Veneno Escarlate escrita por Bombom


Capítulo 1
Cuidado não a toque


Notas iniciais do capítulo

AMO VOÇAYS *foge*



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A festa estava cheia demais. Amélia estava sufocando, quase literalmente, com tanta fumaça de cigarros no local. De quem tinha sido a brilhante ideia de ser permitido fumar em baladas, ela não sabia, mas tinha certeza de que mataria o sujeito.

A manga direita de sua blusa estava empapada de gin tônica, depois de ter esbarrado em um casal se beijando. Os dois eram mais altos, a mulher envolvia o pescoço do homem com os braços e em uma de suas mãos estava o copo. Uma garota empurrou Amélia pro lado e... Oops.

Pelo menos ele tinha se molhado, também.

Espremeu-se entre as pessoas dançantes, tentando sair. Foi quando a batida mudou, passando para algo mais pesado, e um segundo esbarrão ocorreu. A garota, desta vez, estava completamente bêbada e caiu com tudo em cima de Amélia. Passou um bom tempo rindo no pescoço da outra, totalmente pendurada em seus ombros.

Amélia só rezava que ela não vomitasse nela.

Finalmente, os pés da garota bêbada se firmaram no chão e ela se afastou da outra. Segurou-a pelos ombros e olhou bem fundo em seus olhos, uma alegria iminente no seu olhar.

— Olá! — exclamou, e lhe tascou um beijo. Durou poucos segundos, mas ela arfou e a empurrou, rejeitando o carinho. Logo depois, passou a mão pelos lábios, ainda em choque. — Você é muito bonita.

Encarou-a sem saber o que dizer, exatamente.

— Meu nome é Raquel. Sabia que seu cabelo parece que ta pegando fogo?

— Você está bêbada.

— Óbvio. — Raquel revirou os olhos. — Ei, como você se chama?

Outra trombada. Desta vez, Amélia quase caiu, mas a outra a segurou. Um olhar pontudo foi direcionado ao homem que continuou a dançar depois do acidente.

— Vem, vamos lá pra fora.

Deram as mãos e começaram a fazer seu caminho para fora. Amélia não tinha a menor ideia do porquê de estar seguindo aquela estranha bêbada, mas ela lidaria com as inseguranças depois, quando estivesse fora dali.

Escancararam a porta de saída de emergência. Elas estavam em uma boate na parte norte da cidade, a parte mais rica, diga-se de passagem. Raquel esticou os braços à sua frente, como se estivesse tentando alcançar alguma coisa, e Amélia a puxou de volta para que não caísse da varanda.

— Ei, ei — Raquel lhe chamou, desta vez olhando para cima. O céu não mostrava nenhuma estrela, de tanta poluição que tinha naquela cidade, mas ela não parecia perceber isso, fascínio em seus olhos. Quando Amélia a olhou, ela riu. — Nada.

Ficaram ali por um bom tempo. Dois casais entraram na varanda aos amassos nesse meio tempo, mas bastou um olhar de Amélia para que eles se afastassem. O cheiro de cigarro ainda emanava de sua jaqueta de couro (Ah, o pessoal da lavanderia cobraria caro!), mas ela já se sentia muito melhor.

Ir para a balada tinha sido um erro. Um erro que só foi cometido porque seu namorado, animado com o fato de que ela tinha sido escolhida para representar Giselle, um papel altamente renomado no ballet, resolveu sair pra comemorar.

Ele ignorara seus pedidos para ficarem em casa e resolvera, sozinho, que deveriam ir dançar. E ali estavam.

Ou melhor, ali ela estava. Onde estava ele?

Tinha de procurá-lo. Olhou para Raquel, observando-a enquanto esta ria para o nada. Suas bochechas estavam vermelhas e seu olhar tinha um brilho da inocência que só pertencia aos alcoolizados. Não podia abandoná-la ali.

E então viu seu namorado, lá dentro da balada. Sua altura, enorme como seu carisma, se destoava dentre a multidão. Amélia esticou o braço e pulou, e Raquel riu de sua atitude. Entretanto, Rodrigo a viu, e isso foi suficiente.

— Ei — ele cumprimentou momentos depois, fechando as portas da varanda atrás de si. — Quem é essa aí?

— Meu nome é Raquel! — ela respondeu alegremente de seu ponto no chão, acenando.

— Acabei de conhecer. — Amélia continuou. — Eu estou meio cansada, tava pensando em ir pra casa já, e pensei em levá-la conosco. Ela não parece estar em condição de ir pra casa sozinha.

— Ela te disse onde mora?

— Bem, não, mas...

— Eu moro no Zero. Na esquina que tem aquela farmácia... — ela parou pra pensar um pouco enquanto Amélia e Rodrigo a encaravam. — O nome é Remédicos, acho.

— É, dá pra levar. O carro tá num estacionamento a duas quadras daqui. Ela pode andar?

— Acho que pode. Vamos.

Rodrigo voltou à multidão para buscar os casacos, e logo estavam descendo as escadas de incêndio. O vento cortante e frio por ser de noite e estarem em um lugar alto fazia arder as bochechas de Amélia, que logo se cobriu com o capuz do sobretudo.

As ruas estavam, como esperado pela hora, completamente vazias. Eles chegaram ao carro rapidamente, com alguns tropeços aqui e ali da Raquel, mas nada alarmante. Os assentos de couro do carro estavam gelados quando sentaram-se neles.

A rota que tomaram estava tão deserta quanto as ruas. Eles chegaram em pouco menos que 10 minutos na casa que Raquel apontou como sua. Era um complexo de apartamentos. Amélia desceu do carro para ajudá-la até em casa.

O porteiro a deixou entrar assim que viu o estado de uma das moradoras. Raquel acenou para ele, rindo novamente, enquanto Amélia a levava para dentro dos muros. O nome do prédio de Raquel era Sacre Coeur, por estar no centro do complexo.

Já dentro do elevador, Raquel errou o botão umas sete vezes. Acabaram parando no terceiro, no quinto, no sexto e no nono andar antes de chegarem no décimo segundo. Pararam frente à terceira porta à esquerda. O tapete de Boas Vindas, vermelho como a roupa do Papai Noel, ainda não estava desgastado.

— Você consegue se virar lá dentro? — perguntou, preocupada. Raquel tentou enfiar a chave na fechadura, mas não conseguia acertar a mira. Amélia pegou a chave de sua mão e a abriu, mais um ato de dó que qualquer coisa. O apartamento, que ela vislumbrou pela porta, era incrivelmente arrumado. — Se quiser, posso te ajudar lá dentro e...

— Não, obrigada. — Raquel se enfiou na pequena abertura da porta. Seus saltos já estavam em suas mãos, e Amélia reparou que ela, no lugar de jogá-los para trás, cuidadosamente os colocou numa sapateira perto da porta. — Posso me virar sozinha agora.

Estava claro que Raquel não a queria ali. Amélia até se sentia um pouco ofendida, já que tinha tido o trabalho de levá-la até sua casa, mas tentou ignorar a sensação. Buscou um papel dentro de sua bolsa e rabiscou o número de seu celular.

— Bem, então vou deixar meu número de contato, se precisar de alguma coisa, é só chamar. Até logo. —E virou-se nos calcanhares. Entretanto, Raquel segurou seu cotovelo e a puxou de volta para a soleira de sua porta.

— Vai embora sem um beijo de despedida? — brincou, mas seu olhar disse a Amélia que não estava realmente brincando. Ela se aborreceu.

— Olha, Raquel, eu tenho um namorado e...

Foi interrompida pelo beijo, que veio como uma onda quebra nas rochas de um penhasco. Desta vez, era mais que um selinho. A língua de Raquel era quente na sua e o gosto era de álcool, meio amadeirado, possivelmente uísque amadurecido.

As mão de Raquel subiram por sua nuca, causando arrepios e tremores em sua mão, que logo se moveu para afastá-la de si. O calor em sua boca sumiu e com ele os arrepios. As duas ofegaram.

— Desculpa — Amélia disse por fim, se afastando. Os saltos de sua bota não fizeram barulho contra o chão do hall, uma vez que este estava coberto por carpete.

— Ei, você ainda não me disse seu nome! — Veio o grito lá de trás, mas Amélia já estava dentro do elevador e descendo.

Ela acenou para o porteiro enquanto entrava no carro. Seu namorado tinha ligado o aquecedor e ela tirou seu casaco para jogá-lo no assento de trás. Ele pousou a mão sobre seu joelho.

— Que loucura — ele comentou, rindo. Seu cabelo loiro estava todo desgrenhado, uma bagunça total. Seus olhos estavam com olheiras. Mas seu sorriso continuava brilhante, como sempre fora.

Isso que você não sabe do beijo, ela pensou amargamente. Não sabia do beijo, nem de que ela tinha gostado, nem de nada.

— Vamos para casa? — pediu.

— Vamos — ele riu, de volta. O calor de sua mão deixou seu joelho. — E nós dois temos de tomar um bom banho. Estamos cheirando a cigarro.

Y

As portas do metrô já estavam se fechando, e ela correu, correu e pulou para dentro do vagão. Estava atrasada, ainda não terrivelmente atrasa, mas atrasada. Tadeu rasgaria sua garganta se soubesse que ela tinha se atrasado.

O metrô estava lotado pelo horário, infelizmente. Teve de manter-se de pé para a viagem, algo que a desagradou terrivelmente. Em seus melhores dias, talvez tentasse pensar na boa ação que estava fazendo ao deixar aquela senhorinha sentar no lugar que tinha acabado de ficar vago, mas estava em um de seus piores dias; sua têmpora estava doendo tanto que parecia que alguém a estava martelando. Maldita ressaca.

Estava chegando ao seu destino. A estação Rochefort era a mais próxima do teatro em que trabalhava, o Teatro que carregava o mesmo nome. Logo, esta foi anunciada e Raquel estava saindo do metrô, se esquivando por entre os outros passageiros.

O vento frio de inverno acalentou suas bochechas momentos depois. Era bom estar fora de ambientes fechados, principalmente no inverno, quando ela ficava neles por horas e horas e horas. Sua mãe era latina, a necessidade pelo Sol corria em suas veias.

O Teatro ficava a duas quadras da estação. No caminho, tinha uma padaria, que emanava um cheiro delicioso de confeitos, um correio e um grande estacionamento, este pegando um quarteirão inteiro. Era natural que houvesse um deles, já que havia um grande centro de entretenimento logo do lado.

O aroma de pães a acompanhou até o teatro, quase fazendo-a se arrepender de ter tomado a escolha saudável; fruta com cereais. Seu estômago se revirou só de lembrar. Sentia falta dos dias em que levava a dança na esportiva e comia tudo que tinha direito. Agora que a tinha como profissão, tudo tinha de ser controlado. Um horror, contava aos amigos.

Desceu as escadas do fundo do teatro de dois em dois degraus. A construção em si era antiga; feita de pedra, era alta e toda decorada. Ela, pessoalmente, achava que o projeto parecia mais com o de uma igreja, não fosse as colunas gregas na fronte. Mas esse pequeno fato não tirava a magnanimidade da construção, de forma alguma.

Quando adentrou o salão, deparou-se com suas colegas já no aquecimento. Viu o olhar delas, julgando-a, enquanto se dirigia para o vestiário. Só esperava que Tadeu não tivesse visto também.

Nunca vestira sua meia-calça e collant tão rápido antes. Saiu tal como um raio logo depois, tentando calçar as de ponta enquanto andava. Tropeçou umas duas ou três vezes, mas o esforço foi compensado quando estava à barra, pronta e fazendo um grand plie e Tadeu entrou correndo, nem notando que ela mal sabia a sequência.

Entretanto, sua alegria durou pouco. Logo, Odete se dirigia a todos e todos e os mandava para o descanso, o que era curioso, já que eles tinham, quase religiosamente, uma hora de alongamento, todos os dias. Não tinha se passado nem vinte minutos.

No caminho de volta para o vestiário, todos cochichavam.

— Ei, Raquel — Arisa lhe chamou, cutucando-a com o cotovelo nas costelas. Seus olhos, um charmoso tom de mel, estavam arregalados de curiosidade. — Você sabe o que é tudo isso?

— Ia perguntar o mesmo pra você — Raquel replicou, colocando uma mecha de cabelo que tinha se soltado atrás da orelha. O coque estava mal-feito, teria de refazê-lo depois. — Eu cheguei atrasada. Disseram alguma coisa antes de eu chegar?

Arisa negou com a cabeça, mexendo na barra de sua saia transparente. — Não. Odete nos levou para a sala de ensaios, como sempre, e nada mais aconteceu. Tem alguma ideia do que seja?

Parou para considerar. — Talvez tenham decidido a peça de primavera.

— Faz sentido. — Ponderou, logo depois indo tomar café. Raquel foi para o outro lado, de volta para o vestiário, e sentou-se na sua cadeira. O seu coque já estava aos pedaços, infelizmente. Soltou seus cabelos novamente, e penteou-os de volta ao lugar que deveriam estar. Ela não tinha passado maquiagem, mas os resquícios do delineador pesado deixavam seu olhar mais intenso. Era curioso se ver daquele jeito.

Pousou as mãos no colo e ajeitou os ombros. Por alguma razão, a imagem no espelho parecia impor mais respeito e decência do que antes. Observou cada traço, entrando em um transe, mas logo Odete apareceu à porta, pedindo que lhe seguissem.

Como garotinhas disciplinadas, todas seguiram, em fila indiana. Caminharam até o salão, e Odete lhes disse para esperar enquanto buscava os homens. Todas ficaram em pé, ainda em posição, por somente mais alguns minutos. Logo, estavam todas novamente cochichando.

Eles chegaram da mesma forma que elas tinham chegada. Acomodaram-se nas coxias do palco, e os murmúrios aumentaram de tal forma o volume que Odete voltou correndo, pedindo logo que todos se aquietassem.

— Tente de novo! — veio um grito do palco. A voz era de Tadeu, e logo a atenção de todos estava no que acontecia no palco.

Uma música começou a tocar. Todos prestaram atenção enquanto Tadeu se retirava para uma das coxias opostas à que estavam. Raquel rapidamente correu para mais próximo da saída das coxias.

No palco, estava uma mulher. Ela tinha pele branca como flocos de neve, cheia de sardas. Seu collant era negro, sua meia-calça era tão grossa que só se via o cinza e suas sapatilhas eram de cetim. Ela estava de olhos fechados, sentindo a música, enquanto se movia de um lado para o outro.

Raquel sabia que peça era aquela. A música, os movimentos. Não havia dúvidas; era Giselle.

E que Giselle eles tinham escolhido para o papel principal.

— Abra mais os braços! — gritou Tadeu novamente, e ela fez como era pedido. Sua pose estava impecável, e por estar em suas pontas, um sentimento de submissão domou o coração de Raquel.

A música acelerou. A desconhecida começou a fazer piruetas, girando em seu próprio eixo. Em um dos giros, o movimento foi tão intenso que seu elástico de cabelo arrebentou.

Cabelo ruivo, parecendo pegar fogo sob a luz amarelada dos holofotes, cobriu sua cabeça inteira, formando uma nuvem em chamas. Ela continuou a dança, os olhos fechados mostrando porque ela não tinha se importado com o que tinha acontecido. Suas sardas davam a impressão de que as cinzas de suas chamas já tinham se espalhado por seu corpo.

Ela estava incrível.

O pianista, Sr. Fernandes, cessou a música. A desconhecida ruiva entrou em pose de descanso, pegando um elástico do pulso e jogando todo o cabelo para trás. Amarrou-o em um rabo precário, e ele se espalhou por seus ombros como lava.

— Bravo, bravo! — gritou Tadeu, finalmente entrando no palco.

Todos se viraram para o diretor, que sorria como um maluco. A ruiva se curvou, seu cabelo caindo por cima de sua cabeça, e se levantou novamente, ajeitando os ombros. Ela sorriu graciosamente.

O coração de Raquel bateu mais rápido.

— Graciosa como sempre, Amélia — ele elogiou, batendo nas costas da bailarina carinhosamente. Tadeu a virou para a pequena platéia com a delicadeza com que alguém colhe uma flor.

— Obrigada — ela respondeu timidamente, um sorriso delicado em seus lábios.

— Pessoal, gostaria de ter a atenção de todos. — Os burburinhos pararam. — Esta é Amélia e, como vocês devem ter percebido, ela representará Giselle na peça deste outono. Espero que todos se dêem bem.

As palavras saíram como ruído para Raquel. Continuou encarando Amélia sem pudor, os olhos focados no rosto. Ela a conhecia de algum lugar...

Quando Tadeu pediu para os grupos se apresentarem para ele no dia seguinte, ela balançou a cabeça, jogando fora os pensamentos. Não importava.

Pelo menos, ela achava que não.

Y

Amélia, ao chegar em casa, fez pouca coisa além de chutar seus sapatos para fora de seus pés e cair no sofá. Esse tinha sido escolhido por causa de suas altas e macias almofadas, que formavam um pufe praticamente. Era delicioso. Era perfeito.

Estava quase dormindo feliz quando ouviu uma chave na fechadura. Grunhiu no travesseiro; aquele era um péssimo horário para seu namorado estar ali.

— Amélia — ele chamou em uma voz cantante, colocando algo envolvido em plástico no balcão. Se ele tinha feito compras, significava que ele ia cozinhar, ou seja, ele esperava algo a mais daquela noite. E ela simplesmente estava cansada demais.

— Estou cansada, Rodrigo — murmurou, ainda com a cabeça enfiada em uma almofada lilás. — Vá pra casa.

— Eu tava pensando em a gente assistir alguma coisa aqui... — Ele a ignorou, se agachando em frente à TV e ligando o DVD Room. — Talvez um clássico, tipo Indiana Jones?

— Ugh. — Ela jogou uma almofada nele, que pegou e riu.

— Vamos, acorda. — Jogou-a de volta, acertando o topo de sua cabeça e batendo perigosamente no abajur do lado do sofá, que, felizmente, não caiu.

— Eu encontrei a moça de ontem, Rodrigo — confessou, finalmente se virando para encará-lo. — A bêbada, que mora aqui perto. Raquel.

— Ela trabalha no Teatro?

— Trabalha, aparentemente. Como bailarina. A forma dela é incrível. — Cobriu a cabeça com a almofada de antes, frustrada. — Acho que ela não me reconheceu. Não veio falar comigo.

— Ela estava bêbada, Amélia — Rodrigo argumentou sensivelmente. — Além do mais, por que ser lembrada por ela é tão importante para você?

— Porque... — Interrompeu-se quando percebeu que ia falar do beijo. Seu coração falhou uma batida só de se lembrar dele, do jeito que os lábios dela eram tão cheios e macios que pareciam pequenas almofadas contra sua boca, do jeito que a língua dela se movia dentro de sua boca, do jeito que o corpo dela se esfregou contra o seu. Afundou a almofada ainda mais no seu rosto para esconder sua vergonha. — Sei lá!

Rodrigo a olhava de um jeito estranho, podia sentir isso. A pausa na conversa era indicador suficiente de seus pensamentos.

— Bem — continuou e beijou a testa de Amélia antes de se levantar e ir para a cozinha. —, eu acho que é melhor eu começar a trabalhar na lasanha.

— Hmm — foi a resposta antes de ela cochilar ali mesmo, no sofá.

Y

Foi decidido, quase que instantaneamente, que Amélia era a novata mais legal que a companhia tivera há anos. E, assim sendo, foi também decidido todos sairiam para comemorar sexta à noite.

Na semana, Amélia conhecera a todos. “Conhecera” até Raquel, que viera lhe cumprimentar com um sorriso no rosto e sapatilhas ainda desamarradas. Ela era uma garota simpática, isto é, quando não estava completamente bêbada. Seus lábios permaneceram, quase desapontadamente, intocados pelos dela durante aquele tempo.

Aquele tinha sido um dia corrido. Tadeu, carrancudo por alguma coisa que aconteceu com seu esposo, exigira tanto dela que depois do treino suas pernas tremiam. Ela sabia que Giselle seria difícil, mas depois de fazer duzentos espacates, quinhentos pas de deux e inúmeros arabesques, seu corpo gritava que teria sido melhor ela ter recusado.

Não que ela um dia teria recusado, não, nunca! Era ainda o melhor papel que já tivera e era o que ela mais tinha expectativa quanto a sua própria performance.

— Amélia!

Virou com as sapatilhas em mãos, sentindo os dedões do pé se esticarem lentamente da posição amassada em que estava de tanto ficar em ponta naquele dia. A voz lhe era extremamente familiar; afinal, tinha sido a voz que a perseguira durante todas as noites da semana, seguida por mãos atrevidas, o toque na sua nuca se repetindo em todo tipo de lugares em seu corpo. Nesses sonhos, a tocava, também. Envolvia suas mãos em sua cintura e a apertava como se quisesse que suas mãos derretessem e começassem a fazer parte de sua pele.

Raquel corria atrás de si com um sorriso nos lábios e o coque praticamente desfeito, com toda a franja caindo em seus olhos. Amélia sorriu de volta.

— Raquel — cumprimentou, os olhos tentando desesperadamente esconder o pânico ao olhar pra ela, com as bochechas coradas daquele jeito, e lembrar de tudo com que sonhara até então.

— Você vai hoje, não vai? — brincou ao chegar perto, jogando os fios desarrumados de cabelo castanho para trás. Estavam indo para o vestiário, junto com mais uma horda de bailarinos e bailarinas. — Nós vamos num bar perto dos Jardins, o Lexucan. Conhece?

Amélia negou com a cabeça. Era, na verdade, praticamente nova em Supremus; tinha vindo de sua cidade natal para os testes de escalação com seu namorado, que tinha arranjado emprego na área como personal trainer. Rodrigo, entretanto, conhecia a cidade, e bem. Tinha cursado a faculdade de educação física ali.

— Ah, então a gente se encontra no meu apartamento e eu te levo lá, sem problemas. É perto de uma estação de metro, inclusive.

— Perto da Zerada, não?

— Sim, sim... Espera, como sabe?

Quando percebeu o que fizera, mordeu a própria língua. Ainda não tinha contado a ela sobre aquela madrugada de segunda.

— Ah, a Natália tava me falando algo a respeito esses dias — respondeu rápido. Natália era uma exímia bailarina, seus movimentos detinham uma tração inquestionável, mas era tão boa dançarina quanto boa faladeira. Falava, falava, falava e falava mais um pouco, só pra terminar. — Nem sei por que chegamos nesse assunto. — Riu, disfarçando. Empurrou a porta do vestiário.

—De qualquer forma, é isso mesmo. Quer que eu te encontre na estação ou você conhece o complexo Paris?

— Conheço, conheço — assegurou-a enquanto separava suas roupas para depois da ducha rápida que tomaria nos chuveiros ali. Seu suor estava fazendo seu collant ficar ensopado e seu cabelo ficar ensebado no coque ainda feito. — Te encontro lá às oito?

— Claro. — E desapareceu dentro de um Box.

Amélia sorriu por dentro e corou por fora. Estaria de volta à “cena do crime” aquela noite.

Y

Raquel olhava de minuto em minuto para porta. Estava pronta há dez minutos, e sabia que Amélia só devia chegar dali vinte minutos, mas não conseguia evitar. Tinha pensado a seu respeito durante a semana inteira, tentando se lembrar de onde a vira. Fizera a si mesma esquecer o sentimento; provavelmente, a vira durante alguma apresentação e estava se lembrando aos poucos. Não era nada que devesse ocupar sua mente por tanto tempo.

Estava passando pela terceira vez na fileira de comédia do Netflix quando a campainha tocou. Desligou a TV e correu para a entrada, seus stilettos batendo um no outro em suas mãos. O sino nem terminou de tocar quando ela arrancou a porta de seu batente.

Amélia usava um vestido e uma meia calça grossa com botas, seu agasalho em seus braços. Estava com a cara fechada, apesar de estar tentando forçar um sorriso.

— Vamos? — ela perguntou, continuando a farsa. Raquel sabia melhor do que cair pelo seu truque, mas não disse nada, só afirmando com a cabeça e trancando a porta atrás de si.

Desceram o prédio e caminharam pelo térreo do condomínio. O vento estava gelado, normal para o outono. O porteiro, olhando-as com cuidado, abriu o portão rapidamente, e logo estavam descendo a rua.

O bar ficava perto da estação Transfire, o nome do Jardim Real da cidade. O metrô estava cheio naquele horário, embora a maioria descesse no Brunx, a parada da avenida das baladas.

O Lexucan ficava em uma esquina a duas quadras da estação. Era um bar charmoso, com varandas fechadas com vidro e vários aquecedores nas mesas. Raquel já avistara Arisa e as outras lá dentro, em uma mesa bem no meio do recinto.

Quando entraram, uma música bem ambiente estava tocando, alegrinha, mas nada de especial. Jack Johnson, talvez. Raquel preferia eletrônicas, então não conhecia nada do gênero.

Tiraram os casacos e os colocaram apoiados em suas cadeiras enquanto cumprimentavam o pessoal. Larissa, uma das meninas mais quietas, só bebericou sua cerveja e assentiu levemente em resposta. Thaís, a melhor amiga de Natália, usava um vestido lindo, curto e justo. Ela segurava a mão de seu namorado, um cara com olhos gentis e camisa social.

— Raquel — Arisa a cumprimentou, bebericando algo que cheirava a vodka. — A batida de morango de hoje está sensacional.

A frase poderia ser tida como natural, mas o sorriso de sua amiga a entregou, assim como o ligeiro brilho em seus olhos. Um brilho de diversão e travessuras.

— Não me diga que Daniela está aqui — reclamou, querendo bater a cabeça na mesa por já saber a resposta. A garota fazia a melhor batida de morango batizada de vodka da cidade.

Daniela tinha sido o caso de uma noite mais intenso que tivera, mas também o pior caso de manhã seguinte possível. Elas se conheciam do bar, mas tudo acontecera quando se encontraram em um clube de dança no centro da cidade. Só foram identificar quem eram com quem estavam se pegando quando estavam já dentro do banheiro feminino, os dedos nas intimidades uma da outra e os seios molhados de tantos beijos. Tinham esbarrado no interruptor.

Claro, não pararam; estavam já dentro da coisa e nenhuma das duas era compromissada, então, por que não? A resposta para essa pergunta Raquel descobriu no dia seguinte; para Daniela, aquele caso não pararia ali, e Raquel nunca que iria permitir que continuasse.

Assim, os resultados a perseguiam até hoje; a estranheza com que Daniela a tratava, os drinks malfeitos e ainda assim potentes – que mais de uma vez, fizeram-na acordar no apartamento da outra –, tudo.

Ela simplesmente não achava que conseguiria lidar com isso naquela noite.

— Sim, ela está. Tome cuidado para não acordar nua na cama dela, de novo.

— Há, muito engraçado — replicou, mal-humorada. Arrancou a batida da mão de Arisa, sabendo que esta tinha somente álcool e, portanto, estava fora de riscos. A outra riu antes de ir pedir mais uma.

Raquel teve poucos segundos de paz antes de Natália, já animada, jogou os braços ao redor de seu pescoço e o apertou com afeto.

— Raquel — sussurrou, bêbada. Seu riso alto, entretanto, foi o suficiente para chamar a atenção de todos ao redor. — Eu e a Thaís estávamos pensando em ir a um clube. E como todo mundo sabe que você é a expert nessas coisas, queríamos saber a sua opinião.

Ela revirou os olhos. Natália só queria fazer uma cena, e queria simplesmente fingir que nada acontecera e seguir com a noite, mas os olhos de Amélia estavam em si e não podia tampouco perder uma oportunidade de se mostrar.

— Dizem que tem um clube novo, perto do Shopping Villa Lobos, a duas estações daqui. — Bebericou a batida, sentindo já os efeitos do álcool começarem a corar suas bochechas. Ainda estava sóbria, e aproveitaria disso. — O nome acho que é... Venom.

— Eu ouvi falar que esse lugar é demais — comentou casualmente Larissa, que estava terminando seu copo de cerveja e tão sóbria como de manhã, no ensaio. Todas a observaram, inclusive Arisa, que estava chegando com dois copos de batida de morango. — Tenho uma amiga que é DJ lá, a Riley. Ela pode nos deixar entrar pelo camarote dela e nem teremos de pagar.

— Que incrível, Lari! — Thaís exclamou, batendo as mãos para dar ênfase. O namorado dela, sorriu e a puxou de volta para seu colo. — A gente devia ir lá. Tipo, agora.

— Acho uma boa ideia — concordou Amélia, e Raquel a olhou surpresa. Não esperava que ela fizesse o tipo baladeira, mas bem, ela também não esperara isso de Larissa, não é?

— Vou mandar uma mensagem para ela, e a gente pode ir indo no caminho. — Larissa pausou, olhando para todas. — Deixamos na conta?

— Claro — Arisa respondeu, olhando com pesar para as batidas que teria de deixar para trás. Desesperadamente começou a beber de um dos canudos, fazendo Raquel rir.

Y

Raquel estava completamente bêbada, mas a música era boa e seu coração estava no mesmo ritmo que as batidas. Seu vestido tinha subido tanto por seu corpo que ela não tinha mais certeza se sua calcinha estava aparecendo ou não – não estava, tinha checado enquanto estava no bar, pedindo mais uma gim tônica –, mas a dança percorria suas veias como fogo. Um fogo que a fazia se sentir bem consigo mesma e sorrir sensualmente para desconhecidas, mesmo que metade fosse hétero e ignorasse suas tentativas.

A batida da música acelerou e seu coração aumentou sua velocidade junto. Ela tinha se perdido há tempos do resto do grupo, tendo sido levada para a batida enquanto algumas tinham sido levadas para o bar e outras levadas para os quartos lá em cima por seus namorados e namoradas. Amélia, em especial, tinha sido levada direto para o bar, porque, como Arisa dizia, não era uma iniciação se você não ficasse tão bêbada que não se lembraria de nada no dia seguinte.

Não a tinha encontrado, entretanto, em nenhuma de suas inúmeras visitas ao bar. Tinha ido lá umas seis vezes já, voltando para a pista cada vez mais bêbada e menos ainda arrependida.

A música acabou, e uma de ritmo mais lento começou. Já eram três da manhã, ela já estava cheirando a cigarro, de todos os tipos, inclusive, e muita gente fora para casa. Sua mente já não estava tão bêbada quanto tinha esperado estar, devia ser efeito da bebida, mas isso podia ser resolvido rapidamente.

Desviou de todo tipo de pessoas em sua andança de volta para o bar. Se jogou no balcão, sorrindo para o garçom e pedindo uma shot de tequila com o auxílio de seu decote. Praticamente caiu em cima de um dos banquinhos, piscando para a garota do outro lado do bar, que corou e desviou o olhar. Riu, arqueando as costas e jogando o cabelo para trás, mostrando seu corpo.

Um holofote foi desviado para a área do bar e nele, ela viu um brilhante cabelo vermelho. Quase em chamas, inclusive. A mulher dona dele estava de cabeça baixa, mexendo em sua bebida com o canudo sem realmente prestar atenção no que estava fazendo. Pelo sorriso em seu rosto e pelo olhar enevoado, ela estava completamente bêbada.

Amélia.

O barman deslizou seu copo de shot de tequila para perto, não derramando nem uma única gota enquanto o atrito o forçava a parar. Raquel o pegou e o esvaziou sem nenhum olhá-lo direito; sua mente estava enevoada por estar vendo Amélia daquele jeito. Suas pernas se cruzaram inconscientemente.

Ela, também, estava completamente bêbada, e era de seu costume cometer os maiores atos de coragem nesse estado.

— Amélia! — cumprimentou, sentando do seu lado. Ela levantou o olhar de seu mojito quase intocado e a encarou, um sorriso iluminando sua face segundos depois. No mesmo período de tempo, entretanto, seu sorriso se apagou.

— Raquel — cumprimentou com um muxoxo.

— Ei, o que houve?

— Sabe, Raquel... — começou, mexendo no sal da borda da taça com a pontinha do canudinho. Parecia até envergonhada. — Eu e meu namorado brigamos antes de eu vir para cá.

— Sério?

Raquel não sabia que ela tinha namorado. Tinha tomado a informação quase como ofensa, mas não ligaria para isso agora.

— Ele não queria que eu saísse sem ele — reclamou, com um bico. — Além disso, ele tem sido um chato!

— Que horror — Raquel incentivou, não ligando para a natureza infantil dos argumentos. Se Amélia dissesse que tinha terminado com o namorado, seu dia melhoraria.

Infinitivamente.

— Além do mais, eu ainda não contei a ele sobre nosso... pequeno segredo. — Amélia olhou para ela tão sugestivamente que não restaram dúvidas; o segredo tinha a ver com ela.

— Segredo?

— É, quando você me beijou, naquela festa... E depois, na frente da sua casa... — Suas palavras saíam embaralhadas, e Raquel chegou à conclusão mais óbvia: Amélia estava bêbada e imaginando coisas. — Não se lembra?

— Claro que me lembro — mentiu, e Amélia sorriu.

— Sabe, eu não parei de pensar nesse beijo a semana inteira... Foi tão intenso, tão novo, entende?

— Entendo. — Raquel olhou em volta e percebeu pela troca de DJ que já deviam ser quatro, agora. Estava realmente tarde. — Você mora com seu namorado? Quer passar a noite em casa?

— Ahn, claro.

Raquel não soube exatamente para qual pergunta aquela era a resposta, mas agarrou o braço dela e a puxou para a saída, parando no lugar dos casacos para recuperá-los. Logo, tropeçavam para a noite fria, e por alguma razão a situação lhe dava uma sensação de deja vu na base do estômago.

Depois de pegar o metrô – graças a Deus que a Zerada era na mesma linha – estavam logo de volta ao complexo de apartamentos Paris. Raquel não se importou em chamar o porteiro; pegou a chave de sua bolsa e foi direto para o apartamento. O elevador não demorou muito, mas ele não estava nem na metade de seu caminho quando Amélia começou a se apoiar mais e mais em seu ombro, ao ponto de começar a pesar.

Abriu a porta com a mão esquerda, levando um bom tempo para encaixar a chave na fechadura. Desceu de seus saltos assim que adentrou as portas, colocando cuidadosamente os stilettos na sapateira do lado da porta, uma mania sua. Amélia nem se moveu.

Amaldiçoou a Deus e ao mundo. Amélia parecia completamente adormecida em seu ombro, e teve de puxá-la para a cama. Dormiria no sofá naquela noite.

Entretanto, mal o corpo da outra tocou a cama e seus olhos se abriram em alarme. Ela sentou no colchão, seu vestido não servindo para cobrir mais nada, uma vez que a saia tinha subido tanto que estava em sua barriga. Raquel desviou o olhar.

— Ei, olha aqui. — Tocou sua mão, trazendo-a pra perto. O olhar de Amélia estava, mais uma vez enevoado, mas parecia ser por outra coisa. O coração de Raquel falhou uma batida ao perceber pelo quê.

Desejo.

Desejo carnal, expresso ali pelo jeito que seus dedos se enrolaram ao redor dos seus. Pelo jeito que ela mordeu os lábios e cruzou as pernas. Pelo rubor que preencheu seu rosto e não foi combatido. Pelo eriçar dos pelos no braço.

— Amélia — sussurrou. De repente, um puxão mais forte foi dado, e Raquel caiu com tudo. Amélia riu e a virou na cama, tomando seus lábios em um selinho.

Raquel foi acometida novamente pela sensação de deja vu, mas deixou isso de lado e resolveu aprofundar o beijo. Tomou os dois lados do rosto sardento de Amélia entre suas mãos e a puxou, erguendo sua perna para atravessar as da outra e esfregar sua coxa em sua intimidade.

O gemido, seguido do seu vestido sendo desesperadamente puxado para cima, foi o suficiente para Raquel resolver que aquilo era, sim, uma boa ideia.

Afinal, quem estava ali para contestar?


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Notas finais do capítulo



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