Últimas Lembranças escrita por Eliza Santana


Capítulo 1
Capítulo Único - Boa noite


Notas iniciais do capítulo

Essa história é especial, pois surgiu de um dos meus filmes favoritos. Não é preciso ter assistido o filme para entendê-la, dou todas as informações necessárias no decorrer do texto. Escrevi esta história há quatro anos, para um concurso. Não muito tempo atrás, senti vontade de reler o texto e tive a infeliz descoberta que havia perdido o arquivo, tendo sobrado apenas os primeiros parágrafos em uma conversa antiga de facebook. Há alguns dias, assistindo este mesmo filme, durante a cena a qual me inspirei para essa one, recordei-me do enredo em sua totalidade. Desde então não descansei até que reescrevesse esta história que tanto significa para mim.
Desejo a todos uma boa leitura, que este pequeno conto toque vocês de alguma maneira, como faz comigo.



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Apesar de ser uma sensação um tanto quanto estranha dada as circunstâncias em que o fazia, também me sentia seguro e confortável ali, envolto nos braços de Daisy. Mesmo que os anos tenham passado cruéis e rigorosos para nós dois, enrugando sua pele alva e embranquecendo seus longos e ondulados fios, o calor e o cheiro que emanavam dela permaneciam aqueles mesmos que costumavam me inebriar e me fazer acreditar que tinha encontrado o paraíso em terra.

Não sei bem como nem o porquê, mas como nada em minha vida fora lógico, presumo que conseguir desenvolver pensamentos concretos e ter uma visão clara de todas as minhas lembranças não seja algo assim tão fora do comum. Passei os últimos anos preso em um limbo: não sabia quem era, quem um dia fui, muito menos de onde vim. Eu simplesmente vagava, me escorando e agarrando desesperadamente no que terceiros diziam e tomando aquelas palavras como verdade. Chegou um ponto onde não conseguia reter mais nada, desaprendi todo o pouco de coisas que sabia fazer e tudo que via eram borrões vazios, via o mundo à minha volta, escutava as vozes, mas nada me era familiar, fiquei sozinho em meio à multidão.

Estou naquele famoso e temido momento, aquele antes do último suspiro, onde tudo passa por sua mente como uma grande retrospectiva. É engraçado como até mesmo memórias perdidas voltam à tona como uma grande enxurrada. Acredito que este seja o motivo pelo qual muitos relutam em partir. A tentação de viver mergulhado em meio a lembranças, poder reviver e repensar grandes momentos, é grande demais para deixa-la escapar entre seus dedos nestes poucos segundos os quais ela passa por você.

Eu, no entanto, uso estes segundos como um momento de reflexão. Alguns poucos momentos são os quais me preocupo em, mesmo que inutilmente, fixar em minha cabeça para que sejam aqueles instantes que se eternizarão em minha memória no momento em que fechar os olhos uma última vez.

De todas as coisas pelas quais passei, não há de nada de que me arrependa, apenas uma ou outra situação as quais me pego imaginando o que teria acontecido se optasse por outro caminho e vendo logo em seguida que não havia outro exceto o que tomei, pois foram eles que me trouxeram até onde estou hoje.

Os momentos com Daisy são os melhores, inesquecíveis e memoráveis. Lembro-me de quando a conheci, aquela pequena e graciosa menina que sonhava em ser uma famosa bailarina, dançando pelos cantos da casa com graça e agilidade, enquanto me esforçava para segui-la com o apoio de minhas muletas. Os anos de nossa meia idade, aqueles que vivemos juntos, intensamente como se não houvesse o dia seguinte. O nascimento de nossa filha e todo aquele receio que carregava em meu interior de que a criança nascesse como eu. O alívio por tê-la visto nascer bela e saudável, normal. O dia em que as deixei... Como eu gostaria de ter acompanhado o crescimento de Caroline, ter participado de todos os eventos importantes.

Muitas vezes durante minha vida, me perguntava como teria sido caso não tivesse partido. Ainda tinha mais alguns anos de vida adulta, poderia perfeitamente continuar exercendo o papel de pai, na adolescência seria como um irmão. E também estaria ao lado da mulher que amei, mesmo que não pudesse tê-la de fato, o prazer de sua companhia seria suficiente.

Entretanto, sabia que quando as memórias começassem a falhar – como falharam – me tornaria um fardo. Não seria justo uma mulher idosa tomar conta de duas crianças, Daisy não suportaria. Seria muito egoísmo de minha parte submete-la a tal provação pelo simples fato de amá-la tanto a ponto de não deixa-la ir.

Não nego que tenha sido uma decisão difícil, pensei e repensei inúmeras vezes se realmente era isso mesmo que eu desejava para minha vida, pensava também em Caroline, em como ela sentiria minha falta se partisse em uma idade a qual ela fosse capaz de lembrar-se de minha presença, de como seria complicado ela aceitar outra figura paterna em meu lugar, se a pequena mente dela seria capaz de entender a minha condição. Mas principalmente me ocorria se Daisy ficaria bem, se ela seria capaz de seguir sozinha e reconstruir a sua vida.

Justamente por este motivo, a nossa separação, que sempre guardei um momento em minha cabeça.

Era um dia de tempestade e estávamos passando alguns dias na casa de meu pai no lago. Terminava de fechar as janelas para impedir que a chuva entrasse. Assim que tranquei todo andar de baixo, subi as escadas indo até a suíte principal onde Daisy se encontrava. Ela estava completamente despida, observando seu corpo frente ao espelho, as pontas de seus dedos deslizavam por certas áreas, delineando-as lentamente. Não percebeu minha aproximação até que meu reflexo surgiu ao fundo, fazendo-a virar em minha direção. Ela tinha no rosto aquela conhecida expressão de quando queria passar felicidade, mas, na verdade, por dentro estava devastada. Sabia disso, pois quando algo a preocupava, uma pequena ruga surgia entre suas sobrancelhas e não desaparecia até que tudo se acertasse.

Abracei-a e a beijei rapidamente nos lábios. Admirava-a ali em meus braços com um sorriso o qual somente ela sabia me tirar. Porém, este logo se desfez quando ao fitar meu rosto, seus lábios crisparam-se levemente e ela abaixou a cabeça, apoiando-a em meu ombro.

— No que está pensando? — perguntei num sussurro, afagando suavemente suas costas.

— Nós. — respondeu simplesmente, a voz já rouca de quem está segurando o choro. Afastei-a delicadamente, olhando-a nos olhos.

— E o que mais?

— Em como será daqui a alguns anos. Meu corpo envelhece a medida que o seu fica mais jovem. Você irá, no auge de sua juventude, querer estar ao lado de alguém que não é mais tão bela? Estamos indo em direções opostas, Benjamin.

—Não, estamos indo para o mesmo lugar, todos estão. Só tomamos diferentes rumos para chegar até lá. — deslizou a ponta do indicador pela ruga de expressão na testa de Daisy. — Eu nunca a deixaria. E mesmo que nossos caminhos venham a se separar, eu sempre irei carregá-la comigo.

— Seremos eternos. Eternamente jovens, eternamente amantes.

— Eternamente seu...

Um sorriso despontou em seus lábios. Beijei-a de modo tão intenso quanto a tempestade que rugia do lado de fora.

Todos os dias recordava-me da promessa que fizera a Daisy, não porque eu poderia vir a quebrar minha palavra, mas sim porque ela era o primeiro pensamento que tinha ao acordar. Seu sorriso, seus abraços, o som da sua voz... Em momento algum eu deixei de amá-la. Agora sei que parte de mim recordava-se dela, mesmo quando a memória não o fazia mais.

Sentia que todas essas boas lembranças logo se encerrariam, dando lugar a completa escuridão. Nesse momento, desejava poder ser um idoso, não porque nunca me conformei com minha condição, mas sim porque seria capaz de pronunciar as palavras presas em minha garganta, as quais não conseguia emitir em voz alta. Limitei-me a fita-la diretamente nos olhos dela uma última vez.

“Boa noite, Daisy” pensei enquanto a olhava, senti as pálpebras pesarem, fechei os olhos ainda a tempo de ver um pequeno sorriso nos lábios dela.

E então, antes que tudo se findasse, escutei o eco de sua doce e rouca voz.

— Boa noite, Benjamin.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado!
Nos vemos em outras histórias!
Beijos

— Amélia Lannister



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