Contos da Montanha Shiroyama escrita por Makimoto


Capítulo 4
Capítulo 3 — “Vamos ter que cavar.”


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente, tudo bem? Antes de mais nada, gostaria de me desculpar por só recentemente ter respondido alguns comentários bem antigos. Isso aconteceu porque eu não estava me sentindo bem psicologicamente nos últimos tempos, mas peço perdão, de verdade, pela demora. x.< Obrigada pelo carinho e pelo apoio que vocês têm me dado. Antes de passar o glossário do capítulo, eu gostaria de comentar e esclarecer uma paradinha que muita gente comentou: essa história não é uma história de ação. Não é um shōnen, não vai ter pancadaria, lutas, poderes nem nada desse tipo. É uma história focada em diálogos, em conversas e descobrimento pessoal, então sim, vai ter sempre essa pegada meio calma mesmo. Alguns capítulos exigirão confrontos diretos, um pouquinho mais de movimento, mas não esperem um shōnen nem nada parecido. Ok? ♥ Não me entendam mal, pls. Amo todos vocês que comentam aqui~! ♥♥♥ Vamos pro glossário?

Yōkai :: Termo genérico que denomina as criaturas sobrenaturais do folclore japonês;
Bakeneko :: Yōkai cuja forma assemelha-se a um gato;
Futakuchi Onna :: Yōkai cujo nome significa literalmente "Mulher de Duas Bocas";
Torii :: Portão tradicional japonês ligado à tradição e aos santuários xintoístas;
Sandō :: Caminho de acesso a um santuário xintoísta;
Haiden :: Edifício onde se realizam as orações e outros rituais de culto;
Ema :: Placas de madeira, exibidas em templos, onde se escrevem os desejos das pessoas;
Ebōshi :: Chapéu usado por monges xintoístas;
Kannushi :: Pessoa responsável pela manutenção de um santuário xintoísta e pelas cerimônias nele realizadas;
Kanji :: Caracteres da língua japonesa usados para escrever em japonês;
Shinmei-zukuri :: Estilo de arquitetura japonesa vista em templos;
Itsumade :: Yōkai com corpo de cobra, bico, asas e rosto humano;
Daimyō :: Senhor de terras japonês;
Onmoraki :: Yōkai em forma de pássaro com rosto humano;
Shamusho :: Escritório administrativo de um templo xintoísta;
Nirei Nihakushu Ichirei :: Prática coreográfica que consistem em palmas e reverências em uma determinada ordem;
Norito :: Liturgias ou encantamentos sagrados que são recitadas durante os ritos xintoístas;

[Bônus :: Aomaru, que apareceu neste capítulo, é a junção das palavras "Ao" (que significa azul) e "Maru" (que tanto significa bola, ou esfera, como também é um indicador normalmete usado em nomes masculinos da época).]

É isso, gente. x333~ Alguns termos acima se repetem de capítulos anteriores, mas eu quis colocar pra vocês não precisarem ficar indo em outros links. Espero que gostem, que comentem e tal, e boa leitura! ♥



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20 de junho, sábado;

Alguns dias após o bizarro ocorrido com Imamura-san, ela me fez uma visita no intuito de realizar uma consulta; a princípio, não me olhou nos olhos, talvez imaginando que eu tivesse descoberto sobre a origem de sua maldição. Assim mesmo, porém, eu a tratei como qualquer outro paciente e me esforcei para ignorar sumariamente o fato de que eu estava diante de um ser que havia deixado de ser humano e agora era um Yōkai. A atmosfera era desconfortável para ambas, mas, depois que o Bakeneko se interpôs entre nós, ainda que sem convite, eu senti que o ar tinha ficado estranhamente mais leve.

— A senhora está com uma aparência melhor. — Mencionei enquanto moía a raiz de gengibre que endossaria seu chá. — Tem sentido dor, tontura ou muita fome?

— Eu tenho comido normalmente desde aquele dia. — Ela respondeu, parecendo pouco à vontade. — A fome diminuiu e a única coisa que venho sentindo é um desconforto no estômago. Também consigo ouvir alguns sons mais claramente, sons que, para outras pessoas, são praticamente inaudíveis, como o bater das asas dos insetos e as folhas farfalhando nas árvores próximas à minha casa.

— Eu não sei como as coisas ficarão daqui para frente. — Respondi com honestidade. — Provavelmente, quando se sentir naquele estado novamente, terei de preparar outro Umeboshi ou qualquer outra coisa que dê um nó no seu estômago. Até lá, terá de se esforçar para controlar o apetite.

Senti vontade de perguntar sobre a boca na parte traseira de sua cabeça, mas não consegui pensar em nenhuma forma de fazê-lo sem que soasse desajeitado ou invasivo. O Bakeneko, no entanto, demonstrando não se importar com os parâmetros da etiqueta social, e parecendo adivinhar e dar forma aos meus pensamentos, deslizou seu corpo esguio até o espaço vazio ao meu lado e, após espreguiçar-se, indagou:

― E a outra boca? Agora que você é uma Futakuchi Onna, vai ter que tomar muito cuidado para que os aldeões não descubram.

― Por que? ― A mulher pareceu um pouco apreensiva. ― O que vai acontecer se eles descobrirem?

A expressão dissimulada no rosto do gato iluminou-se ao som da pronúncia da última pergunta. Eu o encarei em silêncio, afim de observar com mais afinco as nuances mais sutis de sua personalidade, ainda era desconhecida para mim, tendo a impressão de que ele estava se divertindo.

― Você sabe como os seres humanos podem ser cruéis. ― Provocou. ― Não foi você quem deixou sua enteada morrer de fome?

Imamura-san engoliu em seco e eu percebi seu olhar correr de um lado para o outro, evasivamente. Foi quando eu soube que era a hora de intervir.

― Eu posso examiná-la? ― Perguntei, interrompendo o felino atrevido. ― Quero dizer, a sua... cabeça.

Parecendo disposta a livrar-se do diálogo desagradável a qualquer custo, a viúva ― que naquele dia apresentava uma aparência muito melhor do que a do nosso primeiro e segundo encontros ― deu as costas para mim, posicionando-se à minha frente, e usou as mãos para afastar as madeixas escuras, revelando o órgão adicional que estava acoplado à sua nuca.

Pude notar que os lábios eram carnudos e se moviam sozinhos, tremelicando em pequenos espasmos, e os dentes pontudos pareciam limpos apesar de exalarem um odor atípico. Estreitei os olhos e me aproximei para observar melhor, completamente entorpecida por aquele fenômeno pouco usual, mas fui impedida de súbito pelo Bakeneko.

― Cuidado. ― Ele disse. ― Ou sua cabeça pode acabar aí dentro.

― Ele é seu amigo? ― A mulher me perguntou.

― Não. ― Respondi sem hesitar. ― Apenas decidiu morar aqui e acha que eu vou concordar.

― Achei que já tivéssemos discutido isso. ― Ele retrucou antes de eu decidir ignorá-lo.

Depois de algumas perguntas e de compartilharmos uma solução à base de gengibre que, dentre outras propriedades, possui compostos medicinais que auxiliam no controle estomacal, propus que eu acompanhasse Imamura-san à sua casa e que conversássemos no caminho. O Bakeneko insistiu para ir também, alegando que me importunar era mais divertido que ficar em casa, e eu concordei simplesmente porque não tinha ânimo para nenhuma outra discussão espirituosa.

O sol da tarde brilhava no céu, a despeito do clima fresco que rodeava o vilarejo. O chacoalhar das árvores ao vento, o caminhar das pessoas na rua e, principalmente, o fato de eu finalmente estar reconhecendo alguns rostos, propiciavam-me um humor especialmente agradável. Imamura-san parecia confortável também. Ambas ignoramos o felino que se movia ao nosso lado, para não colocar em dúvida nossa própria sanidade perante as pessoas normais que poderíamos eventualmente encontrar.

Enquanto íamos na direção norte, porém, reparei em um aglomerado de pessoas mais a frente. Estavam amontoados na frente de um santuário, e murmurinhos preenchiam todo o ar ao redor. Andavam de um lado para o outro, parecendo apreensivas, mas ao mesmo tempo curiosas, de modo que precisei de alguns segundos para finalmente me deparar com um conhecido no local.

― Makoto-chan, Imamura-san e... oh, posso ver que você fez um novo amigo. ― A familiar senhora aproximou-se de nós e pareceu surpresa ao se deparar com o Bakeneko, que, àquela hora do dia, sem suas esferas mágicas e a aura ameaçadora, parecia um gato comum.

― Yamada-san, olá, é bom ver a senhora. ― Sorri sinceramente. ― O que está acontecendo?

― Eu acabei de chegar, mas, ao que parece, o templo está amaldiçoado. ― Com ênfase descrente na última palavra, ela continuou: ― Um dos monges que trabalham no local está dizendo às pessoas que ontem à noite ouviu sons de um pássaro berrando muito alto antes de o depósito quase pegar fogo completamente.

Não fui capaz de esconder o meu espanto diante do relato, até que, subitamente, meu mirar foi atraído para os céus, em um intervalo de poucos segundos onde eu reparei na presença de uma espécie de animal voador, de corpo comprido e colorido, que se afastava em direção à montanha. Franzi o cenho, perguntando-me do que poderia se tratar, todavia, julgando ser uma ave exótica, e forçada a retornar à conversa por causa da quietude que se seguiu à minha última fala, exclamei:

― Que coisa horrível. A perda foi grande?

― Não muito. ― Yamada-san voltou o corpo na direção da entrada do templo onde pessoas ainda se acumulavam. ― Felizmente, o fogo foi controlado à tempo.

― Será que eu posso falar com o monge? ― Indaguei. ― Para saber se ele está bem, e se eu posso oferecer os meus serviços.

― Acho que seria ótimo. ― Ela sorriu com simpatia e indicou a direção que eu deveria seguir. ― Eu levo você.

Despedi-me de Imamura-san com uma mesura simples, vendo-a distanciar-se, antes de seguir a outra pela multidão em direção ao enorme Torii vermelho que guardava a entrada do templo.

Eu acompanhei a idosa através do Sandō, passando pela fonte de purificação ― que as pessoas normalmente usavam para limpar as mãos e a boca ― e pelas lanternas de pedra decorativas de ambos os lados, até que paramos próximo ao Haiden. Ela pediu que eu esperasse ali e, depois de um aceno positivo da minha parte, distanciou-se em direção ao que eu julguei ser a construção lateral que abrigava o escritório administrativo do templo.

Meus olhos se voltaram para o caminho que outrora eu percorri para observar com mais atenção os detalhes da construção. Havia um forte contraste entre o vermelho do santuário e o verde do bosque que o cercava, criando uma atmosfera natural e mística que muito me alegrava. Cheiro de incenso perfumado entrava pelas minhas narinas. Notei o painel que sustentava algumas Ema, com silhuetas esculpidas e indistinguíveis da distância em que eu estava, penduradas com perfeita simetria.

Era difícil descrever o quão profunda era a sensação de paz que aquele lugar ― onde eu nunca tinha pisado antes ― me trazia. O silêncio era mágico. Era quase como se eu pudesse sentir presenças desconhecidas me cercando durante o pouco tempo em que fiquei ali, estática. O som distante de um sino, quase irreal, hipnotizava os meus ouvidos e me fazia ter mais vontade de não fazer absolutamente nada além de piscar e respirar.

― Você deve ser a Kikui-san. ― Uma voz masculina sustou os meus devaneios. ― É um prazer conhecê-la.

Quando me virei, dei de encontro com um homem calvo, de feições amigáveis, que vestia uma bata branca e tinha um Ebōshi na cabeça. Ele cumprimentou-me com uma reverência educada que eu prontamente retribuí.

― Você é o Kannushi deste templo?

― Sim. ― Ele respondeu com voz macia. ― Ouvi falar muito de você.

― Não fiz nada que merecesse tal fama. ― retruquei com modéstia.

— Tenho certeza que isso não é verdade. — Ele insistiu.

Limitei-me a sorrir, mas percebi que o homem, em certos momentos, olhava desconfiado para o Bakeneko.

― Você sabe porque as Ema algumas vezes ostentam desenhos de cavalos, Kikui-san?

― Não. ― A pergunta abrupta capturou minha atenção.

― O segundo Kanji da palavra Ema significa “cavalo”. ― Explicou-me calmamente antes de apontar para o painel que eu estava contemplando momentos antes. ― Diz-se que os cavalos são os veículos dos deuses e que, por essa razão, no período Nara, cavalos eram ofertados aos templos porque se acreditava que assim os deuses receberiam mensagens com mais facilidade. Como cavalos eram caros, muitas pessoas passaram a oferecer imagens em argila, madeira e papel desses animais.

― Acredito que os templos mais antigos, ou de regiões mais pobres, não tinham espaço para guardar cavalos. ― Comentei. ― Não é?

― Sim. ― Informou enquanto a senhora Yamada e o Bakeneko nos observavam. ― Como você pode ver, este templo é muito pequeno e muito antigo, construído no estilo Shinmei-zukuri, porque essa região sempre foi muito distante das cidades maiores e a vida aqui é um pouco menos prática que o comum.

Concordei com a cabeça, deixando-me envolver pelo ar melancólico, até que o motivo de minha visita retornou à mente como um raio:

― Ouvi falar que o senhor afirmou que este templo estava amaldiçoado.

O semblante do Kannushi mudou instantaneamente e sua hesitação era clara como a água da chuva. Senti que tinha atingido um ponto crítico quando ele, vacilante, pareceu buscar em sua mente as palavras apropriadas.

― Eu tenho certeza de que havia algo no templo ontem à noite. ― Ele ergueu os olhos, encarando-me diretamente, e de repente seu tom de voz tornou-se muito convicto. ― Eu estava dormindo em meus aposentos, perto do prédio administrativo, quando ouvi um som bizarro vindo de dentro. Fui verificar e o som ficou mais alto, quase como o chilro de um pássaro demoníaco, e foi então que eu percebi que as prateleiras estavam pegando fogo.

― O incêndio parece ocasional, mas o chilro... ― Ponderei. ― É deveras estranho.

― É um Yōkai. ― o gato-monstro disse.

― O que? ― Indaguei por reflexo.

― O que? ― o Kannushi pareceu confuso.

Eles não podiam ouvi-lo. Podiam vê-lo, mas não ouvi-lo.

Balancei a cabeça em negação, indicando que não era nada importante, e optei por perguntar como ele estava se sentindo. O monge afirmou que estava bem e que não havia fumaça suficiente para intoxicá-lo. Como ele não demonstrava nenhum sinal preocupante, eu apenas lhe disse que poderia fazer-me uma visita caso se sentisse mal e despedi-me em partida.

Retornei pelo caminho que fizera anteriormente, matutando, durante todo o trajeto, sobre aquele caso tão peculiar. O Bakeneko tentou me convencer que se tratava de um Yōkai, mas eu era capaz de pensar em pelo menos meia dúzia de explicações lógicas. O monge não pareceu estar mentindo, embora eu acreditasse veementemente que a fadiga poderiam ter afetado seu julgamento, apesar de que não me soava impossível que um pássaro, talvez de uma espécie diferente, tivesse entrado no templo por engano e emitido o som que o assustou. O fogo, entretanto, era o que não se encaixava na história.

Quando finalmente chegamos em casa, percebi que os primeiros resquícios de que a tarde se findava já apareciam no céu e na atmosfera ao redor.

No momento em que deslizei a porta de correr, senti meu coração quase saltar pela boca graças à visão assustadora diante dos meus olhos. Havia uma criatura de aparência grotesca na minha sala. Tinha rosto humano, mas seu corpo era liso como o de uma cobra ― embora tivesse asas ―, havia um bico de ave no lugar da boca e suas mãos ostentavam garras afiadas. Ele me encarava imóvel e eu sufoquei um grito de pavor, antes de dar dois passos para trás e sentir o corpo peludo do Bakeneko bloqueando minha passagem.

― Não tenha medo. ― Ele disse. ― O Itsumade é inofensivo.

― Também é bom ver você, Aomaru. ― O monstro murmurou.

Depois que o susto passou e eu me acalmei ― processo que durou em torno de meia hora ―, embora eu ainda mostrasse alguma dificuldade em ficar perto do bizarro visitante, observei, estupefata, a conversa entre as duas criaturas, sentindo-me absolutamente deslocada. Vez ou outra eu olhava de soslaio o chamado Itsumade, todavia, fosse pelo medo ou por uma discrição irracional, eu sempre corrigia a minha postura.

Não era a primeira vez que eu lidava com um Yōkai, mas alguma coisa dentro de mim me dizia que essa não era a única razão pela qual eu era capaz de aceitar a existência de seres tão monstruosos com debatível indiferença.

― Era você quem sobrevoava o templo hoje cedo? ― A lembrança estalou em minha mente. ― Tenho certeza de tê-lo visto, ou algo muito parecido, saindo do santuário e se dirigindo para a montanha.

― Sim, era eu. ― Ele confirmou.

― O que está acontecendo?

― Eu vim avisá-la. ― Ele rastejou em minha direção e por pouco eu não me afastei. ― Há algo acontecendo naquele templo e achei que essa informação seria útil para uma Shisha.

― Uma o que?

Notei que o recém-chegado e o Bakeneko trocaram olhares confidentes e apreensivos, criando um silêncio incômodo entre nós, antes de claramente tentarem mudar de assunto.

― Há algo que eu deva saber? ― Tornei a perguntar.

― Eu vou explicar.

― Ah, isso vai ser muito interessante... ― suspirou o Bakeneko com sarcasmo.

Segundo o Itsumade, tudo começou quando, no período feudal, dois grandes Daimyō disputavam a região que cercava a montanha muito antes do vilarejo ser construído. Samurais treinados, movidos pela honra de seus patrões e pela promessa de glória, lutaram uns contra os outros em uma longa e sanguinária batalha. Um dos lados começou a ceder, enxergando a necessidade de recuar, e assim as tropas desfalcadas se moveram em direção à montanha com o objetivo de se reorganizarem e arquitetarem uma emboscada.

O tempo passou, mas nenhum guerreiro do lado oposto os seguiu. A fome, a sede e o desespero assolaram os que se esconderam na montanha e abateram o grupo um por um. O líder da tropa ― conhecido por sua força e vigor ―, por ter sido o último sobrevivente, responsável também por enterrar dignamente seus companheiros, não recebeu um funeral adequado, e seu corpo, cheio de ressentimento foi absorvido pela terra, gerando uma maldição latente que só despertara recentemente.

— Por que a maldição só despertou agora? — Levantei uma sobrancelha. — Depois de tanto tempo?

— Espíritos vingativos não têm, exatamente, um período certo para despertar. — O Itsumade explicou. — Ele pode vir à tona um dia após a sua morte ou mesmo anos depois; você apenas teve o azar de estar no lugar e hora errados.

― Qual a ligação desses eventos com os sons bizarros que o Kannushi ouviu no templo? E o quase incêndio?

― O espírito do último samurai manifestou-se na forma de um Onmoraki. ― ele tinha um tom de voz passivo. ― Um Yōkai que nasce do ressentimento do morto. Ele emite sons assombrosos e cospe fogo.

― Isso quer dizer que os sons que o monge ouviu, assim como o incêndio no depósito, foram obra do Onmoraki. ― o Bakeneko se pronunciou finalmente. ― Eu disse que tinha sido um Yōkai, mas você, como sempre, preferiu ignorar a minha existência e fingir que eu sempre não tenho razão.

― E o que deve ser feito? ― Questionei o visitante, de fato ignorando a existência do outro. ― Quero dizer, para apaziguar esse Yōkai e impedir que ele cause mais problemas?

― Creio que uma cerimônia de enterro seria o suficiente.

— Há alguém que possa fazer isso? — Insisti.

— Você é, aparentemente, a única capaz de resolver esse problema. — Sua voz portava uma sabedoria incontestável. — Você pode optar por não fazer nada, não é como se fosse sua obrigação, mas tenha em mente que, por saber da nossa existência, você é a única que pode resolver esse problema.

Suspirei, pressionando os lábios um no outro, enquanto tentava me familiarizar com tudo o que eu tinha ouvido. Balancei a cabeça, em sinal afirmativo, para indicar que eu iria seguir adiante.

― Nós vamos exumar um corpo? ― O Bakeneko fingiu excitação inocente. ― Finalmente faremos algo divertido!

Entre ideias e discordâncias, nós três ― eu, o Itsumade e o Bakeneko ― passamos as últimas horas do dia discutindo sobre os conceitos, tanto morais quanto espirituais, que quebraríamos se decidíssemos dar continuidade ao plano e as consequências desastrosas que os aldeões sofreriam caso optássemos por não fazê-lo. A apreensão que me tomara de início, perfeitamente justificável dadas as circunstâncias fantásticas em que eu me encontrava, parecia dissolver-se em cada sílaba dita, em cada palavra mencionada e em cada nova informação sobre aquele mundo invisível aos olhos comuns que eu gradativamente recepcionava.

Ao cair da noite, após nos armarmos com um recipiente com água e incensos, deixamos a minha casa e rumamos em direção ao santuário. Era tarde o suficiente para que todos já tivessem se recolhido. O som de grilos cantantes e o ar frio da noite nos acompanharam durante todo o trajeto, mas eu tinha consciência de que, se alguém pudesse ver a verdadeira natureza dos que caminhavam ao meu lado, a solidão sinistra e o medo do escuro se tornariam insignificantes.

Percorremos o mesmo caminho que fizera mais cedo naquele dia, através do Sandō até o Haiden, e o silêncio sepulcral lá também imperava. Havia qualquer coisa de sombrio naquele lugar à noite. Sem os raios de sol acentuando o vermelho, nem a atmosfera apaziguante e tranquila que aquele pedaço improvisado do paraíso proporcionava, a sensação era que se tinha sido transportado para um lugar distante e vazio.

― Nada como um templo assustador à noite. ― O Bakeneko comentou conforme nos aproximávamos do Shamusho. ― É tão sinistro e revigorante.

Lancei um olhar de reprovação para o felino, enquanto o Itsumade permanecia estoico ao meu lado, e nós nos dirigimos para o prédio administrativo onde o monge tinha dito ter presenciado fenômenos sobrenaturais. Curvei-me em um mudo pedido de desculpas pela violação indevida e entrei.

O lugar era pequeno e estreito, repleto de prateleiras ― que exibiam artefatos religiosos, bem como pergaminhos e estatuetas esculpidas à mão ― e cheirava a mofo. Conforme nos aprofundamos mais, percebemos que a natureza do cheiro se tornava diferente. Era um aroma de queimado, semelhante a enxofre, principalmente próximo às prateleiras do fundo.

― Creio que o incêndio aconteceu aqui. ― Apontei a parte do aposento cuja parede de madeira próxima estava mais escura que o normal. ― Embora as prateleiras já tenham sido substituídas, dá para ver que a madeira sofreu queimaduras severas.

― Se o Onmoraki apareceu aqui, isso significa que o corpo do samurai deve estar enterrado exatamente embaixo desse escritório. ― O Itsumade concluiu enquanto flutuava ao meu lado. ― Vamos ter que cavar.

― Eu não estou certa se devemos fazer isso. ― Pela primeira vez eu me sentia insegura quanto às consequências daquele ato. ― Nós estamos violando um local sagrado e, embora eu nunca tenha sido excepcionalmente religiosa, não sei que tipo de consequências isso pode trazer.

― Fazer alguma coisa ou não é escolha sua e isso particularmente não vai me afetar em nada. ― O Bakeneko disse com aparente descaso. ― Mas, se decidir não fazer nada, esse Yōkai vai continuar perturbando os aldeões e nunca se sabe o que mais ele pode aprontar.

Havia uma guerra sendo travada dentro de mim entre meu senso de justiça e minha preocupação com o bem-estar das pessoas do vilarejo. E eu não tinha muito tempo para pensar.

― Tudo bem. ― Anunciei. ― Mas como nós vamos...

Antes que eu concluísse a frase, o felino, que parecia estar esperando a minha decisão, voltou a cabeça para o chão e, depois de concentrar suas energias ― fazendo as esferas azuis ao seu redor brilharem com mais intensidade ―, usou as patas para atingir o chão e abrir um buraco circular na superfície de madeira. Terra foi revelada e eu arregacei as mangas. Tentei manter em mente que o que eu estava prestes a fazer era por um bem coletivo.

Ajoelhei-me no chão e me pus a cavar com as mãos, jogando a terra remanescente para uma direção específica, enquanto o Bakeneko perfurava o solo muito mais rápido graças às suas patas velozes. Em pouco tempo, minha roupa estava cheia de manchas marrons que se espalhavam pelo branco como musgo em pedra úmida. Pouco habituada a trabalhos manuais como aquele, minhas mãos logo se cansaram e eu senti um calor inexorável tomando conta do meu corpo. Meu coração bateu mais rápido, no entanto, quando, em meio à terra batida, minhas mãos tocaram um objeto comprido e endurecido.

― Achei alguma coisa. ― Anunciei, com nervosismo, antes de perceber que se tratava de um osso. ― E acho que foi perna do nosso amigo.

Embora o mundo dos Yōkais ainda fosse novidade para mim, o do corpo humano, da medicina e, principalmente, da anatomia já era um território com o qual eu estava familiarizada. O osso não me assustou, mas o barulho repentino que nós ouvimos, e que parecia vir de dentro do próprio escritório, sim.

― O que foi isso? ― Perguntei. ― Tem mais alguém aqui?

― Sim. ― Os olhos do Bakeneko estavam fixos em algum lugar do escuro. ― Continue cavando.

A julgar pela posição ofensiva com a qual ele se projetou, o fato de suas garras estarem a amostra e os rosnado indiscreto que ecoou pelo cômodo, tive a sensação de que eu deveria acatar a ordem que tinha sido dada. E depressa. Continuei cavando, naquele momento com mais afinco, enquanto sentia uma elevação significativa na temperatura.

O gorjeio macabro de um pássaro foi ouvido, interrompendo subitamente a minha tarefa, ao passo que uma rajada de fogo brilhante rasgou o ar e quase me acertou. Graças à uma reação rápida, embora não sem que eu precisasse sufocar um gemido de assustado, fui capaz de me abrigar dentro do buraco onde eu já estava. Quando ergui-me novamente, vi o que parecia uma criatura vinda diretamente do inferno: uma ave negra, com feições humanas, bico, e olhos reluzentes feito lanternas.

Senti o coração retumbar dentro do peito enquanto o Bakeneko se interpôs entre mim e o monstro, sibilando com agressividade, fazendo-o parar por um instante. Fiquei paralisada, e tentei não fazer barulho com a minha respiração entrecortada, mas quando o felino saltou sobre o outro, tentando acertá-lo com suas garras, entendi que eu precisava agir.

― Eu preciso do incenso. ― Eu disse para o Itsumade. ― E da água.

Peguei todos os ossos que encontrei ― um crânio, uma mandíbula, o esterno interligado por poucas costelas que já quase se desfaziam, um fêmur e alguns outros ossos menores ― e saí do buraco às pressas. Outra enxurrada de fogo quase me acertou, mas eu desviei, e saí em disparada.

Fui ao encontro do Itsumade, que carregava em uma mão o balde de madeira cheio de água e na outra os incensos, e estendi as mãos para apanhar os itens. Naquele exato momento, entretanto, sem que eu tivesse tempo de executar qualquer reação, o Bakeneko surgiu na minha frente e só tivemos tempo de olhar um para o outro antes que uma onda de fogo surgisse às suas costas e quase o engolisse.

― Cuidado! ― ele gritou antes de urrar de dor ao ser atingido.

Eu fiquei imóvel, sem saber o que dizer, enquanto ele caía diante dos meus olhos. Senti-me envolvida por uma preocupação e um temor que eu não previa. O Itsumade me cutucou, lembrando-me que ainda havia um ritual a ser feito, e eu prontamente voltei à realidade tentando me concentrar em meu dever.

― Vamos lá. ― eu disse, ofegante e com as mãos trêmulas, após apanhar os ossos e ajoelhar-me no chão.

Enfiei-os dentro do balde, lavando-os em uma purificação improvisada, e acendi o incenso com o fogo remanescente na madeira atrás de mim. Foquei meus olhos na figura grotesca que se aproximava de nós, enquanto juntava ambas as mãos para orar, preparando-me para o Nirei Nihakushu Ichirei: curvei-me duas vezes, bati palmas duas vezes e curvei-me em uma última reverência.

― “Ó Deusa da purificação, criados por ordem do Pai e da Mãe que habitam o Céu, justamente quando o Deus Izanagi-no-Mikoto se banhou na foz estreita de um rio coberto por árvores permanentemente frondosas, na região sul!” ― Comecei a oração, sem me preocupar com a entonação ritualística necessária. ― “Com todo respeito e do fundo do coração pedimos que nos ouçam, tal como o eqüino, que ouve, atento com ouvidos aguçados e, juntamente com os demais Deuses do Céu e da Terra, purifique todas as maldades, desgraças e pecados. Amaterasu, protegei-nos e concedei-nos a felicidade. De acordo com a Vossa Vontade, aumentai a bem aventurança de nossas almas.”

Quando terminei de recitar o Norito, percebi que o Onmoraki recuava, berrando, tremendo e se debatendo. Percebi que se preparava para lançar um último jato flamejante e, rapidamente, peguei o embrulho onde os ossos purificados estavam e lancei-os para o alto com toda a força que tinha. As chamas atingiram o alvo em movimento e, num fenômeno instantâneo que eu nunca tinha visto, todo ele se desintegrou, restando apenas as cinzas que passaram a cair sobre nós como uma chuva pálida e melancólica.

— O último passo era a cremação... ― O Itsumade mencionou vagamente.

Suspirei, retomando o fôlego que eu perdera, e meus olhos se voltaram instantaneamente para o felino que, apesar da parte direita do pêlo queimada, se erguia com suas majestosas esferas azuis. Ele tremelicou os bigodes e sacudiu as orelhas para livrar-se da poeira, e eu, completamente maltrapilha, acompanhei seus passos com os olhos até que ele estivesse bem perto de mim.

— Você me deve uma. — Ele disse.

— Eu sei, Aomaru. — retruquei tentando reproduzir parte de seu sarcasmo.

— Não me chame assim.

— Tudo bem... — fingi concordar. — ... Aomaru.

Ele atirou areia em mim, com a pata direita, visivelmente encabulado com a inesperada intimidade que nasceu entre nós, e eu sorri. Exausta.

Antes de partirmos, tive a ligeira impressão de ter visto a silhueta de um homem, vestido em trajes de samurai, observando-nos por entre as prateleiras do escritório antes de desaparecer no ar, mas, assim como o estardalhaço que se daria por causa da bagunça que nós fizemos, preferi pensar no assunto apenas no dia seguinte.


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Notas finais do capítulo

Sintam-se livres pra comentar e opinar sobre o que quiserem! ♥ E obrigada por tudo mesmo~!