Luna e Victor escrita por LarissaLindolpho


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

A história de Luna e Victor em parte é real, pois os personagens principais lidam com situações referente ao tratamento de uma doença crônica ( que logo saberão qual é), que enfrentei na vida real junto com meus familiares. Espero que gostem e se emocionem com os dois



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Não fiquei exatamente feliz, quando sai pelo o portão da escola e encontrei o carro do papai, mas em vez dele, minha mãe quem estava acenando para mim, através da janela. Eu sei o motivo por estar ali, o maldito vestido que eu teria de usar na festa de quinze da minha prima, e para a minha infelicidade, minha mãe pretendia levar-me pra prova-lo hoje.

O dia já estava sendo suficientemente chato, não tinha certeza se aguentaria mais essa tortura. Gostaria de ir para casa. Ainda não me sentia inteiramente recuperada da prova de matemática, em plena última aula. Não pelo o fato de ter sido prova, sim, eu gostava de provas, de testar meus conhecimentos, e principalmente sentir a sensação incrível de saber as respostas para todas as questões. A sensação fora mais forte desta vez, porque havia faltado praticamente em todas as aulas. E estudar em casa, por conta própria fora uma saída que encontrei, e que surgira efeito.

Boa parte dos meus colegas de classe, não sabem como é se sentir assim, quase invencível. Talvez por isso, eles me infernizaram, os cinquenta minutos de aula inteiros, em busca de cola. Salvei a pele deles, mesmo eu sendo completamente ignorada, nos dias comuns. Saber que sou útil apenas quando precisam de respostas, doía, não entendia bem o porquê.

Caminhei até o carro, ciente que a tarefa que me aguardava seria cansativa - geralmente estava cansada boa parte do tempo - . Provar vestidos, ouvir Sthefane e suas amigas falarem sobre moda... parecia tão empolgante!

Entrei no carro, e mamãe inclinou-se na minha direção, de imediato , para beijar meu rosto.

- Oi, Luna. Como foi na escola ? - perguntou, girando a chave. Puxei o cinto de segurança por cima do ombro, e o prendi na aba, ao meu lado esquerdo.

- Prova - disse, com toda a frieza que consegui.

- E como se saiu? - minha mãe possuia a mania de fazer perguntas, das quais ela já sabia a resposta. Ela sorria, com orgulho.

- Você esqueceu que sua filha é a nerd da sala? - Ergui uma sobrancelha. A parte boa ra que meus pais me incentivam a ser a nerd da turma. A cada mês, ou dois, meu pai fazia minha coleção de livros crescer consideravelmente. Ele é dono de uma livraria, e eu herdei dele a paixão pelos os livros. Já mamãe, preferia se exibir para suas amigas, dizendo que sua filha é a melhor aluna da classe. Eu a flagrei mostrando a elas um dos meus boletins, uma vez. Devia ter ficado muito vermelha, ou talvez roxa, e depois saí correndo da sala.

- Não - ela continua sorrindo largamente, enquanto presta atenção ao trânsito - Isso me orgulha muito - elogiou, mas estava convicta de que tentava me acalmar , para que eu me comportasse bem nas frente das amigas, ou melhor, escravas de Sthefane. Ainda estava relativamente zangada com ela, por me castigar daquela forma - Seu pai vai almoçar conosco, depois. Vamos encontra-lo no shopping, e podemos almoçar na praça de alimentação.

- Tá - resmunguei..

- Você está se sentido bem?

- Arram.

- Você pode realmente conversar comigo? - ela me encara rapidamente, enquanto esperamos o sinal verde. Estava perplexa o descobrir que sabotava de propósito todas as suas tentativas de diálogo. Minha mãe prezava por aquela coisa de olhos nos olhos, e que atualmente está se perdendo, segundo ela.

- Só se me levar para casa - respondi, cruzando os braços. Virei meu rosto, para encarar a janela. A paisagem caótica do transito não era a melhor alternativa, mas precisava continuar exercendo meu papel de filha rebelde, quem sabe assim ela desistiria de me levar até a loja.

- Filha, você sabe muito bem que você não pode deixar de ir à festa da Stefani. Ela é sua prima - ela disse prima, enfatizando as sílabas - Vamos escolher o seu vestido o mais rápido possível, prometo. Almoçamos, e te deixo na clínica.

Ah, agora estava realmente grata por me lembrar que a tortura não terá terminado, ao sobreviver os ataques de minha prima. Em seguida, teria mais uma sessão de hemodiálise pela frente.

Por mais que soubesse ser inútil tentar esquecer o tratamento, e odiar a clínica com todas as minhas forças - mesmo sendo minha unica saída - , não conseguia me acostumar à ideia. Os dias estipulados para o tratamento, eram horríveis para mim. Como ter o mesmo pesadelo repetidas vezes. Odiava a clínica.

Era reconfortante saber que as mães não possuem o dom de ler mentes, também, ou estaria encrencada. Estava proibida de pronunciar aquelas palavras. Meus pais achavam que era uma ofensa a Deus, afinal, deveria ser grata por estar viva. Mesmo precisando lidar com o tratamento três vezes por semana. Me sentia culpada quando deixava escapar aquelas coisas. Mas sou adolescente, e tecnicamente, conforme os padrões, deveria ser um pouco rebelde.

- Que saco - foi a forma mais impactante que encontrei para me render, sem demonstrar que me sentia derrotada. Ainda havia tempo para pensar em jeito de me livrar daquele compromisso irritante, que envolvia vestido longo e valsa.

Não nos falamos mais, até ela estacionar em frente a loja, e me empurrar para dentro, agarrada ao meu pulso como se eu fosse uma criancinha de cinco anos. Uma mulher apareceu para nos atender, e gentilmente, nos pediu para segui-la pelo o interior da loja.

O som de vozes femininas, vindas dos provadores, que ouvíamos antes mesmo de nos aproximar, não era encorajador. Meus passos se tornavam mais lentos, como se meu corpo também não quisesse participar daquilo, mas mesmo assim, me obriguei a entrar naquela imensa sala, repleta de cabines. A cena era como nos filmes - que não me emocionam - em que um bando de garotas riem e aplaudem bobamente, quando a mocinha sai do provador, com o vestido longo, de princesa, lhe proporcionando um visual incrível. Já sabia que as amigas de minha prima a veneravam, mas pude perceber que era mais grave do que imaginei.

A mágica perdeu o efeito quando Sthefane me viu. Com seu vestido esvoaçante, cor de rosa, ela atravessou a área dos provadores , para abraçar minha mãe. Ela estava deslumbrante, admito. Seu cabelo loiro e liso , parecia reluzir, e percebi o quanto somos opostas.

Ela estava prestes a realizar seu sonho, enquanto a situação toda me causava dor de cabeça. Tentei não pensar o quanto minha aparência parecia desleixada. Era inútil, eu já me considerava um monstro horrendo, diante de todas aquelas garotas, que pareciam ter saído de um seriado da Disney.

- Oi - ela se dirigiu a mim, apenas por educação. Evidentemente, nós duas concordávamos em um ponto: Ser uma de suas quinze garotas, e contribuir para que sua festa seguisse os padrões, não mudaria o fato de não simpatizarmos uma com a outra - Estou muito feliz que tenha vindo, titia.

- Também estou feliz, minha querida.

- Gostou do vestido? Gostaria que você aprovasse.

- É magnífico.

A relação entre as duas sempre me incomodou. Não era ciúmes. A questão era que minha mãe me ignorava quando Sthefane estava por perto. Ela sempre desejou, em parte, que eu fosse como minha prima. Que gostasse de me arrumar e fazer as unhas. Mas mamãe esquecia que eu não tinha motivos para isso.

- Já sabem quem será o par dela? - Sthefane parecia se recusar a pronunciar meu nome - A prova dos garotos será amanhã.

Eu e mamãe trocamos olhares desesperados.

-Temos alguém em mente - minha mãe mentiu de forma tão natural, que me deixou boquiaberta. Ela me lançou um olhar suplicante, implorando que eu não estragasse tudo.

- É - murmurei.

Não tinha par algum, na verdade esqueci que precisaria de um. Em um dia eu não conseguiria,e a festa aconteceria dali a duas semanas. Talvez fosse melhor que outra garota ocupasse meu lugar , eu o ofereceria de bom grado.

- Ste! - uma das garotas berrou, ao sair do provador - Ficou lindo!

Minha prima se afastou para examinar mais de perto o visual da amiga. Minha mãe murmurou algo, satisfeita, o que me fez concluir que ela estava mesmo exuberante. Mamãe dificilmente erra. Não dava para ter certeza, eu me limitava a encarar as minhas próprias mãos. Minhas bochechas fervilhavam de vergonha, e considerei a ideia de sair correndo.

Algo me dizia que as rizadas exageradas de minha prima, tinha haver com meu estado. Só conseguia pensar no momento em que finalmente pudesse ir embora.

- O que você achou, Luna

- Eu? - não pude disfarçar surpresa em minha voz. Não acreditava que minha opinião valesse de algo, mas mesmo assim tentei pensar em algo que a surpreendesse - Bem, acho que você quem deveria dizer. É sua opinião que conta aqui.

Talvez ela esperava que eu fosse dizer algo tão idiota, que se tornaria piada para elas. Minha resposta não causou o efeito esperado, e Sthefane ficou sem graça. Não por muito tempo. Ela logo me lançou seu sorriso triunfante e me olhou como se eu fosse uma criatura desprezível, como sempre.

- Você tem razão, priminha. Sua opinão não conta, mesmo. Afinal, é visível que você não entende muito de moda.

Seus olhos percorreram meu corpo, da cabeça aos pés. Me encolhi diante daquela inspeção. Ouvir o coro de risadas que se seguiu, fez com que eu me sentisse pior, diminuída. Mamãe permanecia ao meu lado, mas seu silêncio era o mesmo que se juntar a elas e rir de mim também.

- Talvez seja melhor verificar suas medidas - interviu a atendente, tentando livrar a todas de uma guerra eminente. Assenti agradecida, enquanto ela se aproximou, envolvendo minha cintura com a fita métrica. Anotou minhas medidas em seu caderninho, e me encaminhou até uma arara , onde dois vestidos longos estavam pendurados.

Eram idênticos, exceto pelas cores, lilás e azul. Não possuíam mangas, para meu azar, eram repletos de minúsculas pedras reluzentes na parte superior; e se estendiam em pequenos desenhos em forma de flores, um pouco abaixo da cintura.

- Qual deles você gostou? - perguntou minha mãe, agora desejando que eu fosse rápida. O olhar que lançei em sua direção, era um pedido de socorro. Mas seria pedir demais que ela brigasse com Sthefane por minha causa.

- O lilás - escolhi, sem me interessar de verdade por nenhum deles. Seria mais confortável se eu pudesse usar calças jeans e All Star.

- Ótima escolha - a atendente vibrou ao meu lado - Mas receio que não poderá prova-lo hoje - todos os olhares se detiveram em mim - Suas medidas são inferiores ao nosso menor tamanho . Vou precisar ajustar para você.

Embora a ideia de participar da valsa não me agradasse, aquela informação me deixou um pouco decepcionada. Sem que esperasse, me dei conta de quanto emagreci nos últimos meses. Minhas medidas eram inferiores ao menor tamanho do modelo escolhido por Sthefane. Não pude deixar de me considerar uma extraterrestre.

- Espero que esse problema não afete minha festa - Stefani tentou sorrir, mas claramente aquilo a deixava furiosa.

A vendedora nos explicou calmamente que os ajustes seriam feitos rapidamente, e que certamente, o vestido ficaria pronto dias antes da festa - Sthefane não precisaria fazer um escândalo. As garotas continuavam me olhando. Minha prima estava estranhamente petrificada, da mesma forma como ficava, quando o assunto de minha doença era abordado nas reuniões de família, ou quando exponho acidentalmente meu pescoço. Era o único efeito que causava nela e isso me assustava.

O silêncio que se seguiu, me deixou perturbada.

- Então, - a garota dos cabelos pretos, pigarreou - nos conte, qual é seu truque, para estar em forma?

Engoli em seco, sem acreditar no que acabei de ouvir. Sthefane pareceu ter lembrado de respirar, olhou para o chão, e depois para mim. Sua expressão era uma prova que me odiava.

- O primeiro passo, é ter anemia - tentei sorrir alegremente, como se realmente compartilhasse um tipo de receita. Mas desejava gritar - O segundo, é bem simples, basta seus rins pararem de funcionar. O terceiro passo , é possuir isso aqui - puxei a gola da minha blusa, para baixo, e afastei o cabelo, que sempre fica para frente, para mostrar o catéter na veia do pescoço - Já o quarto passo, esse sim, é o melhor de todos, vocês precisarão frequentar as sessões de hemodiálise, que...

A atendente, minha mãe, e todas as garotas pareciam assustadas. Talvez a amiguinha de Stefani tenha se dado conta que exagerou.

- Cala a boca! - Sthefane me empurrou com força exagerada, perdi o equilíbrio. O cenho dela estava franzido e tremia. Eu também estava tremendo, um nó se formava em minha garganta. Não eram apenas elas que estavam assustadas. Eu também estava, porque jamais me expus daquela forma, e não me recuperaria facilmente.

- O que foi? Eu só contei o meu truque, não era isso que vocês queriam?

- Desculpe - a outra garota disse, totalmente arrependida e envergonhada.

- Não se desculpe - Stefani berrou com a amiga, como se ela tivesse cometido uma falta grave. Talvez ser gentil comigo, fosse uma falta grave.

- Eu quem peço desculpas, acho que Luna exagerou. Vocês não sabiam e não precisam se sentir culpadas - mamãe disse, seriamente, enquanto fechava seus punhos em volta de meu braço esquerdo. Qualquer um era capaz de notar que elas sabiam sim, sobre minha saúde. Em seguida, ela se virou para a atendente: - Se a senhora puder entrar em contato conosco, quando o vestido estiver pronto, marcamos a próxima prova.

Não vai ter próxima prova, pensei

Minha mãe me arrastou para fora da loja. Arrancou com o carro de uma forma que eu nunca vi antes. Ela nunca dirige em alta velocidade, exceto por uma emergência, e as emergências em nossa casa, se resumiam sempre a mim. Eu me afundei no banco do carona, sabendo que a decepcionei de alguma forma.

Tudo bem, tinha plena consciência de que todas as brigas que tinha com Stefani, a deixa muito triste. Ela é a unica sobrinha que minha mãe tem, sem contar nos sobrinhos do meu pai, e as nossas discussões geralmente a obrigava a apoiar um dos lados. Não importava como acontecesse, ela sempre defendia Stefani, dizendo que tenho também minha parcela de culpa.

- Mãe... - começei, sem saber bem como me explicar.

- Luna, elas foram erradas, Stefani te provocou, mas você exagerou, e muito. Não vamos falar disso agora, talvez amanhã. Você precisa estar bem para a sessão de hoje.

- Okay - murmurei, deixando as lágrimas escaparem. Ela jamais fica ao meu lado, além de ser humilhada por todas aquelas garotas, que provavelmente estavam rindo de mim agora, amanhã eu levarariai uma bronca daquelas. Sempre levava broncas por causa da minha prima. Sempre tem sido assim, afinal de contas. Desde quando éramos crianças, e ela me culpava por coisas das quais ela era culpada.

- Agora precisamos pensar no seu par - ela tentou mudar de assunto.

- Não acredito que vou ter que arranjar um par - disse entre lágrimas. Não dava para acreditar que minha mãe ainda estava pensando nessa festa. Nós duas sabíamos, que quando chegar o dia infeliz, eu não terei par algum. Precisava desistir dessa idiotice imediatamente, mas sei que se o fizer, irei magoa-la. Era o sonho dela, que não havia se realizado no ano passado, quando eu faria o papel da debutante, mas bati o pé e recusei. Em primeiro lugar porque essas coisas tão... melosas me davam nos nervos, e em segundo, porque eu havia acabado de descobrir que meus rins eram tão imprestáveis, ao ponto de falecerem. Acho que não havia motivos para comemorar coisa alguma.

- Talvez alguém da sua escola.

- Isso é uma piada? - perguntei soluçando, e com raiva de mim mesma por estar chorando. Ela balançou a cabeça negativamente - Eu não falo com ninguém daquele lugar.

- Talvez essa seja a oportunidade de você conhecer um garoto, fazer novas amizades, talvez...

- Pode ir parando- eu a interrompi a tempo, antes que ela entrasse em seu preferido tema dos ultimos dias: namorado. Ela sempre me dizia que sou uma adolescente, preciso viver como uma, e isso inclui ter um namorado, ir em festas. Sério, qual garoto em sã consciência, se interessaria por uma garota que possui um catéter nojento no pescoço?

- Luna, não é porque você esta doente que precisa se esconder do resto do mundo - ela disse seriamente, tentando esquecer o fato que provavelmente esteja planejando me deixar de castigo.

- Eu não estou me escondendo, mãe- quase grito, sentindo a cabeça latejar por causa do acesso de choro - Já entendi, você quer eu lhe dê um netinho antes de bater as botas.

Imaginei ela gritando comigo, me chamando de louca, mas nada aconteceu. Ela continuou dirigindo como se não tivesse escutado o que acabei de dizer. Até chegarmos ao shopping. Eu sai do carro na frente, e quase corri em direção a entrada, mas ela me puxou pelo braço.

Talvez algo aconteceria agora, e então me preparei para as coisas horríveis que iria ouvir.

- Espere, não pode chegar na livraria do seu pai chorando desse jeito.

- Vou contar para ele o que sua sobrinha idiota fez, e vamos ver se ele vai ficar do lado dela como a senhora! - berrei, me desvencilhando dela.

- Eu só quero te ver feliz. Nunca repita que você vai morrer, nunca mais diga algo assim - ela segurou-me pelos os ombros, com os olhos verdes, que não herdei, arregalados. Minha mãe conseguia me deixar culpada. Eu não devia ter dito aquilo, admitia, como se minha morte seria algo natural para ela e meu pai. Eles sofrerão . E no fundo, eu não conseguia lidar com isso muito bem - sem sentir vontade de chorar- , como eu fingia transparecer normalmente.

- Desculpe - sussurrei. Em resposta, ela envolveu seus braços em volta de mim, me apertando em seu abraço.

Minha mãe me conduziu até o banheiro, onde lavei o rosto, e embora tenha melhorado , minha face pálida ainda continua com seu tom vermelho-vivo e meus olhos inchados. Era assim quando chorava. Qualquer pessoa saberia que andei chorando. Meu reflexo estava deprimente. Ela tentou ajudar, soltando meu rabo de cavalo, que já estava praticamente solto, e prendendo meu cabelo com um rabo alinhado no alto da cabeça.

-Que caras são essas? - meu pai perguntou, assim que entramos na livraria. Nós duas chegamos de mãos dadas, para transmitir alguma paz ao meu pai, mostrar para ele que as coisas já estavam “resolvidas”. Ele provavelmente esperava alguma mini tragédia de meu encontro com Stefani.

- Nada - respondi., beijando- o no rosto, enquanto os pelos de sua barba rala, espetavam minha pele - Ai, pai, você devia fazer essa barba.

Estar na livraria com ele, sempre me trazia boas lembranças, e alguma esperança de salvar meu dia. Já aconteceu coisas demais, mais do que conseguia suportar.

- Chegou a reclamona- ele me deu um tapa de leve na cabeça, e em seguida, inclina-se para beijar minha mãe. Mesmo sendo um selinho, era estranho como sempre, e fiquei um pouco envergonhada de ser a testemunha.

Uma vez, fizera a bobagem de confessar para a mamãe que eu ficava desconfortável quando eles se beijavam na minha frente. Ela sorriu e depois me disse que eu ficava assim porque isso ainda não havia acontecido comigo. Desde então, eu abomino assuntos que envolvam garotos.

- Vamos almoçar? Eu estou faminta - minha mãe falou, com as bochechas vermelhas de vergonha. Eu queria poder me perder por aquelas prateleiras, devorar a sessão juvenil mais uma vez, sozinha. Lendo eu não pensava em meus problemas, era uma forma de esvaziar a mente, e eu necessitava desesperadamente disso.

Meu pai deu ordens aos vendedores, e depois veio até nós. Ele era o melhor chefe que alguém podia ter. Em todas as vezes que passei o dia com ele aqui, aumentando minha coleção de livros, ele nunca fora rude com nenhum de seus funcionários, confesso que ele poderia ser algumas vezes, não faria mal algum, mas ele possui o dom da paciência, do qual eu não fui agraciada.

A praça de alimentação ficava no andar superior, e durante o caminho eu praticamente implorei para comermos no Mc Donalds, eu ajoelharia se isso os convencesse, e se eu não fosse pagar um mico. Meu pai escolheu o restaurante sem graça, que ele almoça todos os dias. Assim que sentamos, o garçom apareceu para anotar nossos pedidos.

Meus pais pediram algo que não prestei atenção, minha mente estava alguns metros dali, mais precisamente, no sanduíche de Cheddar do Mc , que estava proibida de comer- E para ela? - o garçom perguntou, me encarando por um segundo.

- Nada - respondi, olhando para a fila do Mc Donalds, que dava voltas.

- Macarrão branco, peito de frango cozido, sem o molho- meu pai anunciou, para o meu pavor. O encarei incrédula- E também meio copo de água.

- Os senhores desejam beber o quê?

- Água também- mamãe respondeu, em solidariedade a mim, eu sei, mesmo ela sempre pedindo suco de laranja para ela, e de uva para o papai.

- Eu adorei o pedido, pai- disse ironicamente, quando o garçom desaparece- Sério, porque não falou para ele tirar o sal da comida também?

Eu ainda não conseguia me acostumar com minha maldita dieta. Tudo com o mínimo de liquido, potássio e fósforo possível. Comida boa, zero. Quando pensava em batatas fritas, minha boca se enchia de água.

- Não adianta ficar furiosa- papai disse muito calmo, o que me fez ficar ainda mais irritada - Você precisa se alimentar corretamente, para passar bem pela a sessão de hoje - Tive a sensação de que ele iria dizer “sobreviver”, ao invés de “passar bem”.

- Ninguém mais do que eu sabe que hoje tem a droga da hemodiálise. Não precisa me lembrar.

Meus pais se olharam. O cenho da minha mãe ja estava franzido, desaprovando minha rebeldia.

- Luna, só estamos tentando te ajudar, e isso inclui te incentivar a seguir a dieta - minha mãe parece um pouco desapontada, ou seria cansada?

- Vocês estão me obrigando a seguir a dieta- resmunguei, infeliz.

Quando os pedidos finalmente chegaram, eu não estava nenhum pouco afim de comer. Para ser mais exata, eu tenho vontade de despejar a comida nas cabeças de qualquer um deles, não faria muita diferença se o alvo fosse meus pais ou o garçom com cara de nerd. Eu só precisava me livrar da raiva que sentia.

Não arremesso comida em ninguém, sou obrigada a comer tudo, sob a vigilância atenta de meus pais cruéis, enquanto o sanduíche de Cheddar ainda dominava meus pensamentos. A parte pior era o pós almoço. Minha sobremesa são remédios.

- Fala sério- eu choraminguei, quando mamãe retirou meus comprimidos de sua bolsa, e os pousa na mesa, a minha frente, delicadamente, como se eles fossem preciosos. Eu imaginei que me livraria deles, pelo menos hoje. Tentei não pensar que era muito provável que o pessoal das mesas vizinhas, estivessem olhando em nossa direção. - Eu não vou tomar essas coisas aqui- eu me curvei sobre a mesa e cochichei.

- Eu posso te fazer engolir, como fazia, quando você era uma garotinha- papai me encarou, mais sério do que o normal. Era teimosa, assumo, mas talvez estivesse exagerando para ele ficar tão sério. Olhei para as três caixas diante de mm, Renagel, Complexo B e AAS - os fiéis escudeiros, desde o início do tratamento.

Possuía uma vontade louca de não tomar aquelas coisas nunca mais. E por mais que a ideia fosse tentadora, eu não podia fazer isso. Por meus pais, que sempre estão ao meu lado, que nunca me deixavam ir à clinica sozinha, que dormiam no meu quarto nos dias em que estava mais debilitada. Que deixaram de sair juntos, há algum tempo, temendo que eu precisasse de algo, enquanto estivessem fora. Retiro os comprimidos das embalagens, e engoli um após o outro.

É apenas pelos os meus pais, repito para mim mesma.

Meu pai deixou a livraria por conta do gerente, para poder me levar à clínica com a minha mãe. No caminho, ele perguntou o que havia acontecido na loja. Não tinha muita certeza se minha mãe gostaria que eu dissesse a verdade, mas eu precisava saber qual seria reação dele. Expliquei como minha prima foi simpática, sobre o vestido e como agi depois da garota ter perguntado qual era meu truque para ficar em forma.

- Achei que você foi forte, filha - quase não acreditei ao ouvi-lo.

- Forte? - minha mãe perguntou.

- Ela podia ter saído correndo, chorado, baixado a cabeça. Ela enfrentou Stefani. Eu não ficaria calado se estivesse no lugar dela.

Não sabia bem se o termo forte se adequava bem a mim .Não havia enfrentado Stefani, baixei a cabeça mais uma vez, mas mesmo assim, estava feliz por meu pai ficar ao meu lado.

Joguei um beijo para ele, agradecida. Eu entendia seu recado nas entrelinhas. Ele desejava que eu enfrentasse qualquer um que tente me diminuir. Quantas vezes eu já não havia chorado, por alguém ter rido de mim ou pelo simples fato das pessoas ficarem perguntando "o que é essa coisa enfiada no seu pescoço"? Meu pai deseja que eu enfrente de frente a doença, e tudo que está ligado à ela. Eu iria tentar, a partir de agora, era minha promessa.

Como de costume, quando chegamos na clínica, cumprimentamos o segurança, Roberto, que ficava junto a porta principal. Depois era a vez de Elen, a recepcionista. Quando você faz um tratamento, em que se vai a clínica três vezes por semana, você acaba conhecendo praticamente todo mundo. A sala de espera estava vazia. Ainda faltava meia hora para o início de sessão, a pontualidade dos meus pais era quase exagerada.

Meus pais sempre ficam tentando puxar assunto com a Elen ou outro paciente. Comigo eles não tem muito sucesso, eu sempre fico nervosa demais para lembrar de responder suas perguntas. A partir do momento que entrava por aquela porta, a sensação que sentia é que a qualquer momento vou sufocar. É como se o ar não circulasse como devia naquele lugar. Não conseguia pensar em mais nada, além do desejo de nunca mais pisar ali. Mesmo sabendo que certamente sentirei falta de Elen, Roberto e de meu enfermeiro preferido, o Diogo.

Acho que ele possuía um certo dom de aparecer quando estou pensando nele. Ele surgiu na porta, e é como se o ambiente se iluminasse. Entrega uma prancheta para a Elen, que diz alguma coisa inaudível, e começa a andar, sorrindo, em minha direção. Ele me ergue da cadeira, com um puxão. O ar some de meus pulmões por alguns segundos. Ele fazia isso para se certificar que seus pacientes estão realmente vivos, acho. Afinal, todo mundo aqui parecia um pouco com zumbis.

Nunca flagrei ele fazendo algo assim com os outros, talvez ele tenha uma marcação comigo.

- E ai, preparada? - ele cutucou as minhas costelas, o que me fez cair na cadeira rindo, numa tentativa de escapar. Para meu azar, ele descobriu com facilidade, que eu sinto cócegas em quase toda a parte do corpo. Agora, ele usava as cócegas para me convencer de qualquer coisa que desejava..

Diogo era um enfermeiro de vinte e cinco anos, alto, musculoso - muitas horas em academia - , moreno e muito brincalhão. Minha mãe dizia que ele esqueceu de crescer. Mas ai é que está a parte boa, ele conversa realmente conosco. Ele não era frio, e era o único que conseguia ver como alguém que não vai apenas nos causar dor física, ou que nos fará engolir remédios, era muito além disso. Ele falava sobre vida, evitava falar de nosso tratamento, algo que para a maioria de nós, era sinônimo de morte.

- Eu nunca estarei preparada - apesar de ainda estar rindo, mesmo seus dedos estando a uma distancia razoável de mim, eu percebi minhas mãos começando a suarem. A tensão tomava conta de mim, pouco a pouco. Talvez esperar o ínicio da sessão fosse uma das piores partes.

- Tenho uma surpresa para você - cochichou, se aproximando de meu ouvido.

- Já sei, minha injeção já está a minha espera.

- Errou feio - ele soltou sua rizada alta e grave - Carne nova no pedaço.

Eu não conseguia ficar feliz ao saber que mais alguém iria se juntar ao nosso time, mas tentei demonstrar algum entusiasmo. Meus pais estavam concentrados em nossa conversa, para saberem que era o novo “felizardo”.

- Você quer dizer, carne velha - o corrijo. A maioria dos pacientes tinham a idade dos meus pais ou muito mais que isso. Minhas vizinhas de cadeira, eram duas idosas falantes, o que era quase como se sentir em um asilo.

- Não, carne realmente nova - ele parecia radiante, pelo o seu sorriso, eu seria muito ingênua se não desconfiasse que ele estava aprontando algo.

- Desembucha - lhe dou um tapa no ombro - Quem é?

- Eu fiz questão de colocar na cadeira ao lado da sua, lado direito.

- E a Dona...

- Ela foi transferida para uma clínica mais perto de casa. Mas relaxe, você ainda vai precisar aguentar a Dona Eliza, te contando pela a milésima vez, como ela veio parar aqui na cidade, blá, blá, blá - ele fez uma careta engraçada, saltando os olhos, e pondo a língua para fora. Eu me esforço para não gargalhar.

- Okay! Você não vai me contar quem é, não é mesmo?

- Ei, confie em mim, você vai me agradecer.

Diogo voltou para a recepção, sem me dar chance para mais perguntas. Ele sabia que sou curiosa, e bancava o misterioso de propósito. A sala de espera agora estava repleta de pacientes, e percebo que não me dei conta da chegada deles. Nem todos estavam bem quanto eu, bom, perto deles, eu me considerava quase saudável. Alguns usavam em cadeiras de rodas, havia um deficiente visual, por conta do diabetes alto, seus rins pararam por causa dessa doença também. Outros tinham algum membro do corpo amputado. Havia uma velinha cega também, que era muito simpática, seu marido que a acompanhava até a clínica. Considerava eles um casal fofo, e era capaz de imaginar meus pais com essa idade, segurando um na mão do outro, da mesma maneira.

Outros chegavam a sala de hemodialise carregados em macas, porque vinham de suas casas ou do hospital de ambulância.

Diogo desapareceu de meu campo de visão, e quando retornou, eu soube que estava na hora de nossa sessão.

- Vamos lá, time! - ele nos chamou, alegremente. Mas ninguém conseguiu lhe retribuir o sorriso. A tensão faz com que ar se torne denso, e de novo, eu sentia como se fosse perder o fôlego. Diogo gostava de dizer que éramos um time, eu concordava, quando um de nós não estava bem, a coisa toda parecia desandar e ficar muito pior. Não sabia como explicar, mas quando um resolvia deixar o jogo, e ir se encontrar com Deus, levava algum tempo até estarmos totalmente recuperados. Afinal, era um desfalque na equipe.

Meus colegas de tratamento, começaram a se levantar de seus lugares, e lentamente se dirigirem até a nossa sala, no final do corredor. Meus pais me abraça ao mesmo tempo, e cada um me beija em uma bochecha.

- Vai com Deus - minha mãe me disse, baixinho. E mais uma vez, ela estava contendo as lágrimas, da mesma forma que estou. Mas proibi a mim mesma de chorar na frente deles.

- Até daqui quatro horas - é a unica coisa que escapa por meus lábios, antes de começar minha marcha rumo a sala, quer dizer, à minha salvação. O corredor não era exatamente estreito, talvez sejam os remédios afetando a minha dimensão de largura, mas jurava que o corredor ia diminuindo a cada passo que dava.

Fui a penúltima a chegar a sala, estava tremula e ofegante, e perguntas internas me atormentavam. Será que vou passar mal? Será que dessa vez minha pressão despenca de vez? Ou será que vou vomitar o lanche da tarde, como na última sessão? Me arrastei até meu lugar, me concentrando em retirar meus tênis, enquanto esperava minha vez para a pesagem. Como fui uma das últimas a chegar a sala, sou uma das últimas a encarar a balança, o que não era exatamente ruim.

Era o primeiro passo da sessão, e se eu estiver novamente abaixo do peso, sabia que Diogo iria me olhar com expressão cara séria, que significava que realmente havia algo de errado e ele me culpava por isso. Talvez eu tenha o tal sexto sentido- como a mamãe-, porque foi isso que aconteceu.

Atravessei a grande sala apenas de meia, e subi na balança, ansiosa. Os números giraram no visor, até pararem, indicando o meu peso. Diogo anotou- o em minha ficha, em silêncio.

Péssimo sinal.

Sabia que meu peso não era o ideal. Não precisava que ele me informasse disso. O número trinta e oito piscou na tela, enquanto toda a equipe médica esperava um aumento de pelo menos cinco quilos. Argh!

- Abaixo do peso - sussurrei entre dentes, enquanto sai da balança.

- Visita a nutricionista, depois da sessão - sua voz era robotizada. Ele estava decepcionado comigo, pensava que não tentei. Mas que o que posso fazer, se não sintia fome ás vezes? - E não me olhe assim.

Nutricionista não.

Caminhei de volta ao meu lugar. Não queria mais falar com ele, até o fim da sessão. Mesmo sabendo que ele participaria da minha reunião com a nutricionista, para me irritar. Ele sabia que não iria adiantar nada. Meu corpo não queria cooperar comigo, estava perdendo feio, sabia, Diogo sabia. Mas ele insistia em me culpar.

Minha revolta pareceu perder força, quando descobri quem iria ocupar a cadeira ao meu lado. Diogo realmente mexeu seus "pauzinhos". Estava convicta de que jamais vi esse garoto antes, mas parte de mim sentia que já me deparei com ele em algum lugar. Talvez meus remédios causem loucura com o tempo. Me sentei a sua esquerda, e ele sorriu para mim.

Dava para notar que ele era alto, e de repente estava ansiosa para comparar nossas estaturas. Bonito.

Okay, totalmente lindo.

Certamente eu não saberia que ele possuía alguma doença, se o tivesse encontrado em outro ambiente. Talvez sejam seus olhos azuis, por estar usando uma camiseta de uma banda que amava ou ter uma aparência muito mais saudável do que todos nós, mas o fato era que estava encantada.

Ao tentar desviar o olhar, me deparei com Diogo rindo para mim. Quase imperceptivelmente, ele assentiu para mim.

Nosso outro enfermeiro, Gabriel, pediu silêncio, iniciando seu discurso de boas vindas ao novato. Tinha sido assim comigo também. E depois, um a um, tradicionalmente, tínhamos o dever de dar boas vindas a ele também. Agora ele - Gabriel o chamou de Victor - fazia parte de nosso time. Eu não era corajosa o suficiente para dizer que estava feliz com a presença dele ali. Eu nunca desejava boas vindas à ninguém, era algo contraditório demais. Boas vindas àquele lugar que se chama quase morte, viva!

Não desejava que ninguém estivesse aqui, então me recusava a comemorar a presença de novatos. Mas era diferente agora, eu não me sentia nenhum pouco infeliz por ele estar ali. Me limitei a continuar sorrindo para ele, enquanto ele parecia um pouco sem jeito com tantas pessoas desejando boas vindas, boa sorte e bom tratamento. Talvez ele não esperasse uma recepção como aquela.

A coisa toda acabou quando os enfermeiros começam a nos conectar nas máquinas, um a um. Olhei para o pescoço de Victor, em busca do catéter, tentando identificar a forma de tratamento dele. Mas ele não possuía catéter nenhum. Meu coração se apertou quando passei os olhos sob os hematomas roxos e calombos na pele de seu braço direito. Seu braço estava muito maltratado, o que significava que ele fazia hemodiálise há algum tempo.

- Está tudo bem? - ouvir sua voz grave, me assustou, o que o fez rir ainda mais.

- Está - murmuro, nervosa.

- Sou Victor - ele estendeu sua mão esquerda em minha direção.

- Luna - disse, apertando sua mão prontamente. Era estranhamente quente, não gelada como a minha. Desejava dizer alguma coisa inteligente, mas Diogo se aproxima de mim, e Gabriel dele, para nos conectar a nossas respectivas máquinas. E nada mais parecia importante, além de fixar no trabalho que Diogo estava realizando em mim.

Ele era sempre gentil comigo, afastava as mechas de meu cabelo para trás delicadamente, deixando a mostra o catéter que tanto abominava. Me pergunto se Victor estava olhando para aquilo, mas preferia que ele não estivesse. Meu enfermeiro preferido se inclinou, para colocar as mangueiras que vem da máquina dialisadora, em meu catéter , seu rosto ficou muito perto de meu ouvido.

- Gostou da surpresa? - ele perguntou, em seu tom brincalhão de sempre. Eu teria xingado ele de idiota, ou algo parecido, mas estava nervosa demais para isso - Não banque a chata com ele - Diogo partiu para outro paciente, deixando-me confusa, com um turbilhão de sensações misturadas. Eu ainda pensava no que havia acontecido na loja, temia que algo desse errado na minha sessão e agradecia por existir aquela máquina chata, que nos mantinha vivos. Me perguntando porque Diogo fez questão de nos colocar lado a lado ou se eles já se conheciam. E principalmente, tentando não parecer uma retardada perto do gato que continuava me olhar.

Encarei as mangueiras, que eram acopladas a seu braço por duas agulhas. Observei o sangue imediatamente pintar as mangueiras de vermelho vivo, passar por elas, e chegar à máquina, onde era filtrado, e em seguida retornar para seu corpo. Não sabia como funcionava possuir uma fistula venosa, mas aquelas agulhas deviam incomodar muito, talvez até mais que o catéter. Sua expressão permanecia tranquila, como se ele estivesse sentado no sofá de sua casa.

- Como você consegue parecer tão calmo? - eu iniciei a conversa, enquanto o concelho de Diogo ecoava dentro de minha cabeça, “ Não banque a chata com ele”. Não era melhor maneira de se iniciar uma conversa, mas seria pior se eu comentasse sobre o clima.

- Eu já estou acostumado - ele respondeu, e não consegui entender como alguém podia se acostumar com essa situação, era revoltante. Esperava que ele não me dissesse que gostava do tratamento, ou nunca mais falaria com ele - E não tenho outra alternativa.

Nenhum doente renal crônico possuía outra alternativa, até que um rim novo apareça, mas quase todo mundo aqui não contava muito com essa possibilidade, depois de alguns anos de espera. Eu me perdi em pensamentos, então ele voltou a falar:

- Por qual motivo seus rins pararam?

Essa era a pior pergunta que alguém podia me fazer, as lembranças são sempre aterrorizantes. A forma como estava sempre muito cansada, falta de ar, o inchaço por todo o corpo, e depois os resultados dos intermináveis exames: falência dos rins. O choque com a notícia de que precisaria dar início ao tratamento, e para isso , passaria por uma cirurgia para a implantação do catéter. Mas o que quase me fez desistir de tudo foi a minha aparência. A primeira vez em que olhei no espelho, após a cirurgia, foi desastrosa. Não conseguia aceitar aquela coisa em meu pescoço. Joguei o espelho de mão da minha mãe, contra a parede. Eu estava horrível. Aquele reflexo não pertencia a mim. Pensava que jamais conseguiria colocar os pés para fora de casa . Sabia que na escola, eles zombariam de mim e as pessoas sempre estariam me olhando. E eu precisaria me esconder delas, mais do que antes.

Me esforcei para conter as lágrimas. Precisava apenas ser sincera, não devia ser tão complicado. Mas percebi que não sei o que dizer, eu nunca treinei esse tipo de coisa. Nunca compartilhava isso com ninguém, e se alguém me perguntava, meus pais sempre estavam por perto para responderem por mim.

- Anemia - foi a unica coisa que consegui dizer.

- Tumores malignos nos rins - disse, mesmo eu não tendo me recusado a perguntar, exatamente porque queria evitar sentir pena dele. Câncer. Victor teve ou tem câncer, e estava diante de mim, falando sobre isso, como se me contasse como pegou uma gripe. A sala pareceu girar por um segundo, minha pressão arterial pareceu baixar. Respirei fundo, tentando manter a calma.

- Meu Deus - deixei escapar pelos meus lábios, o que me causou arrependimento imediato. Eu conhecia bem a sensação de ter alguém que sintia pena de mim, e a ultima coisa que queria que ele pensasse, era que eu tinha pena dele.

- Tudo bem, meus cabelos já cresceram - ele apontou para sua cabeça, com seu braço livre. Tentei evitar que a imagem dele sem cabelos se formasse em minha mente, mas era impossível. Mas a forma como ele apontou para sua cabeça, e o tom leve de sua voz me fez sorrir. No fundo, desejava possuir essa naturalidade quando me refiria a minha doença.

- Deve ter sido difícil.

- Um pouco, mas tive muita ajuda. Agora está tudo razoavelmente bem.

Busquei em sua expressão, algum sinal que me indique que ele estava tentando transmitir tranquilidade, quando na verdade sentia-se vulnerável, com medo, como eu. Mas seu rosto apenas transmite serenidade. Não é possível.

- Quem em sã consciência, preso a essa coisa, pode dizer que tudo está bem? - soltei. Minha voz estava mais áspera do que gostaria. Acho que estava fazendo completamente o oposto do que Diogo esperava

- Não é o paraíso- ele deu um meio sorriso- Mas é melhor que morrer.

Sei que estava parecendo uma criança, que se nega a entender algumas coisas por pura rebeldia. Percorri com os olhos a extensa sala, em busca de Diogo. O encontro sentado em seu posto, concentrado na leitura de alguns papéis. Fiquei aliviada por ele não estar acompanhando meu fracasso ao tentar fazer amizade.

- Hum. Sabe, por coincidência, eu gosto muito de ouvir essa banda.

Victor seguiu meu olhar até sua camiseta preta, no peito estava estampado o símbolo em cor branca, de minha banda preferida, Rosa de Saron. Ele sorri surpreso.

- É uma das minhas bandas cristãs favoritas. Você é católica também?

Eu não fui tantas vezes à Igreja, quanto deveria, este ano. Na verdade, eu deixei de frequentar depois que iniciei o tratamento, ano passado. Meus pais não deixavam de participar de um domingo sequer, mas não obtém sucesso algum quando tentam me convencer a acompanha-los. Eu estava fazendo o caminho inverso, em vez de me aproximar de Deus nessa fase difícil, acabei me afastando ainda mais. Não sabia exatamente como e quando aconteceu. Mas de qualquer forma, jamais deixei de ser católica.

- Sou, sim- respondo - Qual sua musica preferida do Rosa?

- Quando Tiver Sessenta, porque fala do futuro. Por causa da doença, acabo pensando muito nisso - respondeu, animadamente - E você?

Aquela música estava na minha lista de preferidas, mas em terceiro lugar. Ás vezes pensava como o mundo estará quando eu estiver idosa, definitivamente, desejo que nenhuma pessoa possua doença renal crônica.

Me pergunto se Victor se trancava no quarto e escutava musica até pegar no sono, como eu. Ou se cantava alto até ficar rouco.

- Amo a Linda Menina, a letra me emociona, e também meio que me faz seguir em frente.

- Faz sentido você gostar dessa - seus olhos azuis estavam olhando diretamente nos meus.

- Por que? - pergunto, para interromper aquela espécie de transe que rolava, mas nossos olhos continuaram fixos.

- Você é linda, como a garota da música.

Abaixei a cabeça, sentindo meu rosto arder, mas é um tipo de vergonha diferente, estava me sentindo perfeitamente bem, embora desconfiava que ele possuísse algum problema de visão. Mas havia a possibilidade de eu não ter ouvido bem.

- Está brincando, não é? - sussurrei, rindo bobamente. Nunca soube lidar com elogios, nenhum cara jamais me disse que sou bonita. Era difícil acreditar que fosse real, principalmente porque eu não considerava-me merecedora do elogio.

- Não.

- Não sou linda.

- Claro que é.

Silêncio constrangedor, em que ele voltou a me encarar. De algum jeito já gostava dele, por mais que parecesse maluquice. Ele enfia a mão livre no bolso de sua calça jeans, retirando de lá seu Smartphone de ultima geração, me pede para ajuda-lo a conectar os fones de ouvido nele. Ao menos, possuir cateter me dava vantagem de estar com as duas mãos livres, enquanto ele tem a permissão apenas para mover a esquerda. Ele me ofereceu um dos fones, e aproximei de meu ouvido, enquanto ele fez o mesmo desajeitadamente com a mão esquerda.

Ficamos ouvindo Rosa de Saron até a hora do lanche, concentrei-me em não cantar, ou estragaria a boa impressão que ele estava tendo de mim. A senhora que fazia a limpeza da clínica, surgiu com uma bandeja enorme. O cardápio raramente mudava, era sempre servido pão com manteiga e sucos de sabores variados. Verifico o relógio da parede, eram quatro horas, apenas restavam duas horas para o fim da sessão.

Pedi apenas a metade do pão e dispensei o suco, não estava com muita fome, e queria evitar o risco de vomitar na frente de Victor.

Ele recusa o lanche, talvez tivesse inclinação para vômitos também.

Ele aguardou pacientemente enquanto eu mastigava mais vagarosa que uma tartaruga.Assim que terminei, Victor iniciou uma espécie de Jogo das perguntas. Onde morava, minha idade, meu telefone (meu Whatsaap), o que mais gostava de fazer, escola que estudo e série. Aproveitando a chance , fiz as mesmas perguntas.

Ele: Morava em bairro vizinho ao meu, dezessete anos - mais velho que eu quase um ano - gosta de ouvir música /tocar violão/natação e estuda numa escola privada no centro da cidade, estava no terceiro ano.

Eu: tenho dezesseis anos, gostava de ler (ele me olhou como se eu não fosse desse planeta), estudava em uma escola estadual que ainda possuía uma boa fama - não alcançava ao nível do colégio de Victor, claro - e estava no segundo ano do Ensino Médio.

O Jogo se prolongou até o fim da sessão, como se nós dois concordássemos em arrancar o máximo de informação um do outro. A sensação que sentia era de conhece-lo há anos. Precisava me lembrar de agradecer a Diogo por ter armado isso. Por um momento, era como se não estivéssemos na clínica, em tratamento. Era a primeira vez que me sentia bem aqui, durante a sessão. Era estranho e bom ao mesmo tempo.

As máquinas começaram apitar, uma após a outra, indicando o fim das sessões. Hora de ir para casa. Geralmente era a hora mais alegre da tarde, mas hoje eu não reclamaria se durasse mais alguns minutos, a conversa estava ótima, mas não queria que ele percebesse que desejava ficar mais. Porque sei que no instante em que nos separarmos, as lembranças ruins de mais cedo, voltarão com força total.

Fui desconectada da máquina primeiro, por Diogo, que estava rindo a toa. Depois observei ele trabalhar no braço de Victor, fazendo dois curativos volumosos para o sangue não vazar. Não pude evitar um arrepio que subiu por minha espinha.

Enfrentei a balança, descobrindo que perdi trezentas gramas, não havia escapatória quanto a levar bronca de minha nutricionista. Calcei meus tênis e esperei Victor na porta, não sei porquê. Acho que quero que meus me vejam conversando com ele.

- O que foi? - ele me perguntou.

- Vou ter uma reunião com a nutricionista. Se você ainda não a conhece, sorte sua.

- Abaixo do peso?

- Muito.

Cruzamos o corredor lentamente, e a nossa frente, Dona Eliza dava passos em câmera lenta, me deixando com preguiça. Quando finalmente chegamos a sala de espera, ele soltou um suspiro alto. Inicialmente, pareceu ser por nossa lentidão, mas ele estava olhando na direção dos meus pais, que conversavam com uma moça extremamente bonita.

- Eu falei para minha mãe não vir me buscar.

- Quem? - perguntei, e ele apontou para a mulher que agora fazia meus pais rirem.

- Você acreditaria se eu dissesse que aqueles dois, que estão ao lado dela, são meus pais?

Caminhamos até eles.

- Esse é o Victor, que falei para vocês - a mãe de Victor anunciou rindo. Fiquei embasbada com sua beleza. Ela nos enganaria facilmente se dissesse que era sua irmã mais velha. Ela era alta, seus cabelos pretos desciam até o ombro em ondas perfeitas, e possuía os mesmos olhos azuis do filho. Meus pais pareciam tão surpresos quanto eu.

- Bem, ela é a nossa princesinha - papai anunciou, para meu pavor. Todos riram.

- Que coincidência. Sou Bárbara - ela me beijou no rosto, sem formalidades, o que me deixou totalmente sem ação - Você é muito bonita, Luna, seus pais não exageraram.

A única coisa que consegui fazer foi assentir levemente, com a cabeça.

- Luna me ajudou muito, a aguentar a sessão de hoje - Victor contou para a mãe, e em seguida se dirigiu aos meus pais: - Muito prazer - ele apertou a mão de meu pai, e em seguida a da minha mãe. A expressão dela se parecia muito com de Diogo, rezei para ela não dar pulinhos de alegria, o que parecia ser seus próximos movimentos.

- Não fiz nada demais - minha voz soou mais baixa do que pretendia. Ele inverteu as coisas, quem me acalmou foi ele, e não o contrário.

A doutora Helena, a nutricionista da clínica, surgiu na sala de espera, e me chamou. Meus pais já estavam cientes, e informam Bárbara e Victor que precisávamos ficar mais um pouco.

- Até amanhã - Victor me beijou no rosto pela a primeira vez sem que eu esperasse por isso. Acenei para Barbara, enquanto minhas bochechas ferviam.

Ao nos afastar, me perguntei sobre o que ele quis dizer com “até amanhã”, porque tecnicamente, deveríamos nos ver daqui a dois dias, na quarta-feira.


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