Vatriesse escrita por Gazervici


Capítulo 3
Mácula


Notas iniciais do capítulo

Capítulo mais cedo porque amanhã não vou conseguir postar o/



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— Vejo que já se acalmou, zai Zisaro.

Acalmar era um eufemismo, forma educada de pôr a situação. Depois de serem necessários três enfermeiros para o impedir de sair do quarto e mais um para trancar a porta, ativar o sistema de insonorização do quarto e o tentar demover de se ir embora, e alguns esforços conjuntos para o impedir de arrancar as próteses com as próprias mãos, chegara finalmente a médica responsável pelo seu caso — altura em que o olho e a garganta lhe ardiam intensamente e os músculos tensos latejavam, o que o demoveu de continuar a debater-se.

— Eu não consenti — a voz soava-lhe rouca e áspera — a que me fizessem isto.

A médica ajustou os óculos, os olhos amendoados de um verde escuro e acastanhado a fitarem-no numa melancólica empatia. Dispensou os quatro enfermeiros, que suspiraram de alívio ao deixarem o quarto. Sentou-se na cama, afastando a bata branca do caminho, e gesticulou para que fizesse o mesmo.

— Posso chamar-te Dominic? — Ele assentiu, sentando-se a seu lado com a cabeça baixa — Dominic, a lei diz que as Intervenções Tipo I, que inclui a colocação de próteses, são consenso tácito. Se não quisesses ser consertado, tinhas de ter assinado um documento em como não desejavas que te operassem se algo te acontecesse. Caso contrário, este é o procedimento padrão: ajudar e melhorar a qualidade de vida de todos os cidadãos em caso de acidente.

— Ninguém me disse isso — do pânico, sentiu uma raiva a ferver dentro de si. Voltou a olhar para os braços, metade do direito e o esquerdo completo num exosqueleto metálico brilhante, os dedos a moverem-se como os seus, mas a sensação de toque desaparecida — Isto não ajuda. Isto não ajuda em nada. Não quero—

Foi inundado por um ataque de choro convulsivo. Jogou as mãos à cara para tapar os olhos, mas afastou-as assim que sentiu o frio do metal na pele. Era inundado por vagas de pânico, medo, repulsa de si próprio. Repulsa, principalmente. Ódio daquilo em que se tornara — não, daquilo em que o tornaram. Forçou-se a falar por entre o soluçar e as lágrimas.

— Por favor — só aí notou que a médica tinha uma mão pousada nas suas costas, mantendo porém uma distância respeitável, as sobrancelhas contorcidas em algo que se assemelhava a preocupação — por favor, tire-me as próteses. Não preciso delas. Não as quero. Não posso viver assim.

Ela abriu a boca para falar, mas impediu-se. Esperou que o choro do rapaz acalmasse, até se resumir a um fungar esporádico. As lágrimas desciam-lhe pelas faces e incomodavam-lhe o olho, apenas um, o que ainda era seu, mas não tinha quaisquer intenções de os limpar, de levar as mãos de lata ao auxílio do seu corpo orgânico. Finalmente, a médica falou:

— Entendo que isto seja difícil para ti. Li o teu ficheiro, sei de onde vens, e sei as… doutrinas pelas quais se rege a tua comunidade. Se realmente desejas remover as próteses, tens de esperar que sarem completamente, e que tenhas alta. Só depois podes requerer um novo procedimento para a sua remoção. Mas, por favor, deixa-me aconselhar-te uma coisa: dá-lhes uma oportunidade.

Dominic levantou finalmente os olhos para ela, um cinzento raiado a sangue e um vítreo, mecanizado, uma esclera amarelada e uma íris transparente com fios de cobre e micro-engrenagens distinguíveis no interior, rodeando um minúsculo núcleo de éter a fazer o lugar de pupila. A sua expressão acusava-a, julgava-a, dizia sem falar que não lhe interessava qualquer oportunidade. Ela suspirou e continuou:

— Escuta, eu não te estou a pedir que não as tires, isso é uma decisão tua. Só estou a aconselhar a que reconsideres. Quando vivemos muito tempo num pequeno mundo, escapam-nos perspetivas diferentes, ideias em grande plano, mundos mais amplos, que talvez até nos façam mais felizes. Talvez melhores, talvez piores, talvez apenas diferentes. Mas vale a pena experimentá-las primeiro, para depois não nos arrependermos.

Dominic não respondeu. Virou a cara, a sua mente a recusar completamente toda aquela porcaria que lhe estava a ser impingida, porém sem vontade de discutir. A doutora levantou-se.

— Tudo bem, então. Não tentes arrancar as próteses por ti. Eles sedam-te, arranjam-nas, e acabas por ter de ficar cá mais tempo. Deixa que elas sarem. Depois de saíres, logo voltas para as tirar.

— Não posso ter metal muito tempo no corpo — ripostou — vai envenenar-me o sangue. Vou ficar sujo com os químicos artificiais para sempre.

Ela lançou-lhe um sorriso débil.

— Mundos pequenos, zai Dominic Zisaro. Que faças a decisão que considerares adequada.

**

Irina e Silas cruzaram-se com os quatro enfermeiros pelo caminho. Estes desviaram a sua atenção dos queixumes que resmoneavam entre si para os cumprimentarem calorosamente, com perguntas sobre a sua saúde, com o que se tinham entretido nesses últimos dias, o que estavam a fazer. Ambos os pacientes achavam libertador poderem dizer abertamente os seus problemas aos enfermeiros — se lhes doía a cabeça, uma prótese guinchava nas dobradiças, ou lhes incomodava um vizinho barulhento. Conheciam-nos pelos nomes, falavam com eles como velhos amigos. Silas deixou que dois enfermeiros lhe analisassem com brevidade as ligações entre a palma da sua mão de bronze e o polegar, Irina esticou-se nas pontas dos pés, com os braços alçados em direção ao teto, para mostrar que a sua coluna vertebral metálica, parte interna e parte em exosqueleto, funcionava na perfeição. Porém, foram evasivos na resposta à última pergunta.

— Eh, andamos por aqui. A fazer o mesmo de sempre, não há muito por onde inovar.

— Iep. O mesmo. Nada mais.

Uma das enfermeiras, o cabelo de um negro inumanamente escuro preso num coque alto, dava de ombros com um sorriso consolador. Oh, meus queridos, bem sabemos que acabam por se aborrecer, dizia-lhes. Fiquem descansados, daqui a nada têm alta, acrescentava um enfermeiro baixo e ruivo. Afagavam-lhes a cabeça como se de crianças de tratassem, e seguiam caminho já falando de novo assunto. E Irina e Silas prosseguiam corredor adentro, os passos abafados pela falta de sapatos de ambos.

— Acho que o barulho veio deste lado… confirmas? — Silas perguntou, espreitando pelas tiras de vidro nas portas dos quartos.

— Não me perguntes a mim. Sou horrível com tudo o que seja de ouvir — retorquiu a rapariga, a mimicar-lhe o movimento de tentar distinguir os pacientes nos cubículos. De repente, estacou — Silas, nós nem sabemos como ele é!

O rapaz estacou também. Rodou sobre si mesmo, virou-se para a rapariga com uma expressão pensativa.

— Podemos sempre perguntar a alguém conhecido — sugeriu o rapaz, o olhar fixo num dos quartos a alguns metros de si — alguém por estes lados que o tenha visto chegar, e nos possa dizer onde está, ou pelo menos como é.

— Por estes lados? — Irina apontou com o braço esticado na direção dos quartos para onde ele olhava — Quase ninguém desta zona sai sequer do quarto. E nem conhecemos ninguém daqui! Queres o quê, que entremos num quarto qualquer tipo “Oi, boa tarde! Estamos à procura de um Puritano que, ironia das ironias, veio parar a esta Ala atulhada de gente mecanizada! Não lhe somos nada, estamos só curiosos, por acaso não o viu passar?”

— Olha, o discurso até nem está mau.

Silas.

— Está bem, pronto. Também não deve ser assim muito difícil encontrá-lo sozinhos. É um rapaz da nossa idade, mais ou menos? Procuramos um rapaz assim, que não conheçamos…

— Vocês não vão falar com ele.

Viram-se ambas as cabeças em mal disfarçado receio. Nunca antes a figura alta e esguia da médica lhes pareceu amedrontadora, mas naquele momento, os braços cruzados, os ombros tensos, as feições de desaprovação – tudo nela os faz arrepender todas e quaisquer decisões que os levaram àquele corredor mal iluminado.

— Doutora—

— Doutora Marise, nós só estávamos—

— Pensámos que seria bom se—

— É que o rapaz deve estar um bocado—

— Nunca ninguém para aqui muito tempo, pensámos—

A voz dela elevou-se, numa calma troante:

— Quietos. Vocês não podem ir falar com o rapaz de Diavena. Sabem muito bem que ele é dos Puros — pronunciou a última palavra sibilando em moderado asco, uma torção nas sobrancelhas denotando-lhe imediatamente o arrependimento. Não era suposto ser parcial, devia tratar todos os seus pacientes com respeito, independentemente de crença ou valores.

Mas, enquanto tocava ao de leve na perna que, sabiam, era mecanizada, perguntavam-se se não seria difícil, por vezes, aguentar todo o tipo de pessoas no seu trabalho. E quão mais difícil seria não se poder defender, não poder deixar a sua contida mágoa transbordar para o atendimento que dava aos pacientes. Teresa costumava dizer que não conseguiria ser médica por essa razão: iria sempre favorecer aqueles que não a tratavam como uma coisa. E iria colocar no quarto sem janelas e cuja canalização rangia por cima da cama os que se achavam mais puros, mais humanos, por renunciarem à inovação.

— Ele pode ser diferente, doutora — argumentou Irina — as pessoas mudam. Aprendem. Ele até pode ter crescido nesse ambiente, mas nós podemos tentar fazê-lo ver…

— Escutem. Os dois — acenou-lhes para que a seguissem, para o lado de onde vieram, contrário àquele em que, supostamente, estaria o quarto do novo rapaz. Assim que Marise considerou que estavam longe o suficiente, abrandou o passo, e prosseguiu:

— Eu sei que vocês acham que conseguem convencê-los. Consertar o preconceito, fazê-los ver a razão. Mas têm de meter na cabeça que não é a vossa obrigação ensinar pessoas que não querem aprender. Provavelmente ainda não passaram por nenhuma situação mais complicada com Puros ou apologistas deles, mas acreditem que não querem passar. Algumas pessoas só aprendem a ferro e fogo. Outras, passam pelas chamas e não aprendem. Mas vocês não têm de se queimar por quem não merece.

Pararam em frente à sala comum. Silas relanceou para dentro, depois fixou-se novamente na médica. Irina olhava para o chão em desolação. Marise concluiu:

— Eu não digo isto por ele. Digo-o por vocês. Não vos quero ver magoados em vão por alguém que pode nunca chegar a entender.

Afagou-lhes a cabeça e as costas brevemente, enquanto os encaminhava para a sala. Despediu-se com um murmúrio e um aceno, e seguiu caminho. Não tinha maneira de saber se não tentariam voltar a ir ao quarto do novo rapaz após a sua saída, mas ou estava suficientemente confiante no seu conselho para saber que não o iriam fazer, ou com este lavara as suas mãos da responsabilidade de repercussões futuras.

No fim, acabaram em silêncio, na sala ensombrada pelo manto de nuvens que cobria o fraco sol outonal, sem saber o que fazer a seguir. Quando Teresa chegou, a balançar o saco com os bolos e os recipientes de chá nas mãos, estranhou o tenso ambiente entre os dois habitualmente efusivos amigos, mas nada disse. Podiam ser seus amigos, mas havia algo no fundo da sua mente a sussurrar-lhe uma paranóica precaução: quanto menos escavacasse nos problemas deles, menos probabilidades tinha que eles quisessem saber acerca dos seus.


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