O Clamor de Iara escrita por Felipe Perdigão


Capítulo 1
O Clamor de Iara




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A cada dia que passa fica mais difícil confiar nos propositos de Tupã para nossa aldeia. Você deve estar se perguntando quem eu sou e a resposta é mais complicada a que se parece. Para início de conversa, sou uma indígena e pertenço ao povo Potiguara. Somos um povo guerreiro, tradicionalistas e nem um pouco sociáveis. Nossos costumes e crenças são únicos e segundo ao Cacique, no caso, meu Ubã, não devemos nos misturar com outras tribos.

Ouvi há algum tempo atrás em uma das inúmeras historias que Ivair, o pajé da minha amada tribo, me contou que há povos que contam o passar do tempo de outras formas, como o contar de quantas vezes Guaraci aparece no céu, outros de a partir de Jaci e até mesmo pela época que Iara e Amanaci faziam os rios se encherem. Para nossa tribo, existem quatros reinos e cada um deles é comandado por um deus diferente. Este ciclo tem doze acontecimentos e para cada três, cabe um deus o comandar. Catú é nosso deus outonal, Mautin o deus da primavera, Peurê o nosso amado senhor do verão e Nhará que preside o inverno. Segundo o nosso calendário, o ano de dezoito mil já estava no final. Acredito que era por volta de mil e quinhentos em seu calendário. O reinado de Peurê nunca fora tão triste. Perdemos muitos homens na guerra contra outras tribos e a caçada e estava extremamente difícil. O que colhemos durante o ano já estava no fim.

Em uma tarde extremamente quente, fui até uma das cachoeiras da região, a mesma que meu Ubã me proibira de ir sozinha por ser tão distante da aldeia. Eu não tinha nenhuma amiga, então, só me restava ir sozinha. As outras índias da minha idade nunca gostaram de mim. Eu sempre fui excluída das brincadeiras e muitas vezes fui agredida. Certa vez colocaram até seiva de seringueira em meus cabelos.

Eu amava este contato com a natureza, principalmente com Iara - temos o mesmo nome e não acho que isso seja uma simples homenagem -. Quando entrei na água senti um arrepio me subir pelas costas que me fizera dar um enorme mergulho para refrescar meu corpo do calor intenso que fazia nessa época do ano.

Quando emergir na superfície pude ver meu reflexo na água. Eu não agradara nem um pouco do que via. Meus cabelos oleosos e extremamente lisos caíam molhados pelas minhas costas até abaixo da cintura. Conseguia ver nitidamente as pinturas feitas com urucum e jenipapo em meu rosto. A coisa que mais me deixava triste era meus peitos. Por ainda ser muito nova, apenas 72 reinados, eles eram muito redondos, duros e para cima. Eu sonhava com o dia em que meus seios iriam cair e perder o formato redondo, pois teria respeito dentro da tribo e todos saberiam que eu era uma moça madura e experiente.

Eu me divertia cada vez mais naquela água gelada. Tudo estava tranquilo, como deveria ser. Eu estava extremamente relaxada com o som das águas, das araras, papagaios, tucanos, micos-de-cheiro, saguis, quatis, antas e jabutis. Minha xerimbabo, uma jiboia que eu batizara como Bartira – flor, no seu idioma – tomava sol na rocha em que eu a pusera.

Quando já me preparava pra ir embora, escutei um barulho estranho. Tentei me esconder atrás da queda da cachoeira, mas já tinha sido vista.

— Eu sei que está ai Iara! — Aquela voz fez meus mamilos enrijecerem. — Saía! — Ordenou.

Eu pulei de volta na água e nadei em sua direção.

Aquele indígena de cabelos longos, donos de uma pele bronzeada radiante, corpo extremamente definido graças a suas habilidades de caça e guerra, sua tradicional pintura perto coração de uma pata de jaguar, o mesmo animal que dera origem a seu nome, olhos negros como a noite e dono de inúmeras vitórias em guerra.

— Jaguar?! Meu amado, o que fazes aqui? — Corri em sua direção e o abracei.

— Estava morrendo de saudades, não aguentaria um dia a mais sem te ver. — Ele abriu um sorriso largo que fez minhas pernas bambearem.

— Se meu Ubã te pegar aqui o matará!

— Por você eu me arrisco! — Ele me beijara. — Eu vim até você, pois decidi falar com seu Ubã. Eu quero me casar com você e ele vai autorizar.

— Ele jamais permitiria tal feito.

— Ele irá! Eu te amo Iara, só eu posso te fazer feliz. — Ele tentou me convencer.

— Deixe-me falar com ele primeiro, tudo bem? Você pertence a uma tribo rival meu amado, se você adentrar nosso território, por Rudá, tenho até medo do que possam fazer com você.

Antes que Jaguar pudesse me responder escutamos um barulho. A priori pensamos que fosse algum animal, mas o barulho se repetiu seguido do chamar de meu nome.

— É meu irmão! Se esconda Jaguar! — Ordenei em sussurro.

Mais rápido que pode, Jaguar mergulhou.

— Estou aqui Teçá. — Gritei.

— O que faz aqui sozinha? — Meu irmão parecia desconfiado — Nosso Ubã ordenou que o pajé esclarecesse os acontecimentos. Ele nos quer presente. Vamos!

— Já vou! — Antes que de ir, deixei escrito na lama um recado para Jaguar, pedindo para me encontrar ali em alguns dias.

Quando cheguei à aldeia, Ivair já estava falando. Sentei em torno da fogueira que queimava algumas ervas para gerar fumaça – era como o pajé se comunicava com os deuses e os ancestrais –. Meu Ubã me encarava zangado, temi que meu irmão tivesse contado onde me encontrara. Dei de ombros e voltei à atenção para Ivair.

Nenhum deus está zangado com nós! Os deuses continuam amando todos Potiguara, os índios que continuam com os costumes originais e honram e temem os deuses. Todo este mal está nos rondando por conta dos Guajajara, esses traidores dos deuses. Se queremos que os dias de glória voltem habitar a nossa tribo, devemos acabar com cada Guajajara vivo.”

Ao ouvir essas palavras senti meu coração palpitar. A cada palavra que o pajé dizia eu sentia algo lançar uma flecha em meu peito.

“Em alguns dias todos os guerreiros Potiguara devem estar preparados a dar seu sangue para salvar a sua tribo. Todos terão um lugar ao lado de Tupã depois dessa guerra!”

Não aguentei. Saí correndo com os olhos cheios de lágrimas com Bartira nos ombros até minha Oca e comecei a chorar. O choro fora tão intenso que caí no sono. Já era noite quando acordei com a cantoria em volta da fogueira.

Tudo que eu desejava naquele momento era que minha Ceci ainda estivesse viva, ela saberia o que dizer pra me acalmar.

Eu me juntei aos demais indígenas na fogueira e me serviram com caldo de aipim. Eu havia me esquecido das palavras de Ivair com tanta cantaria na aldeia. Eu amava minha cultura.

Estava distraída quando fui surpreendida por Jaguar invadir o centro da aldeia com os braços para cima. No mesmo instante, os guerreiros da aldeia puseram as flechas e lanças voltadas a meu amado.

— Vim em paz! Quero conversar com o Cacique. — Jaguar gritava na intensão de meu Ubã escutar.

— O que você quer comigo seu Guajajara imundo? — Eu conseguia ver o ódio nos olhos do meu pai.

— Vim pedir a mão de sua filha em casamento.

Todos na aldeia caíram em gargalhada.

— Como ousa me insultar de tal forma? — Meu ubã tomara uma faca feita completamente de Obsidiana nas mãos e começara a caminhar lentamente em direção a Jaguar.

Assustada com aquela situação corri em direção a meu amado e entrei em sua frente.

— Ubã, não faça isso! Deixe-o ir?! — Implorei.

— Por nossos ancestrais, não me diga que está apaixonada por esse guerreiro Guajajara.

— Estou! Eu o amo, queria viver o resto da minha vida com ele. — Comecei a chorar.

— Você acaba de me matar de desgosto. Você é a decepção dessa família. — Meu pai me estapeou na face.

Caída no chão, pude ver meu pai degolar Jaguar.

— Eu te expulso dessa aldeia e não te reconheço mais como filha. Que os deuses te amaldiçoem. Suma da minha frente! — O cacique, não tinha mais coragem para chamá-lo de Ubã, ordenou.

Aos prantos clamei aos deuses para arrebatarem as duas tribos com a minha dor e que ambas percebessem que odiar uma a outra não daria a nada.

Aflita, peguei o corpo de Jaguar e, com dificuldade, o arrastei até a caverna mais próxima. Pela época do ano, todas as cavernas e grutas nessa época do ano estavam completamente inundadas.

Eu não fazia ideia do que fazer da minha vida agora que a pessoa que eu mais amava no mundo estava morta. Decidi por um fim nesta dor. Com cuidado, coloquei o corpo de Jaguar em uma das piscinas naturais e peguei o dente canino de um jaguar que meu amado carregava no peito como pingente. Dei um último beijo em Jaguar e enfiei no peito o dente afiado. A última coisa que escutei foi um trovão.

Meu espirito agora havia encontrado com o de Jaguar. Estávamos felizes por estar juntos, mas pelas vidas que Jaguar tirou e por eu ter tirado a minha própria vida, estávamos destinados a viver no reino de Anhangá, o deus do inferno, e sofrer até nos arrependermos completamente de nossos atos e termos direito a reencarnar.

Demos as mãos, entrelaçamos os dedos e aceitamos nosso destino. Estávamos prontos a ir ao encontro de Anhangá quando fomos surpreendidos por Amanaci, a deusa da chuva.

Meus queridos, assisti toda trajetória de vocês dois. É uma pena que algumas pessoas ainda não tenham a capacidade de entender que amor é amor e toda forma de amor deve ser respeitado. Espero que um dia isso mude, apesar de sentir que esse dia vá demorar chegar.

Sorrimos em sinal de gratidão pelas palavras, mas não entendíamos o motivo da deusa ter nos visitado.

— Fiquei tão comovida com essa história de amor que convenci a Tupã a dar a vocês a imortalidade. Vocês podem escolher ir a caminho de Anhangá e cumprirem sua pena até serem capazes de reencarnar novamente na Terra ou virem morar comigo no céu e viverem juntos e felizes por toda eternidade, mas para que isso ocorra, vocês nunca mais terão a oportunidade de habitar o mundo dos humanos.

— Nós aceitamos! — Meu amado e eu dizemos juntos.

A Deusa bateu palma sete vezes e uma tempestade surgiu dentro da caverna. O corpo em que habitávamos desaparecera ao entrar em contato com aquela chuva e antes que percebêssemos fomos transportados até o céu. Saudamos todas as divindades e seguimos juntos até os aposentos que Amanaci havia preparado para gente e tivemos nossa primeira noite juntos como casal.

Os anos passaram e tive a confirmação que a previsão de Ivair estava errada. Os deuses torciam para que todas as tribos fossem capazes de unir suas forças para enfrentar o maior mal que estava pra chegar a nossas terras: o homem branco.


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