Herdeiros escrita por ColorwoodGirl


Capítulo 3
Capítulo 2 - 2015 | Parte 2




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Já era quase 20h quando Gael finalmente chamou as filhas. Haviam chegado em casa há horas, mas ele ainda pensava no que falar. Talvez porque o assunto Fábrica fosse tão difícil para ele.

Seu pai nunca havia superado o fechamento de seu “sonho”, assim como a morte de Emília. Sua mãe costumava dizer que, se Emília não tivesse se casado com o tal professor, Marcos nunca teria olhado para outra mulher. Honestamente, não duvidava que ela estivesse falando a verdade.

Esse era provavelmente o motivo maior da implicância do pai em relação a ele querer ser lutador. Ver o filho ter seu próprio sonho, diferente do dele, era doloroso; ver o filho conseguir realizar esse sonho quando o seu havia sido tirado dele, era ainda pior.

“Paizinho, você está calado até demais. O que o dr. Silveira te disse?” Perguntou Bianca, enquanto as duas se sentaram na sala.

“Como você sabe que ele me disse algo?”

“Nós vimos ele falando com você e saindo. E depois disso você ficou ainda mais calado. O que esse cara queria, hein, pai? Ele ficou atrás da gente a tarde inteira.” Karina perguntou, ansiosa.

“Ele me pediu para entregar isso para vocês.” Ele estendeu os envelopes para elas.

“Isso é da vó Henriqueta?” Ele concordou. “Pai, a vó morreu faz anos.”

“E por que o vô me deixou uma carta? Ele nem tinha contato com a gente.”

“Leiam as cartas, meninas... Depois nós conversamos.” Ele pediu, escondendo o rosto nas mãos e começando a entoar um mantra silencioso.

As duas se entreolharam, antes de rasgar os envelopes e puxarem as cartas. Uma rápida olhada e viram que eram iguais, cópias uma da outra.

“Caros herdeiros,

Essa carta está sendo escrita em 26 de outubro de 1976, poucas horas após o enterro de Antônio e Emília Silva. Eles, assim como muitos outros, foram vítimas da censura militar. E, por esse motivo, tomamos essa drástica decisão.

Quando fundamos a Fábrica de Sonhos, 10 anos atrás, o golpe militar já havia acontecido. Porém, em momento algum imaginávamos que as coisas chegariam ao ponto em que chegaram. A arte tornou-se um crime, passível de ser punido e censurado, e não é essa arte que queremos ensinar aos nossos sonhadores.

E, em consenso, nenhum de nós mostrou o desejo de retomar as atividades da Fábrica algum dia, se e quando essa censura acabar. A Fábrica foi o sonho de 12 jovens amigos, que se conheceram em uma noite alegre de Carnaval, e quiseram ao seu próprio jeito mudar o mundo.

E por mais que ainda torçamos com fervor para que a Fábrica volte a vida, nenhum de nós consegue imaginar ver isso sem estarmos todos juntos. E é aí que vocês entram.

Você, que está lendo essa carta, é o filho primogênito do primogênito de cada um de nós. E se está lendo, quer dizer que afinal todos nós pudemos descansar em paz, e nos encontrar em algum outro lugar, onde podemos estar todos juntos novamente.

Você, herdeiros, está herdando uma parte da Fábrica dos Sonhos. Sua missão ao longo dos próximos 18 meses é, junto de seus novos amigos, fazê-la reviver e prosperar, tornar-se novamente o que era, o grande sonho que um dia foi.

Nós erguemos aquele lugar em 18 meses, tendo quase nada no bolso, mas muitos sonhos no coração. Esperamos profundamente que vocês façam o mesmo.

Atenciosamente.

Susana Garcia

Susana Garcia em nome de Emília Silva

Marcos Duarte

Luisa Oliveira

Henrique Noronha

Miguel Gardel

Alessandra Cobreloa

Henriqueta Sousa

João Paulo dos Prazeres

Sara Nobrega

André Menezes

Paulo Ferreira”

“Pai, que droga é essa?” Karina guinchou, sem entender nada. “Fábrica de Sonhos? Isso é algum filme cafona da Disney?”

Gael suspirou, coçando os olhos e se levantando. Caminhou até a estante, puxando um álbum velho, daqueles que ninguém nunca mexe. Ele sentou ao lado das filhas, começando a virar as delicadas páginas.

“Essas são as pessoas que assinaram a carta. Sua avó Henriqueta é essa, meu pai é esse. Essa foto foi tirada alguns meses antes de eu e sua mãe nascermos, quando a Fábrica estava no auge. Essa...” Ele apontou outra foto, que mostrava um galpão. “É a Fábrica de Sonhos.”

“Eu nunca ouvi falar desse lugar.” Garantiu Bianca.

“Ele foi muito famoso, filha. Grandes dançarinos e atores saíram daqui na época, mesmo que só tenham desabrochado anos mais tarde.”

“Por causa da censura?”

“Sim, Karina, por causa da censura. Sua avó dizia que era uma péssima época para querer ser sonhador. E então, graças a censura e a ditadura, uma das amigas deles foi assassinada. Causaram um acidente de carro, e só a filhinha dela saiu viva. Ela e o marido morreram na hora.”

“Emília?”

“Isso, ela mesma. Eu era muito pequeno na época, mal tinha três anos. Não tenho lembranças muito fortes. Me lembro de alguns lugares que estão nessas fotos, de alguns flashes de rosto. Sua avó Henriqueta sempre foi muito amiga da minha mãe, foi através delas que meus pais se conheceram. Mas dos demais, não demorou para o contato quase se perder. Naquela época não havia internet, telefone era algo bastante difícil, cartas se perdiam, endereços mudavam. Soube que alguns saíram do estado, para fugir dos olhos diretos. Após a morte do casal, todos acabaram ficando na mira.”

“Alguém chegou a ser torturado?”

“Não fisicamente, Bianca. Mas era uma tortura psicológica, veja bem, o medo constante de que algo poderia acontecer. Susana foi quem assumiu os cuidados com a filha de Emília, e não demorou para sair do país.”

“Então eles nunca mais se encontraram?” Perguntou Bianca, os olhos cheios de lágrimas.

“Uma vez, após vocês nascerem. Creio que foi no dia em que assinaram essas cartas. Um ou dois já haviam morrido, acho. A verdade é que era muito doloroso para todos eles. Meu pai nunca superou o fechamento da Fábrica, ou a separação dos amigos. Esse galpão aqui foi uma herança que ele recebeu do próprio avô, e ele estava quase vendendo quando conheceu esse pessoal. Então devem imaginar o quanto doeu nele.”

“Agora está explicada a rabugentice dele.” Gael gargalhou do comentário da filha caçula, a abraçando.

“Seu avô se amargurou ainda mais quando eu bati o pé que não queria ser ator ou dançarino, mas sim lutador. Logo após a morte da mãe de vocês, ele exigiu que eu entregasse vocês para a sua avó Henriqueta. Ele queria que vocês fossem criadas em escolas de artes, treinando para serem atrizes, bailarinas ou qualquer coisa assim.”

“Eu teria odiado.”

“E eu amado.” Bianca rebateu a irmã. “E por que você não deixou, pai?”

“Você queria ser criada pela sua avó, Bianca?”

“Claro que não. Mas eu adoraria ter estudado em escolas de artes, me aperfeiçoado para ser atriz.”

“E acabar como a sua mãe? Sendo atacada por um diretor sádico no camarim?” Ela baixou os olhos envergonhada. “Seu avô dizia que era a parte ruim da profissão, mas que era necessária. Eu nunca o perdoei por isso. E me prometi que não deixaria isso acontecer com nenhuma de vocês, decorou?”

“Decorei, pai.” Ela concordou mal humorada. O homem suspirou, encarando as cartas nas mãos delas.

“E o que vocês vão fazer?”

“Não sei. Devemos procurar o Dr. Silveira?”

“Ué, vocês não leram as instruções? Estão anexadas a carta.” Só naquele momento elas perceberam o papel grampeado atrás.

“Aqui diz que devemos estar no escritório dele em três dias. E pede para levarmos uma mala. Pai, para que uma mala?” Karina perguntou preocupada. Gael suspirou, se levantando.

“Eu não sei... Acho que vocês vão ter que ir até lá para descobrir.”

~*~

Os dois dias seguintes foram recheados de ansiedade. Para Mariana, Maria de Fátima e Ricardo, que viajaram de suas cidades para o Rio, foi um pouco mais tranquilo. O trajeto de avião os entreteve no primeiro dia, e o segundo foi preenchido pela sensação de deslumbramento de conhecer afinal o Rio de Janeiro.

Bruno tomou o avião em Chicago no dia seguinte, após discutir com seu chefe e conseguir férias. Havia cedido a pressão da mãe e iria descobrir qual era essa dita herança, já que a carta não lhe explicara muita coisa e sua mãe também não sabia muito.

Para os demais, todos habitantes de Rio ou Niterói, os dias foram mais longos e cansativos, marcados pelo nervosismo e pela dúvida. Ninguém conseguia trabalhar ou se focar nos estudos, ansiosos pelo que viria a seguir.

No terceiro dia após receberam as cartas, às 10h da manhã em ponto, se viram pela primeira vez. Carlos Silveira tinha um importante escritório no Leblon, um dos maiores da cidade, e havia mandado seus funcionários buscarem os herdeiros nas respectivas residências. Os carros estacionaram no subterrâneo do prédio, e um a um, os doze jovens deixaram seus veículos.

Caminharam até o centro do pátio, encarando os desconhecidos com curiosidade, admiração, repulsa e até desdém. Silveira observava tudo de dentro do elevador, um sorriso brincando em seu rosto.

“Bem vindos, herdeiros.” Ele se pronunciou, atraindo a atenção dos jovens. “É um enorme prazer tê-los aqui!”


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Notas finais do capítulo

Heeeello
Esse capítulo ficou um pouco menor, mas eu gostei de focar na Karina e na Bianca.
No capítulo que vem: a herança.
Qual será ela? hm*
See you ;*
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