

— O que está lendo?

— Uma nova biografia do Darwin.

— O cara da evolução?

— É. É, tipo, meu favorito. – ela disse com orgulho.

— Por quê?

— “Por quê”? Porque é o pai da melhor ideia que uma pessoa já teve. Sem falar a sua genialidade... para entender a natureza revelada diante dele. E talvez por ser a mente cientifica mais importante... que jamais existiu ou existirá na historia da historia.

— Enquanto ao Einstein? – disse eu, já sem argumentos para arrebatar.

— O que tem ele?

— Tudo bem. Bom vou pra casa e tal. – disse já me levantando, o sol já estava se pondo quando me dei conta de que a conversa tinha chegado em um ponto que eu não queria continuar por falta de conhecimento.

— Tá, eu também.

— Valeu por ter me ajudado. – dei um pulo sobre o murinho onde ela estava logo antes se equilibrando e caminhei até a rua

— Quando quiser. – escutei ela dizer.

Peguei o ônibus para casa, o dia já estava acabando, passou tão rápido que nem tive tempo para brigar com meus pensamentos como eu fazia todos os dias. Já era noite, eu sorri caminhando na rua escura, sorri porque o dia foi insano, diferente ou melhor extraordinário. Pela primeira vez em anos eu não quis estar morto, não agora, não naquele momento. Não.


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