A Pianista escrita por Ero Hime


Capítulo 1
Único


Notas iniciais do capítulo

GaaHina sempre em nossos corações (enquanto eu choro por shippar não-canon)



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Gaara estava impaciente – talvez um tanto melancólico. Arrastava os pés pelo corredor escuro e fétido, percorrendo a parede descascada com a ponta dos dedos. A chuva torrencial que sacudia as vidraças já velhas não contribuía para melhorar seu humor. No entanto, ninguém se daria o trabalho de perguntar como ele estava naquela ou nas outras manhãs – ninguém se importava realmente com um louco.

Ele havia aceito sua condição, desde que entrara no Villete – famoso e temido hospital psiquiátrico, outrora uma importante base militar das províncias japonesas já esquecidas. Corriam boatos que os prédios de dois andares cada, precariamente construídos, ainda guardavam pólvora e armamentos em seus subterrâneos, mas Gaara, depois de longos três anos de exploração e busca, afora os quinze meses internado, sequer encontrara uma centelha de sol, que dirá armamentos. Com disposição para apenas cem pacientes, o Villete contava com a entrada de mais de trezentos e cinquenta pessoas em suas intermediações. Os quartos, transformados em cubículos de estadia, economizavam o pouco espaço contido, e os andares subdividiam-se em alas masculinas e femininas, para evitar conflitos. Não havia um real sentido para aquilo – os loucos interagiam entre si, e ninguém os impedia. No final, eram temidos por todos e por eles mesmos.

Gaara não era de muitos amigos – na verdade ele desprezava a maior parte do contato social naquele lugar. No entanto, tinha olhos e ouvidos, e conhecia grande parte dos residentes. Era um tanto quanto deprimente, na realidade. Desde que fora mandado para lá, o garoto estava resignado sobre sua posição: era louco. Completa e perfeitamente insano. Precisava se afastar da sociedade, conviver entre os seus até que melhorasse – ou não. Mas aquelas pessoas... elas apenas ignoravam. Seguiam, como se estivessem em um resort, como se as terapias de eletrochoque fossem mimos, como se os remédios de morfina que tomavam diariamente fossem pílulas para dormir. Gaara queria despertá-las. Queria gritar para que percebessem e reagissem, tentassem se recuperar. Mas, de qualquer maneira, estava ocupado demais, perdido dentro da própria mente.

Mas não por muito tempo.

Chegou no refeitório pouco tempo depois do café começar a ser servido. Como costumeiro, não estava com fome, mas precisava, ao menos, fingir ingerir alguma coisa sólida, ou então seu médico lhe proibiria de sair a noite.

E ele não poderia ir ouvi-la.

Percorrendo os olhos cuidadosamente pelo salão, localizou a mesa mais afastada e seu típico frequentador, que já conversava, em meio a berros, com o estranho amigo que nunca falava, apenas observava-os pensando na melhor maneira de matar a todos. Mais uma manhã normal no Villete.

O ruivo caminhou pelas laterais, tentando atrair o mínimo de atenção possível. Entretanto, teve de desviar de algumas garotas que o irritavam. Quando chegou, sentou-se de maneira estratégica, observando a entrada do refeitório, a espreita.

– Ohayo, Gaara! Como você está hoje? – gritou o garoto loiro em sua direção, e Garra lhe fitou sem esboçar grandes emoções.

– Desprezivelmente bem, Naruto, e você? – perguntou por educação. De maneira bem relativa, era contra qualquer entrosamento entre os grupos de loucos, mas o colega era insistente, e, querendo ou não, uma boa relação ali dentro. Naruto conhecia as pessoas como ninguém.

– Muito bem, obrigado! Hoje eu me levantei pelo lado direito da cama, e meu médico disse que isso é uma coisa positiva! Positiva! – exclamou, sem perder o entusiasmo. Ao seu lado, o sempre calado garoto suspirou.

– Naruto, cale a boca. Ninguém se importa. – Gaara arrepiou-se com a voz gélida que entrou por seu ouvido.

– Deixa de ser ranzinza, Sasuke! Aqui, pegue um bolinho! É de creme! – empurrou uma de suas inúmeras bandejas para o garoto, que as ignorou com um movimento curto.

Gaara fitou a dupla, intrigado. Desde que entrara, fora assim. Todos conheciam as histórias, e os boatos eram alimentados com frequência naquele lugar. No entanto, ninguém fora capaz de explicar porque Sasuke e Naruto eram amigos, sendo tão diferentes em personalidade – ou personalidades. De qualquer maneira, Sasuke não interagia com ninguém, a não ser Naruto, e raramente, o garoto. Fora aceito por eles quando ninguém mais o fez, e era parcialmente agradecido. Embora não quisesse ter relações, era bom o convívio com os rapazes.

Ignorando a eletricidade momentânea de Naruto, continuou a observar, tentando identificar a garota. Depois de tanto tempo, tinha a mais absoluta certeza de que, se não a encontrasse, ficaria louco – um paradoxo realmente hilário. O que lhe irritava era não ter absolutamente nenhuma informação. Estava de olhos vendados, guiado por seus instintos, perdido em toda aquela besteira mental. Ela era sua lucidez, mas quem era ela?

Fazia aquilo há algumas semanas, escondido de todos. Estava caminhando, como de costume, depois de um ataque. Os residentes não tinham permissão de andar pelo prédio depois do toque de recolher, mas seu psiquiatra havia lhe dado carta branca. Com uma das mãos no bolso, beliscava inconstante seu dedão, sentindo a cabeça zunir. Estava na beira – sentia isso. Estava no precipício novamente, e seus pés doíam. Ele ia cair. Mas então, parou.

Seu ouvido captou algo. Com um pouco de esforço, caminhou em direção ao som. Subiu dois lances de escada. Estava tudo quieto, a não ser por aquele ruído, que chegava minguado até ele. Arrastou-se pelas portas, até o final do corredor, quando encontrou. A penúltima porta a esquerda. Era o corredor das salas trancadas, como chamavam. Somente uma daquelas portas se abria aos residentes, que era o salão dos quadros, onde podiam pintar. Gaara nunca tinha ouvido falar daquela porta. O som ficou mais alto e melodioso.

De repente, ele não estava mais na beira. Não estava caindo. Seu peito, tão milagrosamente, havia se livrado de um peso que há muito o instigava. Sua mente dissipara-se de pensamentos, e ele estava transparente. Como nunca antes.

Se aproximou, timidamente. Espiou pelo ladrilho de vidro preso no alto. Cerrou os olhos, tentando avistar. Havia uma janela, aberta, e a única fonte de luz no quarto. Então, reconheceu a melodia suave. No centro da sala, de costas para a porta. Uma pessoa – não, uma garota. Gaara não a reconheceu. A única coisa que conseguia enxergar eram os fios negros, escorridos por suas costas, quase até chegar ao estofado, iluminados pela luz da lua. Era de aparência mirrada, e tocava incansavelmente.

Gaara não sabia o que era paixão, mas poderia quase jurar que era o que estava sentindo. As músicas que aquela garota tocou ao longo da madrugada, de alguma maneira, o trouxeram a realidade. Recostou na parede, escutando, em silêncio. Esperaria até que ela saísse, mas ela não saiu. Continuou a tocar, e tocar, até que o garoto caísse no sono. Quando despertou, era o ápice da manhã. Estava sentado, como adormecera, a sala estava trancada, sem ninguém do lado de dentro. Conseguiu avistar o piano. De cauda, velho e desbotado. Ele não sabia como um instrumento tão insignificante, nas mãos daquela garota, podia tornar-se a sua libertação – mas aconteceu.

Todas as noites, no mesmo horário, saía de seu quarto. A garota já estava lá, tocando as mesmas músicas, mas Gaara não se importava. Enquanto as ouvisse, estaria bem. Seu coração purificava, se renovando consagrado. Em sua mente, era capaz de recordar-se das lembranças felizes, outrora guardadas no fundo, escondidas de sua loucura. E ele adormecia, envolto pela tranquilidade que há tanto não alcançava. No entanto, de manhã, a velha frustração de não saber quem ela é.

Ela. A pianista.

Sentia-se desgostoso. Não gostava da desilusão, do escuro. Por mais que observasse, manhã após manhã, não encontrava nenhuma sombra sequer parecida com a garota. Irritava-o não saber quem ela era. Depois de tantos anos, sentia-se como um veterano, conhecia cada canto e cada pessoa que entrara depois de si, suas histórias, seus temores.

Olhou para o lado, de relance, observando a dupla discutir incansavelmente. Conhecia-os também. Uzumaki Naruto, entrou quatro meses depois que recebeu alta do centro de internação do hospital. Lembrava-se bem de sua chegada, animado e receptivo. E lembrava-se do dia seguinte, quando tentou matar um dos enfermeiros com uma tesoura. Internado pelo pai para manter a boa aparência da família, sofria de múltiplas personalidades. Como uma granada prestes a explodir, nunca sabia-se com qual dos Narutos você estava conversando naquele momento. Sua mente, no entanto, estabelecera uma única e fixa personalidade para quaisquer que fossem os problemas. O Naruto sempre tão animado era aquele conhecido por todos.

Já Sasuke entrara um ano depois. Fora um grande evento quando o Uchiha passara pela porta – já famoso antes de sequer entrar. Gaara sabia bem o motivo. Seu irmão mais velho, um dos pacientes mais antigos. Itachi enlouquecera ao nível máximo, vivendo, naquele momento, trancado em seu quarto. Não saía ou interagia. Apenas um dos enfermeiros tinha permissão para entrar, e apenas para levá-lo comida. Ordens do diretor. De qualquer maneira, ninguém esperava que o irmão seguisse seus passos. Psicopata e sociopata, assassinou três colegas e uma senhora, além de matar e empalhar os animais de estimação. Naruto fora o único que se atreveu a falar com o garoto. De alguma maneira, chamou sua atenção, e se tornaram inseparáveis desde então. Naruto gostava de Gaara, então o chamou para sua mesa pouco tempo depois de Sasuke chegar.

Havia também a garota de cabelos róseos, Sakura. Andava apenas com uma garota loira excêntrica, depressão profunda e pensamentos suicidas na maior parte do tempo. Sua amiga, Yamanaka, era um mistério para a maioria das pessoas ali, mas bocas pequenas sussurravam que havia matado a própria irmã por inveja e depois, arrependida, tentou se matar.

Gaara sabia de tudo e todos – ou quase. Mas aquela garota... ele apenas não conseguia encontrá-la. Não sabia nada sobre ela, apenas que tocava piano, e exercia sobre ele um poder inestimável. Ele tinha que descobrir.

– Cinco minutos, pessoal! Vou pregar aqui a lista para terapia em grupo hoje. Aquele que não comparecer ficará sem sobremesa pelo resto da semana, palavras do Dr. Hatake! – um dos enfermeiros gritou, e o salão diminuiu o volume até que restassem apenas múrmuros assustados. O psiquiatra chefe, Hatake Kakashi, era conhecido por ser radical em seus tratamentos.

Gaara suspirou. Sabia que estava na terapia de grupo naquela manhã, pois havia cabulado as outras duas a qual fora escalado. Uma das poucas normas do Villete era que os residentes interagissem – na presença de um dos médicos – para ajudar no tratamento e na reinserção do paciente no meio social. Naruto, ao seu lado, tagarelava sobre como estava ansioso para a terapia, mas Gaara sabia que era questão de tempo. O garoto logo cairia em depressão profunda ou se irritaria com até mesmo o mais pesar dos ventos.

Resignado, se levantou e, sem mais palavras, se dirigiu até seu quarto, se preparando para a terapia. Caminhou, com a cabeça baixa, pelos corredores. Ao passar pela grande porta de vidro, não resistiu – fitou o reflexo. Um suspiro escapou de seus lábios, e suas unhas arranharam a palma. Os olhos apagados envoltos por grandes bolsões arroxeados avistavam uma figura magra e apática, outrora atlética. Passara, praticamente, toda a adolescência ali. Alguns exercícios por semana, foi o recomendado. “Seja apenas um garoto normal”. Conseguiu sorrir, irônico. Um garoto normal não teria suas cicatrizes, ou até mesmo a tatuagem brilhante, no canto superior esquerdo de sua testa. Dia e noite, não o deixava esquecer, sobretudo, da onde viera, e os motivos que o levaram ali.

Voltou a andar. Lembrou-se porque tirou os espelhos de seu quarto.

Ao chegar, jogou-se na dura cama de hospital, olhando o teto. As velhas estrelas adesivas coladas no teto foram tudo que lhe restara como lembranças de casa. Fechou os olhos, se permitindo levar-se pelo mar de fel que o acolheu de braços abertos, lhe embalando em um sono sem sonhos.

Quando o enfermeiro bateu em sua porta, Gaara resmungou, tendo a impressão de havia somente piscado por alguns segundos. Flexionou o corpo para cima, sentindo a cabeça pesar. Seu ânimo caiu quando percebeu que teria de passar duas horas dentro da sala com os outros residentes do seu nível – loucos como ele, nem mais, nem menos. As terapias em grupo serviam para que os pacientes percebessem que “não estavam sozinhos”. Geralmente, cada um contava aspectos da sua semana, compartilhava dúvidas ou pesadelos, enquanto o psiquiatra geral, Hatake Kakashi, escutava tudo atentamente – ou fingia bem – e anotava em sua caderneta. Gaara, tal qual muitos outros, preferia apenas ouvir.

Se levantou, segurando-se na parede. Escondeu as mãos com a manga do moletom, grande demais para seu corpo esguio. Suspirou, sem se importar em arrumar os fios vibrantes de sua cabeça. Apenas calçou os tênis e saiu. O enfermeiro o esperava pacientemente. Seguiram, lado a lado, em silêncio, até a grande sala do prédio vizinho. Enquanto caminhavam, Gaara perdia-se em pensamentos e diálogos intermináveis consigo mesmo, perguntando-se, em especial, porque se davam o trabalho de acompanhá-lo, estando ali há quatro anos. Admitia ter certa culpa – por vezes, gostava de fingir ser completamente insano. Em um hospital psiquiátrico, ninguém questionava suas atitudes, ou se importava com elas. Pessoas loucas fazendo loucuras. Gostava de sair correndo do refeitório sem ser seguido, poder surtar e gritar, dizer coisas sem sentido. Desejava, internamente, poder ser total e plenamente louco, e então, esquecer da realidade.

Com uma parada brusca, foi deixado em frente as grandes portas, agora totalmente abertas. Suspirou novamente. A mesma merda de sempre.

As pessoas ainda entravam e se acomodavam. Reconheceu a maior parte do círculo. Vira quase todos chegarem. Em sua maioria, adolescentes e jovens – Kakashi achava que seria “proveitoso” deixá-los interagir com “pessoas de sua faixa etária”. Babaca, pensou, sentando-se entre Naruto e uma garota desconhecida, de coques e que sempre carregava uma faca consigo. Gaara a temia secretamente, mas o loiro era uma companhia agradável. Naquele momento, portava uma face alegre, embora com algumas caretas ocasionais. O ruivo sequer estranhou – certamente as personalidades estavam em conflito novamente. Sentiu pena do amigo (se podia chamá-lo assim). Comparado a algumas pessoas daquela sala, Gaara, de maneira alguma, era louco. Mas não era isso que seus pais – e seu psicólogo – pensavam, infelizmente.

Em sua cadeira reclinável, começou a brincar, inclinando-se para trás e voltando, distraindo. Neste momento, quase todas as pessoas já haviam se acomodado. Seus olhos correram vagamente pelo salão, mas sentiu o corpo amolecer e quase caiu. Seus pés fugiram do chão, mas em um impulso mecânico, voltou, encarando a sua frente, lutando com todas suas forças para não abrir a boca em surpresa.

Ele reconheceria aquele cabelo em qualquer lugar.

Era ela – era sua pianista.

Vista frontalmente, Gaara teve certeza de que ela não poderia ser real. A primeira coisa que observou foram seus olhos. Não detinham cor – apenas uma grande íris perolada, quase transparente. Supos que fosse cega, mas ela desviou de uma bolinha de papel jogada por outra pessoa. Atônito, correu os olhos por toda sua estrutura. Diferente dos outros pacientes, usava um vestido de cores claras, esvoaçante, quase como se emanasse um sentimento diferente. O tecido embolava-se em ondas. Gaara não compreendia o suficiente para dizer de que material seria feito, mas afirmava, com certeza, que parecia fazer parte de seu corpo. Sua pele, pálida, era lisa, sem manchas ou feridas. Como porcelana. O cabelo escorrido contrastava sua brancura. Vista daquela maneira, o garoto poderia julgá-la uma boneca.

Com as mãos postas sobre as pernas de maneira delicada, o ruivo vislumbrou os dedos cálidos percorrendo as notas, de modo suave, melodiando contra o velho instrumento de cauda, o transformando em sua redenção.

Gaara precisava saber quem era aquela garota. Precisava de respostas, saber seu nome, lhe perguntar porque causava em si tantos efeitos. Porque ele se sentia tão desperto quando a ouvia tocar.

No entanto, o encanto pouco durou. Ao seu lado, seus olhos foram atraídos pela grande figura, singela e quieta. A sala se fechou em burburinhos, e o ruivo teve de engolir em seco. Depois de tantos anos, tantos boatos. Ao lado da pianista, estava Itachi – com um braço protetoralmente estendido sobre seu corpo mirrado. A respiração de Gaara falhou, os pulmões gritando quando o oxigênio saiu. Aquele, certamente, não era um dia típico no Villete.

– Tudo bem, pessoal, vamos acalmar esses ânimos. – o Dr. Hatake entrou com sua costumeira prancheta, o jaleco desnecessariamente branco e a velha faixa sob o rosto, cobrindo toda sua mandíbula e um tapa-olhos suspeito. Aos poucos, as pessoas se calaram, sobretudo, com medo – Vejo que todos os listados vieram, isso é bom. – seu olho passou diretamente para Gaara, que suspirou – Como podem perceber, temos dois novos participantes hoje. Uchiha Itachi – apontou para o garoto semelhante a Sasuke, um ou dois anos mais velho e a expressão mais dura – e Hyuuga Hinata.

Hinata.

Hyuuga Hinata.

As palavras ecoaram por seus ouvidos, permanecendo ali, instaurando-se, despertando as vozes de seus diálogos. Até mesmo seu nome parecia soar melodioso e, de certa maneira, combinar rusticamente com sua feição suave e delicada. Hinata – a pianista. Parecia hilário que o destino quisesse brincar daquela maneira com o ruivo. No entanto, ao fitá-la, sentia uma vontade imensurável de protegê-la, como se ela fosse quebrar ao mais fino sopro de vento.

– Tudo bem, vamos começar. Todos dirão seu nome, idade e um hobby. Se quiserem, podem acrescentar algo a mais. Podem falar de sonhos, dúvidas ou curiosidades que acharem relevantes. No final, almoçaremos, como de costume. – o doutor tirou a tampa de sua caneta, a posicionando estrategicamente – Quem gostaria de começar?

Gaara não se surpreendeu quando o loiro ao seu lado ergueu uma das mãos, sacudindo-a no ar impacientemente. Suspirou, cruzando os braços, incomodado. Estar na presença da pianista, e não poder tocá-la, tornara-se, imediatamente, uma tortura. Queria saber tudo sobre aquela garota. Sua história, seus medos. E, principalmente, porque sua música agia daquela maneira sobre ele.

As vozes tornaram-se nubladas, uma vez que o garoto permanecia encarando-a descaradamente. Por vezes seus olhos se encontravam, mas ela logo tornava a baixá-los, envergonhada e corada. Gaara não sabia o que estava acontecendo, mas algo dentro de seu peito acendeu-se ao vê-la corar.

Assustou-se quando ouviu seu nome.

– Gaara? Sua vez. – o doutor o chamou, e o ruivo o fitou sem demonstrar grandes emoções. Com o canto do olho, observou a pianista fitá-lo com mais interesse. Suspirou. Não gostava quando todos os olhares lhe eram direcionados.

– Meu nome é Sabaku no. Sabaku no Gaara. 20 anos. Estou aqui há quatro. Capricorniano. – sorriu irônico – Gosto de piano. – seus olhos escorreram para a pequena garota, que se encolheu, desviando.

– Interessante, Gaara. Algo mais a dizer? – Hatake parecia querer arrancar algo mais, mas o ruivo permaneceu resoluto – Tudo bem, então. Ótimo progresso. Agora, o próximo.

O garoto evitou um novo suspiro, enquanto descruzava os braços, puxando as mangas e segurando-as com força. Sua cabeça pesava novamente, e a luz o incomodava. Se desse sorte, logo estariam sendo liberados, e então ele poderia passar o dia em seu quarto. Pela noite, enfrentaria a pianista, e a ouviria tocar mais uma vez. Seu peito afrouxou com a possibilidade – as poucas horas que a ouvia tocando eram suficientes para lhe fazer dormir bem.

Como esperando, logo o doutor finalizou o encontro, elogiando a todos pelo progresso feito, e dispersando-os. Um pequeno burburinho se iniciou, o barulho de pés e cadeiras se arrastando incomodando a audição do ruivo. Se deu conta, em um ímpeto, que a pianista não falara, muito menos Itachi. Estranhou. Em um súbito, se pôs de pé, costurando entre o amontoado de pessoas que se aglomeravam na saída. Seus olhos reconheceram os longos fios negros mais ao fronte. Seus ombros estavam rodeados protetoralmente pelos braços do moreno, e Gaara tentou ignorar a sensação desprezível que tomara conta de si. Concentrou-se em andar o mais rápido possível, para alcançá-la.

Quando conseguiu sair da sala, podia vê-la desaparecendo no horizonte. Não podia deixá-la ir – não de novo.

– Hinata! – gritou com todas as forças que podia. Sua voz retumbou nas paredes, e algumas pessoas também se viraram. Observou-a virar o rosto, surpresa, mas não parou de andar. Ao contrário, aumentou o passo. Gaara grunhiu, frustrado – Hinata! Preciso falar com você! – seus pés, pesado como ferro, não se moviam tão rapidamente quando ordenava. Começou a sentir-se sufocado pelas pessoas a sua volta. Fechou os olhos, balançando a cabeça – Pianista! – clamou com o resto de forças que lhe restavam. Respirou ofegante, o pulmão queimando. Neste momento, a garota parou e se virou completamente, observando-o com os olhos arregalados. Deu dois passos hesitantes em sua direção, mas fio impedida por Itachi. Abriu a boca, como se quisesse dizer algo, mas o outro homem a puxou, e ela se deixou levar, lhe dando um último olhar curioso.

Gaara sentiu vontade de gritar. O corredor já estava quase deserto. De repente, não sentiu fome para ir almoçar – deu meia volta e cortou caminho pelo campo atrás do prédio, andando desamparado até seu quarto. Não conhecia aquela garota, mas algo dentro de si brandava uma ligação, tão invisível que quase a ignorara. De qualquer maneira, naquela noite, todas suas inquietações passariam, e ele poderia sonhar em paz.

O dia passou lentamente, no entanto. Foi o primeiro a tomar banho, evitando os outros residentes. Quando o toque de recolher foi anunciado, conseguia sentir a inquietação correndo por suas veias, e o coração bater falho. Ainda assim, esperou pacientemente, brincando com um velho isqueiro e mordiscando o dedão. Quando o visor de seu relógio brilhou, chamativo, ergueu-se em um pulo. Pegou o moletom e saiu, irrequieto. Caminhou com os pés leves, prendendo a respiração. Andou até o mesmo corredor, tão conhecido por ele. Suas mãos suavam. Ao chegar, olhou pela janela. Ninguém. Respirou mais forte. Sentiu-se contra a parede e esperou.

Mas ela não veio.

E na noite seguinte também não.

E assim seguiu por uma semana.

Gaara sentia que estava realmente enlouquecendo completamente. Já não comia ou bebia. Permanecia em seu quarto, encolhido contra a cama, observando o vazio. Suas mãos estavam machucadas pelas mordidas ansiosas que as depositara, e os enfermeiros precisavam dopá-lo para que dormisse. Algo dentro de si tornara a quebrar – depois de tanto tempo juntando seus pedaços.

A verdade é que nada – nem ninguém – era capaz de livrar de sua mente a névoa irritantemente deslumbrada, que o cegava por completo. Estava com medo, sobretudo. Depois de quatro anos, pela primeira vez, estava regredindo no tratamento. Conseguia sentir a velha noite voltando em suas veias, o atormentando.

Gaara precisava da pianista – mas ela desaparecera.

Mais uma noite havia chego – apática e úmida. Gaara não havia se movido desde que acordara, nem ao menos para ir na terapia. Seu médico tentara procurá-lo, mas ele não queria ser curado. Não queria falar, não queria sair – a única coisa que desejava era ouvir a melodia suave apenas mais uma vez.

Sem desistir, esticou as pernas na cama, sentindo-as arder com o movimento. Não desistiu. Pôs-se de pé com dificuldade. Sabia que estava mais magro que de costume, e vergonhosamente mais cansado. No entanto, saiu do quarto, arrastando os pés pelo corredor silencioso. Suas esperanças haviam se esvairado, mas algo dentro de si lhe dizia para ir. Percorreu o mesmo caminho, os braços coçando fastidiosamente. Entretanto, quando chegou ao corredio, precisou apoiar-se na parede. Coçou os olhos, pensando ter alcançado um novo nível de sua loucura, pois estava tendo uma ilusão.

Era ela – era a pianista!

Gaara engoliu em seco. Iluminada pela luz da janela, era uma beleza surreal. Estava encostada, as mãos sobrepostas, parecendo estar calma. O garoto se aproximou, com medo de realizar um movimento mais brusco. A garota, no entanto, levantou os olhos, sorrindo timidamente.

– Estava te esperando. – disse, sua voz tal qual um sussurro. O ruivo implorou para ouvi-la novamente. Era baixa e harmoniosa. Era perfeita – Pode vir, não vou te fazer mal. – disse um pouco mais alto, colocando uma mecha atrás da orelha. Gaara assentiu, estático. Era linda demais para ser real. Estava sonhando, e logo acordaria. Estava delirando, como louco que era.

Caminhou até a porta, aberta por Hinata. A garota entrou, segurando-a para o garoto passar. Quando estava dentro do cômodo, a garota a fechou lentamente. Gaara olhou em volta, admirando o interior da sala. Era grande e acústica, mesmo com muito pó. O piano estava no centro, iluminando parcialmente pela cortina. Engoliu em seco, fitando a pianista.

– Vem, pode sentar comigo. – apontou para o banco. Levantou a tampa, os dedos correndo suaves pelas teclas, sem emitir algum som. O ruivo caminhou, sentando-se ao seu lado. Sentiu o calor emanar por sua pele, os braços a poucos centímetros de se tocar. Sua respiração estava entrecortada, e a adrenalina em suas veias o mantinha em alerta. Pelo canto, observava, hipnotizado, seu perfil.

– O que... o que aconteceu? – encontrou sua voz em um sussurro, os longos dedos esqueléticos brincando com o ré. Eram tantas as perguntas que gostaria de fazer.

– Me desculpa. – suspirou, iniciando uma melodia desconhecida, distraidamente – Nunca ninguém tinha me ouvido tocar. Quando você tentou falar comigo, aquele dia, fiquei com medo. – admitiu, corando de vergonha. Gaara sorriu. Um sorriso genuíno. Ele só queria abraçá-la e nunca mais soltar. E então, se deu conta de seus pensamentos.

– Gosto de te ouvir tocar. Eu não sei o que acontece, mas... quando escuto, me sinto menos louco. – baixou o tom e se inclinou, como se contasse um segredo. A garota o fitou confusa por dois segundos, depois soltou uma risada baixa. Gaara aumentou o sorriso. Era claro que sua risada soaria como um coral de anjos.

– Todos somos loucos, não. – comentou, ainda sorrindo levemente.

– Você não parece ser louca. – murmurou, e ela o fitou, surpresa com o comentário. Gaara sentiu-se esquentar, desviando os olhos.

– Obrigada. – riu baixo, quebrando o clima – Você também não, se quer saber. Estive te observando por um tempo. – admitiu, com vergonha. O coração do garoto bateu mais forte. O que era aquilo que estava sentindo? Aquela vontade de guardá-la e cuidá-la?

– Todos temos nossos momentos de loucura em algum momento. – cantarolou, mas, daquela vez, a cicatriz não sangrou, como ele esperava – Você estava me observando? Como eu nunca te vi? – teria me lembrado de uma garota como você, pensou.

– Tenho meus truques. – ela piscou timidamente, e dividiram uma risada.

Pela primeira vez, instalou-se o silêncio. Os dedos ágeis da garota começaram a passear pelas teclas, iniciando uma antiga música clássica. Gaara respirou fundo, fechando os olhos, deixando-se levar pela doce melodia, enquanto seu peito desacelerava até estar calmamente ritmado. Com as mãos sobrepostas sob o colo, procurava aspirar as notas, sentindo a cabeça, finalmente, clarear.

– Como veio parar aqui? – com certa dificuldade, ouviu o sussurro por cima da música. Prendeu a respiração, olhando para as próprias mãos.

Nunca tinha dito a ninguém sobre aquilo – nunca havia se permitido derrubar suas barreiras, se abrir com alguém. Mas a pianista... era diferente. Algo dentro de si gritava para que confiasse nela. Que lhe revelasse todos seus segredos. Sua presença era reconfortante, emanando uma aura bondosa. Gaara apenas queria protegê-la de tudo e todos.

– Tentei me matar.

A música parou por alguns instantes. Com os olhos fechados, lamuriou-se internamente, mas, logo em seguida, como se nada tivesse acontecido, tornou a tocar, incansável. Tocava com a alma, com todas suas forças, depositando cada lágrima nas notas. Gaara podia sentir sua dor, sua lamentação. E era linda – de uma forma trágica.

– Por que um garoto tão lindo tentaria se matar? – perguntou de forma sutil, e Gaara conseguiu enxergar seu sorriso atravessado, travesso. Seu rosto se contraiu também, repuxando para cima. Olhou para as próprias mãos, escondendo as velhas cicatrizes.

– Só não via porque continuar vivendo. – murmurou.

– E agora você vê? – rebateu, compenetrada na música.

– Fui levando nesses quatro anos. Mas quando você toca, eu realmente vejo motivos para ficar. – revelou, a ponta de seus dedos encontrando-se com as da garota. Ela o fitou, os olhos brilhando, surpresa.

Silêncio. A madrugada caía, trazendo consigo um vento gélido. O único som era a música que saltava das cordas, harmoniosas. Ela continuava a tocar e tocar sem se interromper. Por vezes misturava músicas, ou apenas as tocava de maneira aleatória. Mas nunca parava.

– Meu pai... – começou, com a voz trêmula – Ele.. hm, ele me b-batia e... – se interrompeu. Gaara fechou a mão em punhos, ouvindo-a conter um soluço – Um dia, eu enlouqueci e quebrei quatro vasos em cima dele. Ele me mandou para cá, dizendo que eu estava “louca”. – riu debilmente.

O ruivo sentiu a raiva tomar conta de seu corpo. Porque ele apenas não conseguia imaginar alguém machucando-a. Seu maior desejo era guardá-la, protegê-la de todos os males do mundo. Beijar todas suas feridas, lhe dizer que ficaria bem.

Ele havia se apaixonado – sem ao menos perceber.

– Quando cheguei, tinha medo das pessoas. Itachi me acolheu e me protegeu. Desde então, ele me mostrou essa sala, e eu toco até que não me reste mais forças. A música é tudo que sobrou para mim, a louca. – sua voz estava mais firme, quase divertida. Seus dedos continuavam a passear, quase como se tivessem vida própria.

Gaara friccionou a mandíbula. Em um ímpeto, bateu as mãos contra as teclas, as arranhando. O som agudo e gritante percorreu o cômodo, e Hinata parou, assustada. O ruivo virou o torso, relaxando a expressão. Com coragem, levou as mãos e sobrepôs as dela. A garota prendeu a respiração. Se aproximou devagar, olhando-a nos olhos, até que seus narizes se tocassem.

– As pessoas loucas são as melhores pessoas. – sussurrou.

Lentamente, fechou os olhos, e quebrou a distância que restava entre eles. O primeiro toque foi languido, paciente. Mostrando que ele estava ali para ela. Hinata estava paralisada, mas, então, inconscientemente, também entregou-se. Em um movimento delicado, pressionou seus lábios. Gaara reprimiu a vontade de gritar. Quando aprofundou o beijo, levou uma de suas mãos até o rosto da garota, acariciando-o suavemente, como se tocasse em uma pétala. Enquanto as línguas se embaraçavam desajeitadamente, o garoto pensava que aquele era o melhor beijo do mundo. Era doce e sôfrego, límpido e claro. Transmitia as emoções que ambos sentiam, enquanto suas barreiras se quebravam.

Gaara se afastou, ainda mantendo as pálpebras abaixas, e colou sua testa contra a da menina, que respirava ofegante. Levou as mãos trêmulas até o pescoço do ruivo, juntando seus corpos. O garoto sorriu, não sabendo que ela havia percebido ou não.

Estava em paz. Estava plenamente lúcido. Sua mente nunca estivera tão clara. E seu coração nunca batera tão depressa. Ele sabia. Sabia que estava apenas esperando por sua redenção.

Tornou a colar seus lábios. Não se importava com o que aconteceria depois, com o resto da noite, ou com os pensamentos e memórias. Nada mais o interessava – não enquanto estivesse compartilhando segredos com a pianista.


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