Um Estudo em Fanfictions escrita por Mrs Neko


Capítulo 7
7. Jazz Night


Notas iniciais do capítulo

Antes de qualquer coisa, peço mil perdões pela demora!! Este semestre virou uma conspiração contra minha vida: paralisação, estágio, serviço, Chain Chomp e as tartarugas maléficas do Bowser, plantas venenosas de Crash Bandicoot, Daleks e todo o universo querem me pegar. Se mais alguém por aqui estiver amargando o (começo de) fim de semestre, sinta o abraço de alguém que está no amplo e sombrio fundo do mesmo poço.


Obrigada, infinitamente obrigada, à James Martin Cumberbatch, FaFaVe, e às elegantes guests do FF.net. Por favor, lindas, façam contas, para que eu possa tentar responder, adequadamente, seus reviews!


Então, pessoas belas, este capítulo não conseguiu ser um song-chapter, nem um crossover entre Sherlock e o anime Sakamichi no Apollon [a.k.a Kids on the Slope], mas quem já viu vai reconhecer as músicas e se deliciar. E se você não viu o anime, assim que tiver um tempo, veja. É uma lição de vida sobre música, amor, amizade, e muitas coisas maravilhosas.


Caso você queira ouvir as músicas que (quase) aparecem neste capítulo, aperte End, que os urls estão nas notas finais (Neko é uma jumenta).


Este capítulo não foi betado e está relativamente longo. Tentei lutar com o cansaço e polir o texto, mas de novo, nem Café nem Coca foram capazes de me ajudar. Portanto, por favor lembre-se de que quaisquer erros de ortografia e chatice são, exclusivamente, minha culpa.



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– Não quero!!



– Ora, vamos, Sherlock. Deixe de ser ranzinza. Venha comigo, é a minha primeira folga em Deus sabe lá quantos meses. Me deixe desfrutar meu tempo livre em paz, com a certeza de que você não vai se drogar.



Greg amaldiçoou-se em silêncio, e, enquanto buscava o estojo do saxofone no guarda-roupa, fugiu da fúria fulminante nos exóticos olhos felinos do seu parceiro civil. Primeiro, uma esposa traidora compulsiva; depois, um gênio desajustado viciado em heroína. Mais de vinte anos na Força Policial, sua juventude desperdiçada com a contemplação do pior da natureza humana, e ele ainda não sabia ter cuidado com as pessoas que convidava para sua casa, sua vida.



Não que ele tivesse algo de especial a oferecer.



Mas quando Sherlock também desviou os olhos, que o grisalho adivinhou nublados e escuros de vergonha, raiva e autodesprezo; ele lembrou-se de que algo muito mais complexo, traumático e misterioso que os casos horrendos com que lidavam todo dia havia atado os fios rotos de suas vidas.



Não havia um motivo lógico para o amor paternal que o fez descobrir a criança perdida oculta sob o jovem intelectual e revoltado. Não havia uma razão clara que explicasse porque precisavam tanto um do outro.



Portanto, o melhor a fazer, diante da situação em que se encontravam, era largar os pensamentos racionais e dolorosos, e convidar o garoto a espairecer ao som de boa música, em boa companhia.



– Um clube de jazz pode ser muito mais legal que qualquer cena de crime. Ainda mais porque lá não tem aquela música clássica chata que você gosta - Gregory riu com gosto do rosnado com que o amigo se dignou a responder. Seu riso se ampliou ao pensar em Molly, um curioso misto de doçura meiga, aparência frágil, e autoridade ferina, com que ela sempre mantinha um ambiente tranquilo e aconchegante no Speedy's, o pub onde a pequena trabalhava e gerenciava, junto com a sra. Hudson.



– Música clássica é algo muito maravilhoso pro seu cérebro de ervilha compreender, Lestrade - a voz de barítono soou carregada de desdém.



– Dois minutos foram o período mais longo da sua vida que você passou sem me insultar. Mas vou deixar passar desta vez; já que como aficcionado por música clássica, você sabe tocar piano, não é mesmo?



Seus dias sempre acabavam mais felizes quando podia vê-las. E a ideia genial delas, de compartilhar o gênero musical favorito com os clientes, sempre mantinha o local próspero e feliz. Se o garoto fosse um pouco menos mal educado durante o caminho, poderia contar a interessantíssima história do Speedy's, e de seus companheiros músicos, principalmente o bom e velho John, que devia estar um pouco quebrado, depois de todo o horror que tinha visto na guerra de onde mal acabara de voltar, sabe-se lá com quais sequelas. Pobre John, que Deus o tenha.



A sra. Hudson fez um lanche caprichado, que seria, assim como a primeira bebida que o freguês pródigo escolhesse, servida por Molly e por conta da casa. E ai do pobre John Watson, ex-capitão da Força Médica do Exército Britânico, se discordasse de duas mulheres furiosas. Todo o seu conhecimento de táticas militares e habilidades de combate não serviriam para salvá-lo.



Os lábios finos do ex-soldado se curvaram num sorriso dramático e derrotado. Ninguém podia saber de suas malfadadas tentativas de suicídio, mas todos sabiam da situação amarga e degradante da irmã. Bebidas sempre lhe faziam lembrar-se de Harry... e do fim que aguardava a ambos.



Um perfume alcoolico e quente, um composto perigosamente apetitoso de café e whisky, arrancou Watson de suas lembranças amargas.



– Pediu um Irish Coffee, soldado? - Molly sorriu com uma piscadinha infantil e brincalhona, um pequeno gesto explosivo de vida, como o baque da bandeja com o "pedido" sobre o balcão.



Parecia que, afinal, nem tudo era tragédia e dor no final de sua história de guerra; como se, mesmo sem ter uma casa, John ainda tivesse, ainda que por pouco tempo, algum lugar especial para voltar. Quando ele devolveu o sorriso de Molly, seus olhos azuis-escuros se estreitavam, deleitados e brilhantes de humor.



– Não pedi e não vou pagar nada.



– Ah, mas vai pagar sim!! - Mike Stamford, contente, efusivo e desastrado como sempre, quase derrubava a banqueta ao lado do médico militar, após sentar-se com estrépito e quase cair com o imenso estojo do contrabaixo a tiracolo (para que diabos o rapaz queria carregar o objeto até onde ia comer?!). - Você vai pagar com música! Já ficamos muito tempo sem baterista, e ninguém toca como você.



A timidez de John e a simpatia de seus interlocutores foram interrompidas pelo pequeno sino característico da porta, que acabava de se abrir, e trazia, com o sopro do ar gelado da noite londrina, duas silhuetas altas que se transformavam, à medida que se aproximavam da luz, em dois homens.



O primeiro, bem conhecido: Greg Lestrade, grisalho, moreno e forte, marcas de cansaço em seus olhos paternais, da cor do chocolate derretido, e em sua beleza madura e paciente, gotas da geada em seus cabelos que mesclavam do griz à cor da prata; e no casaco encharcado. O segundo era um rapaz desconhecido, com uma expressão que lembrava o mau humor de um velho ranzinza, e infelizmente assombrava e ocultava a sua beleza exótica, nos cabelos pretos ondulados que começavam a crescer e formar pequenos cachos, nos olhos de cor indefinível, entre o azul e o cinza, na boca que seria irresistivelmente bem esculpida, se não estivesse torcida numa revolta silenciosamente violenta, como a de um condenado no cadafalso, e no jeans e o casaco que pendiam do corpo muito magro, quase tão largos quanto uma mortalha.



Sherlock sentou-se o mais longe possível de todas aquelas pessoas imbecis e barulhentas. Todas as perguntas, gracejos e berros que eles soltavam eram, além de irritantes, inúteis. Para que tanta conversa fiada, tantas perguntas infantis? Tudo que eles faziam, sentiam, escondiam, era tão óbvio! Só de olhá-los, qualquer observador atento podia saber tudo que quisesse sobre suas vidas. Não havia qualquer necessidade daquela conversa fiada.



Por falta de alguma coisa melhor para fazer, seus olhos, veículos de sua mente bem treinada para a Dedução, começaram um lento escrutínio do lugar. Passos e atos, de muitas e muitas pessoas, durante os dias anteriores, percorriam seu palácio mental, sombras fugazes, num filme em câmera acelerada.



Nenhum dos desatentos fregueses havia se aproximado do piano quase encostado a um canto da parede.



Um piano!?



Sim, um piano. De cauda. Antigo, arranhado, os pedais pendentes em ângulos estranhos como dedos com artrite, a pintura maltratada, as teclas já não conheciam a cor branca há muito tempo. Um Steinway, tinha no mínimo trinta anos de fabricação, e fora maltratado por donos incontáveis; no entanto, recentemente, alguém tentava cuidar do instrumento; era mantido limpo e, com alguma sorte, bem afinado.



Sherlock não desperdiçou mais que meio segundo para pensar em sua cotidiana falta de sorte. Puxou uma cadeira próxima - seria possível que quem cuidava daquele lugar era tão relapso que pretendia manter o instrumento apenas como decoração, sem nem um banco decente por perto? - acomodou-se com a prática e a elegância de um aristocrático concertista, e deliciou-se com o som de uma única nota, infinitamente mais profundo e delicioso que sua memória conseguia alcançar.



Uma nota deu lugar a mais duas, cinco, dez, e tantas que ele perdeu a conta dos sons e a noção de tempo e lugar. Não lhe importava onde estava, quando, quem estava à sua volta. Só importava aquela rara brincadeira do destino de proporcionar ao rapaz um momento agradável.



Tão agradável quanto aquele calor pequenino, estranhamente familiar e reconfortante, que só alcançava seu ombro largo e ossudo.



– Você toca muito bem...! - disse uma voz desconhecida. - Aposto que fica ainda melhor com um acompanhamento de fundo. Podemos improvisar com você?



O desconhecido era um dos escassos fregueses, que estava sentado junto do balcão do café, quando ele havia entrado com Lestrade. Um homem e magro, aparentemente beirando os quarenta anos; cabelos quase dourados,muito curtos, mesclados da cor de areia ao cinzento, olhos grandes, azuis escuros, sobre bolsas de cansaço, olheiras abatidas, em contraste com os traços expressivos do rosto e a pele muito queimada. Uma postura reta, quase severa, amparada por uma medonha bengala de aço.



Um militar ferido, óbvio. Com uma posição maior que a de um soldado raso,e menor que a de um alto oficial.



Por que uma pessoa tão gentil, capaz de aconchegá-lo com algumas poucas palavras, e um toque leve e caloso em seu ombro, foi parar numa frente de batalha?



Mas antes que o inesperado pianista pudesse perguntar em qual dos dois lugares prováveis, a redoma de inesperada intimidade que o pequeno desconhecido estendeu ao parar sua música, ao invés de apresentar-se adequadamente, foi rompida um gorducho professor desventurado, solteirão e provavelmente próximo de uma doença cardíaca.



– Bem que Greg tinha mesmo falado que você tocava piano divinamente! Ainda bem, porque é o instrumento mais difícil! Vamos aproveitar, que isto é o mais próximo de uma banda que tivemos em meses!! A noite está só começando!!!!!!



O policial acalmou o rompante de entusiasmo de Mike Stamford sugerindo uma música que todos os presentes conheciam - e que ele havia se certificado de que Sherlock conhecesse - , Caravan.



Era fácil articular, ondular as notas para que elas tivessem o ar de suspense que saíra do anacrônico LP de Lestrade. A música em si não lhe interessava. Não queria tocar para fingir que agradava a qualquer um na pequena quase-plateia à sua volta. Só queria devorar o recém-conhecido, concentrar seus olhos implacáveis na maneira exausta em que ele manquitolava rumo ao kit de bateria que montava com movimentos calmos e precisos, nos quais se escondiam exaustão, física e mental; e elegância, quieta, circunspecta.



Não deveria ser um quadro interessante, pior ainda, não deveria ser uma imagem desejável.



Definitivamente, aquela música não seria a narrativa da caminhada errática de uma caravana em travessia pelo deserto.



Mas quando o pequeno interlocutor também começou a tocar, familiarizando-se com o instrumento, o detetive começou a entender porque o loiro baixinho tornou-se um combatente.



Nos olhos fortemente fechados, nas linhas de tensão e força que redesenhavam o rosto e o corpo, nas trovoadas furiosas de tambores, caixas e pratos, ele ouvia, quase com a mesma consciência do amável desconhecido, explosões e bombardeios, trovões e tempestades de areia, furacões do deserto e tornados de fúria, ódio selvagem, dor e morte, rajadas de tiros que se desviavam, por menos de milímetros, de sua vida, sua sanidade.



A intensidade de movimentos que não combinava com uma lesão propriamente dita.



A expressão de alguém que foi muito além dos confins da Terra, contemplou algo pior que as profundezas do inferno.



E o deleite com o som que reconduzia a memória e a sensibilidade ao caos do campo de batalha.



Aquele desejo inesperado, indesejado, o foco de sua mente, mais obcecado que a mira de uma arma, só parou quando a percussão foi substituída por palminhas fracas, delicadas, deliciadas.



– Isto foi incrível!! - Molly elogiava a banda improvisada, com seus olhos escuros brilhando em doçura e admiração - Só faltava alguém para cantar.



– Então, em comemoração pela volta do nosso querido jovenzinho, ele é quem vai cantar. - a sra. Hudson parou de aplaudir e concordou com a vontade da filha adotiva, seu rosto quase rejuvenescia, num rosado alegre e natural colorido com o amor extremoso de uma legítima mãe coruja. - Cante, John, você tem uma voz tão bonita!



– Mas sra. Hudson, quem neste universo seria capaz de me imaginar cantando?!



– Eu seria - Sherlock adicionou sua voz à discussão, divertido com uma informação nova sobre o objeto do seu interesse, um nome. - Escolha qualquer música, posso acompanhar você com o piano.



Enquanto Greg erguia uma sobrancelha para a arrogância do mais jovem, a pequena Molly aparecia ignorava o desafio insosso em que havia se tornado a proposta da idosa, com sua usual inocência, e uma Fender amarela, que parecia ter surgido do nada por obra de mágica.



– Se você não faz ideia de que música quer agora, John, tente Lullaby of Birland. Você mal conversou desde quando entrou aqui. Nós, seus amigos, estamos com saudade da sua voz. E eu estou com saudade dessa música, na sua voz. Cante pra gente.



Cinco olhares estenderam um escrutínio súbito de curiosidade implacável sobre a pequena jovem, que corou até seu rosto poder ser confundido com um tomate. John abriu mais um de seus sorrisos quase tristes, uma curva modesta, desenhada com compreensão e ternura, como se a mocinha fosse sua irmã, no lugar de Harry.



Contrariando as expectativas de Sherlock, a guitarra era bem afinada e bem tocada, com um som baixo, melodioso e agradável que abriu caminho para seus ouvidos bem treinados acertarem os tons com que acompanharia o outro instrumento e a voz de John.



E quando ele começou a cantar, ele se sentiu, de fato, transportado magicamente para um lugar de sonhos, calor e conforto. Um lugar que não cabia na memória do seu palácio mental, um lugar do qual já sentia saudade, mal tendo começado a conhecê-lo.



Os sons daquele homem eram tão inesperadamente desejáveis e sensuais quanto seus movimentos e sua voz calma, contida e aconchegante.



E ele, que quando sonhava, só tinha pesadelos, sabia que aquela voz irresistivelmente doce, tão gentil quanto o dono, perseguiria seus sonhos, e provavelmente também sua consciência, por tempo muito além do que se pode contar.



Porque o Jazz, como a vida, gosta de surpreender músicos e ouvintes, de oferecer milhares de formas diferentes, envolventes, de experimentar e lidar com o tempo.



Sherlock Holmes acabara de conhecer uma delas, personificada na voz de John Watson.



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Notas finais do capítulo

1. Caravan é uma música de Art Blakey e sua magnífica e bastante variada banda de apoio, The Jazz Messengers. Foi originalmente lançada em LP, em 1963, como faixa-título do álbum homônimo. Áudio em https://youtu.be/KkNfChkmTF4.


Embora esta música especificamente não apareça na trilha sonora de Sakamichi no Apollon, tanto o anime quanto o mangá tem várias referências ao músico - um dos protagonistas toca bateria com a mesma força criativa, deliciosa e um tanto agressiva que caracteriza Art Blakey e que lhe rendeu o apelido de "Tiger of Jazz". Se possível, procure informações sobre ele, a biografia dele é bem interessante.


(Coloquei o John como um baterista, nesse estilo tigre jazzístico, para servir de pista ao Sherlock, para descobrir que a pior lesão que atormentava o doce loirinho era, na verdade, psicológica. Ou psicossomática, seja lá como o detetive-grumpy cat queira chamar.)



2. Lullaby of Birdland é uma música de 1946, cantada pela diva Sarah Vaughan. Birdland era um lendário clube de jazz onde vários músicos da cena da música negra americana, marginalizada pelo racismo e pobreza, porém riquíssima em criatividade e elegância, por volta dos anos 1950, conviviam, tocavam e ocasionalmente gravavam seus shows geniais. Porém, não é impossível que a música não faça alusão ao lugar físico, mas a sentimentos.


De volta ao anime Sakamichi no Apollon, a versão que aparece na trilha sonora do anime é cantada por uma das dubladoras, como você pode conferir aqui [https://youtu.be/gDzi8N3BYMw] (e diga-se de passagem que os músicos que fazem os áudios dos personagens, e os dubladores que cantam fizeram um trabalho mais que maravilhoso!) ; no mangá, pela mãe do protagonista, que tem toda uma história super complexa, dramática e (hummm, bem não queria usar esta palavra, mas não tem outra!) cabulosa. Contar mais do que isso é spoiler. Então, queridos Sherlockians do meu coração, assistam, leiam, e deliciem-se!


3. Conte-me mais sobre as músicas que você curte. Chore suas pitangas, já que eu chorei as minhas e extrapolei as 2 mil palavras neste capítulo, e terminei de escrevê-lo às 3 da manhã. Não precisa ter vergonha de se expressar. Comente, eu ADORO seus comentários, de paixão! Até a nossa próxima aventura!



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