Cantiga de outro Verão escrita por DezzaRc, A Little Dreamer


Capítulo 2
Mudanças


Notas iniciais do capítulo

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Música do capítulo: Haverá de Se - Plutão Já Foi Planeta



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Nina girou a chave na porta do seu apartamento e destravou o trinco com a mão livre. Na outra, carregava sacolas de um supermercado perto de casa. Já fazia dias que sua dispensa se encontrava em situação crítica, mas até então ela não tivera a preocupação de fazer algo a respeito. Não até receber a notícia de que sua mãe a visitaria naquela semana. Tudo o que a garota de cabelos vermelhos não precisava ouvir era o sermão monótono da velha mãe. Sua semana desgastante valera por todas as horas que faltavam para o ano acabar. Era apenas abril.

O som fúnebre de alguma melodia instrumental clássica era a música ambiente no apartamento do quarto andar em um bairro de classe média. O vizinho de cima perdera a esposa não fazia muito tempo, e a forma dele superar o grande amor era escutar uma trilha sonora diária de notas depressivas. Nina não aguentava mais aquela situação. Com um suspiro resignado, ela levou as compras à cozinha e seguiu direto para o quarto no fim do corredor escuro. Encontrou o fone de ouvido largado sobre a cama desarrumada que não tivera ânimo de ajeitar assim que acordara, e o pegou sem pestanejar, não antes de sacar o celular no bolso de trás da calça jeans. Em instantes, a música fúnebre dera lugar ao ritmo animado de Haverá de Se.

As pessoas tinham jeitos estranhos de superar o luto. Seu tio, por exemplo, nem esperara que Nina processasse a morte do pai e já pensava nas festas que iria no dia seguinte. Jacque entrou em crise ao perder o primeiro bichinho de estimação, e quando ligou para a melhor amiga, ou seja, ela, tudo o que Nina fez foi rir de nervosismo, pois não tinha vocação alguma para consolos. Talvez esse fosse o motivo por se afundar tanto nos próprios problemas. Ainda havia o cara desconhecido que ela se deparou na rua por acaso e descobriu que ele também tinha perdido recentemente o pai. Não havia luto em seus olhos, e sim a determinação de provar algo a alguém. Provavelmente ao pai, à mãe viúva ou a ele mesmo, que transformou a perda em motivação. Nina queria poder sucatear sua dor da mesma forma que o belo rapaz fizera com a dele, mas o máximo que conseguia era transformá-la numa cratera que a impedia de seguir adiante, refazendo o mesmo caminho várias e várias vezes.

Não eram nem duas da tarde e Nina se sentia exausta. Esse cansaço estranho a perseguia há muito tempo, como se algo tivesse sugado sua animação e a soltado em um lugar muito distante de si. O sono, para ela, não passava de uma válvula de escape da vida que levava, pois o tão merecido descanso que seu corpo pedia não era o que ela recebia todas as noites. A garota se jogou no sofá branco de giz e apoiou os pés na mesa de centro. Ainda ao som de Plutão Já Foi Planeta, ela pensou no quanto a decoração de seu apartamento era sem graça e abatida, o que com certeza proporcionava boa parte da negatividade em seu humor. Decidiu que precisava urgentemente mudar aquilo. As energias não circulavam na sala fria e impessoal.

Quando foi que as cores abandonaram sua vida? Aliás, quando ela usou algo que não fosse branco, preto ou cinza? Nina percebeu então que desde muito cedo sua vida era uma cartela de cores mortas e apagadas. E isso era apenas o começo. Da mesma forma que a animação repentina para mudar a decoração surgiu, ela desapareceu com a mesma intensidade. Nina não se sentia com forças para nada, nem para levantar do sofá fofo e adiantar alguns trabalhos atrasados da faculdade. O vizinho não desligaria o som fúnebre até às cinco da tarde e, até lá, Nina teria que deixar sua casa ou castigaria mais ainda os ouvidos com horas intermináveis do volume ao máximo no fone de ouvido.

Com certeza não foi aquilo que imaginara quando decidiu morar só. De fato, tinha a liberdade de ir e vir, embora a senhora do andar debaixo gostasse de monitorar a vida dos outros e espalhar para todo o prédio a hora que Nina gostava de chegar em casa nas madrugadas. O que os moradores daquele prédio tinham a ver com a vida da garota de cabelos de fogo, a própria não sabia dizer.

Nina se espreguiçou e pulou do sofá de vez, antes que desistisse do que pretendia fazer. Puxou os fones de ouvido e atirou o celular no sofá, logo a canção lenta e melancólica recomeçou e seu coração foi atingido por uma flechada dolorosa. Não iria chorar mais uma vez. Decidida, Nina rumou até o quarto com vários papéis espalhados pelo chão, uma pilha de livros sobre a escrivaninha e pegou a bolsa da faculdade atirada sobre a cadeira de acrílico rosa choque. Uma das poucas cores presentes no apartamento, graças a um de seus amigos que tentava a todo custo colorir mais o dia a dia de sua pobre amiga atormentada.

Ela apanhou o pen drive e o jogou na bolsa, assim como selecionou dois livros que precisava devolver à biblioteca e saiu. Do outro lado da porta, havia um garotinho de cabelos quase brancos com pouco mais de três anos, correndo de um lado a outro num pique que Nina achou que fosse inumano. A criança tinha uma risada gostosa que a fazia sentir um formigamento na bochecha, o início de um sorriso que ela não queria esboçar. Nina não era fã de crianças, e embora não fosse com a cara delas, pelo visto o sentimento não era mútuo. As crianças, de alguma forma esquisita, a adoravam.

Sem que pudesse evitar, o garoto chocou-se contra suas pernas longas e esguias, e antes que caísse sentado no chão, ela o segurou pelos braços gordos e pegajosos de suor. A criança loira ao invés de chorar como todo bebê dramático que conhecia, apenas pôs-se a rir ainda mais, e então Nina notou os dentinhos minúsculos que mais pareciam contas de bijuteria esbranquiçadas moldadas em um sorriso angelical com covinhas. Covinhas. Essa provavelmente era a fraqueza de qualquer mulher, e com Nina não poderia ser diferente.

— Mais cuidado por onde anda, garotinho — disse Nina, sentindo-se incomodada com a interação forçada com a criança.

O garoto continuou sorrindo e suas bochechas avermelharam-se mais ainda pelo esforço de mantê-las daquela forma. Nina se perguntou se ele não estava sentindo alguma cãibra facial ou algo do gênero e, mesmo sem querer, se preocupou com o pequeno ser em sua frente.

— Guga!

Nina e o garoto que agora ela soube se chamar Guga, ou talvez um apelido, olharam na mesma direção que o dono da voz grave. Diferente do loirinho, o homem que o chamara não parecia feliz com a vida. Guga não abandonou o sorriso nem por um segundo e, depois de alguns puxões, soltou-se das mãos finas e delicadas da ruiva, correndo de imediato para os braços do rapaz alto e musculoso de pé, na soleira do apartamento que ficara vazio por meses seguidos, depois que os antigos moradores, um casal gay, mudaram-se para um lugar melhor; longe dos preconceitos ocultos nas paredes daquele prédio.

O homem de olhar enigmático e hostil a fitou com desdém e nem ao menos se importou de trocar algumas palavras amigáveis com a vizinha antes de empurrar a criança para dentro do apartamento em uma delicadeza contraditória ao olhar duro que lançava para a mulher estarrecida.

Nina não aguardou que ele fechasse a porta e deu às costas ao idiota que provavelmente seria seu novo vizinho. Ela chamou o elevador, furiosa, mas desistiu e seguiu para escada de emergência, por ali mesmo desceu para espairecer a mente. Quando estava irritada com algo, Nina gostava de caminhar por horas intermináveis para pensar em tudo e nada. Isso a acalmava mais que as caixas amontoadas de calmantes que havia nos armários, e o melhor: não a deixava grogue.

Ela preferiu encarar os quarteirões a ter que pegar o transporte público. Enquanto andava, evitou a todo custo tocar qualquer pessoa na rua, não conseguia deixar de pensar em como sua vida só piorava gradativamente. Quando achava que tivera o suficiente e seu final feliz estava próximo, mais coisas caíam na balança do sofrimento para animar mais ainda sua vida patética. O mundo dava voltas sim, e depois da tempestade vinha a bonança. Sua tempestade já durava longos quatros anos, e Nina temia que a enchente tivesse acabado com qualquer pedaço de terra que pudesse se agarrar.

A ruiva até poderia se achar superior aos moradores do seu prédio, mas, no fundo, todos eles se mereciam, inclusive ela. Por que poderia ser melhor que alguém se tinha pensamentos tão maldosos e sujos quanto qualquer um deles? Apenas não os demonstrava tão abertamente como seus vizinhos. Nem podia se lembrar de quando fora a última vez que fizera uma boa ação a alguém. Sentar na cadeira de um idoso no ônibus e depois levantar para devolver o lugar de direito dele não a fazia se sentir uma pessoa melhor. Nina precisava de mais. Não podia doar sangue, pois não tinha peso suficiente para isso. Mal tinha dinheiro para fazer doações a instituições de caridade, e quase não tinha tempo para exercer algum trabalho voluntário em uma entidade filantrópica. O que poderia fazer para mudar o mundo ao seu redor?

Ela achava que, se fizesse uma atitude do bem, a mesma proporção voltaria à sua vida posteriormente, e aos poucos amenizaria toda a dor que sentia dentro de si. Era um pensamento ambicioso e até egoísta, mas Nina tentava não desejar fazer qualquer coisa radical para se livrar da bomba relógio em seu corpo. De forma nenhuma ela pretendia cometer uma loucura.

Quando chegou a faculdade, mal podia conter a respiração ofegante, embora isso a fizesse se sentir livre. Completara sua caminhada do dia e poderia compensar a academia que não podia frequentar. Nina não gostava de sua magreza excessiva, e apenas ria quando alguma garota mais robusta dizia invejar seu corpo. Mal sabia ela o que falava. Nina se sentia doente ao se olhar no espelho e ver tantos ossos aparentes no corpo, apesar de ter sido sempre assim desde que nascera. Desejava ao menos estar no peso certo, mas, para sua sorte ou azar, possuía o metabolismo rápido demais que não deixava reter nenhuma gordura a mais no corpo.

Nina foi direto à biblioteca e devolveu os livros atrasados. Já devia saldo à bibliotecária e sempre que pagava as dívidas, prometia a si mesma que não voltaria a fazê-las, mas se deparava mais uma vez com seus esquecimentos habituais. Logo em seguida, ela rumou para o laboratório de informática e lá permaneceu o resto do dia até que finalizasse o relatório de um trabalho cansativo.

♦♦♦

Se Hugo soubesse que estava acontecendo um velório no prédio, teria adiado a mudança. Aliás, quem em pleno século XXI, numa cidade grande, velava alguém em casa? A canção triste e áspera o deixava angustiado, parecia que algo arranhava seu peito e implorava para sair. Como se ele já não tentasse se livrar daquela coisa quase que diariamente... O belo rapaz encarou as caixas infinitas que guardavam 25 anos da sua história de vida. Quem ele era estava ali, empacotado em várias caixas de papelão lacradas, rotuladas de acontecimentos que pouco fazia questão de se lembrar.

Guga passou correndo em sua frente e se equilibrou para que pudesse subir em uma das caixas e fazê-la de degrau. Hugo praguejou por sua irmã ter deixado o garoto com ele logo no dia que mais queria vê-lo longe de seu teto. Tudo o que desejava era que as caixas sumissem e as coisas dentro delas se arrumassem como mágica nos armários vazios do apartamento um tanto apertado. Com o sobrinho de três anos a tiracolo tornava tudo ainda mais cansativo. Hugo amava o garoto como se fosse seu próprio filho, já que o pai e nada eram a mesma coisa, e o fato só amontoava mais ainda a merda que sua família era. A história se repetia novamente com a pobre irmã caçula.

O garotinho loiro por pouco não caiu do outro lado da caixa, se seu tio em alerta não tivesse lhe segurado a tempo. A cabeleira esbranquiçada da criança não adentrou sua boca por um triz, e Hugo afastou os fios sem paciência. Quando Helena pretendia levar o filho para cortar a corda que se tornara o cabelo daquela criança? Ele tinha que fazer tudo por ali mesmo.

Papa! — Guga gritou, batendo palmas alegremente. Hugo se perguntava de onde vinha tanta animação daquele pequeno ser, se todos ao seu redor mal diziam algumas palavras que não fossem em tom rude e autoritário. O homem era produto do meio, segundo Karl Marx, ou assim Hugo achava, até que o sobrinho nasceu e mudou suas concepções.

— Hoje não, campeão. Se você ficar quietinho naquele sofá assistindo TV — apontou para o estofado escuro, o que atraiu a atenção da criança para o móvel —, tio Hugo te leva ao parque amanhã.

O garoto o observou por um momento, talvez ponderando se era uma barganha justa. Por fim, abriu mais um de seus sorrisos radiantes e correu gritando para o sofá, no qual enfiou o rosto e espalmou as mãozinhas no assento. Hugo balançou a cabeça e ligou o aparelho em seguida. Seu sobrinho tinha a mania de escutar a TV nas alturas, e pela primeira vez não se aborreceu com a criança; a voz esganiçada de Bob Esponja era melhor que a música do velório no andar acima.

Ele deixou o sobrinho na sala, pegou uma das caixas e a levou para o novo quarto. Repetiu mais algumas vezes o processo e, aos poucos, guardou cada caixa no cômodo pertencente. Quando terminou de arrastar tudo, puxou um maço de cigarro da carteira no bolso da calça folgada e se apoiou no peitoril da janela perto da TV. O céu estava nublado e o clima esfriava gradativamente. O bairro era mais tranquilo que o anterior em que vivia, havia vários comércios abertos por perto, o que garantia a movimentação constante na rua e, consequentemente, a segurança das pessoas que ali viviam.

Em poucas horas, Helena retornaria do trabalho de garçonete em um restaurante não muito distante dali, e ele poderia se arrumar para a faculdade. Faltava menos de um ano para se formar e a vaga em uma empresa de renome era quase garantida, graças a ralação que teve durante anos no curso para se destacar como um dos melhores alunos da classe. Hugo se sentia orgulhoso por ter superado as dificuldade e enfim alcançado a vitória. Orgulhava-se de sua história, embora não a desejasse para ninguém.

De repente, a mocinha de cabelos de fogo veio-lhe à mente. Devia ser mais uma patricinha mimada que decidia morar só apenas para provar a maturidade que nunca teria, bancada pelo dinheiro dos pais. O rosto de boneca não o enganava, ele sabia que por trás da fachada de boa moça havia um ser humano egoísta e egocêntrico, que não se preocupava com nada importante e a vida se resumia a garotos igualmente sem conteúdo e festas apenas para encher a cara e usar como desculpa para dormir com quem bem entendesse.

Na sua faculdade, o que não faltava eram garotas com esse perfil, cuja vida era se jogar aos pés dele que, nem um pouco bobo, aceitava o que recebia de bom grado. Não tinha nada a perder mesmo. O que poderia dizer? Sua irmã tentara ser uma dessas e não acabou nem um pouco bem. O processo de maturidade de uma pessoa nem sempre acontecia da forma mais amigável; os dois irmãos eram um bom exemplo de como o destino poderia ser cruel quando queria.

Hugo escovou os dedos na cabeleira espessa escura, nada parecida com o tom quase branco do sobrinho. Helena tampouco tinha cabelo claro, o que assimilava de forma gritante a aparência de Guga com o pai que o deixara. Um riquinho que não tinha pretensão alguma de brincar de casinha, e assim que conseguiu o que quis enganando Helena — mesmo Hugo não se cansando de alertar a irmã —, a deixou com uma mão na frente e outra atrás.

O rapaz jogou a bituca do cigarro pela janela, inspecionou o sobrinho pela última vez e rumou ao quarto buscando coragem para desempacotar a mudança. Quanto antes terminasse tudo, mais cedo se livraria da tarefa.

♦♦♦

Nina chegou na casa de Jacque pouco antes do anoitecer. Ela se sentia abatida e precisava de um ombro amigo para desabafar, o que, de longe, sua casa não proporcionava. Ela até tentara convencer um deles a dividir o apartamento com ela, mas os que os pais deixavam ter autonomia, não se sentiam preparados para dar um passo tão grande na vida, e vice-versa. Nesse ponto, ela se sentia vitoriosa. Sua velha casa cheia de lembranças apenas a sufocava todas as vezes que olhava as paredes cobertas de risadas e sonhos perdidos. De fato, não fora uma decisão fácil. Deixar sua mãe, a única pessoa que a restava no mundo, e assumir um emprego quando tudo o que queria fazer era sumir da face da Terra fora um passo e tanto. Mas Nina conseguira.

— Como está hoje, amiga?

Nina deu um passo para dentro da casa modesta que tanto frequentara ao longo dos anos. Ela podia dizer que era quase a extensão de sua casa. Jacque abraçou o corpo magro da amiga e desejou que ela estivesse melhor que na semana passada quando, mais uma vez, viera com o mesmo papo de desistir de tudo e não ter mais vontade de fazer nada. Doía ver sua melhor amiga naquele estado, ela desejava de coração ver a ruivinha sorrindo por tudo e por nada como acontecia anos atrás, ao tentarem imitar clipes de suas cantoras favoritas da época.

— Um cara se mudou para o apartamento de frente ao meu — Nina desconversou, fugindo da pergunta da amiga. — Cadê seus pais?

— Saíram para jantar. — Jacque fechou a porta atrás de si. — Ele é bonito? Solteiro? Já sabe o nome dele?

A ruiva sorriu e sentou em um dos bancos altos à bancada da cozinha americana, enquanto a amiga se acomodou no sofá à sua frente. Ela observou a nova tiara florida no cabelo afro de Jacque e desejou ter a mesma coragem que a morena para inovar nos acessórios. Mal prendia uma presilha na cabeleira e se sentia a pessoa mais estranha do universo.

— Espero que ele vá embora antes que eu possa descobrir qualquer coisa ao seu respeito. O cara é um grosso mal-humorado e acho que já é pai — desdenhou, brincando com um canudo sobre a bancada. — Agora terei que aturar uma criança ao meu lado. Espero que não seja birrenta como a mimada da minha prima.

Jacque riu do humor sarcástico da ruiva, acostumada com o cinismo diário em seu tom de voz.

— Ele é velho, então?

Nina atirou o canudo na bancada, impaciente.

— Não! Ele é um gato, ok? Faz o tipo daqueles garotos escrotos da faculdade que acham que nós poluímos seu chão encerado. Em outras palavras: quero esse cara bem longe de mim.

— Você e essa sua mania de julgar os outros sem nem ao menos conhecê-los. Aposto que não é tudo isso e você está mais uma vez detonando sua autoestima.

Nina bufou, sentindo-se contrariada. Jacque não a entedia de forma alguma. Havia coisas na vida que as pessoas só poderiam entender quando passassem por algo semelhante, e problemas psicológicos eram uma dessas coisas.

— Vamos mudar de assunto, não quero discutir com você hoje.

— Certo — Jacque concordou a contragosto. — Como vai seu livro?

— Não muito bem — respirou fundo, um pouco triste. — Estou tendo dificuldade em certas cenas por falta de experiências. Talvez você pudesse me ajudar.

— Cenas amorosas de novo?

— Mais um menos. Está difícil descrever narrações apaixonadas quando minhas experiências não passam de estranhos descompromissados. Não consigo ter a visão romântica necessária para passar a emoção que pretendo à cena, e isso está me deixando frustrada.

Jacque levantou-se do sofá e foi à cozinha, o que fez Nina se virar no banco para que ficasse de frente à amiga. Jacqueline tinha o corpo curvilíneo que atraía e muito a população masculina. O típico corpo de uma sambista de carnaval, o que a fazia se sentir miúda e retangular ao lado da morena. Não era à toa que ninguém a levava a sério; às vezes, era confundida com uma adolescente de quinze anos, e isso era extremamente constrangedor.

— Os livros e filmes não ajudam mais?

— Quero experiências verdadeiras, Jacque. Estou cansada de espremer meu cérebro todas as vezes que preciso escrever uma cena assim e não deixá-las com a mesma fórmula pronta que uso para criá-las. É mais fácil expandir algo real a começar do zero.

— Faz que nem esses romances malucos que você lê e contrata um namorado de aluguel — Jacque sugeriu, roubando um sorriso incrédulo da amiga. — Estou brincando, boba. É como sempre digo: tudo tem seu tempo. Não adianta forçar nada.

— Esse é o problema. — Nina observava a amiga preparar vitamina para as duas. — Não posso ficar sentada e esperar o cara dos meus sonhos cair em minha vida e me pedir em namoro. Preciso disso pra ontem.

— Isso, amiga, é apenas com você.

Jacque, mais que ninguém, a estimulava a buscar novas experiências e não se acomodar. Ela fazia de tudo para não deixar a amiga se entregar a depressão; levava-a à festas, a passeios diferentes, apresentava-a pessoas divertidas e, de quebra, ajudava Nina a superar seu problema com a autoestima. Às vezes, ela sentia como se desse murro em ponta de faca, pois a cada avanço que Nina dava recuava dois passos, e isso a irritava. Jacque não queria perder a paciência com a amiga, muito menos desistir de ajudá-la. Não era o que uma aliada deveria fazer, afinal, nos momentos ruins que as pessoas descobriam quem eram seus verdadeiros amigos. Jacqueline se provava que era digna de ser uma.

A ruiva mudou de assunto mais uma vez. Ultimamente, qualquer tipo de assunto a incomodava, principalmente se chegasse a ela e sua vida nada favorável. Nina tentou se convencer de que não necessitava de um homem para ser feliz, poderia ser uma mulher independente do século XXI. De fato, realmente não precisava, mas isso não queria dizer que não desejasse ter ao menos um namorado na vida. Nina gostaria de saber como era antes que abrisse mão de algo. Passar o resto da vida imaginando como seria não a animava em nada. Ela era adepta a se arrepender do não fez, não do teve coragem de fazer.

As duas amigas engajaram numa conversa animada sobre planos para uma viajem entre amigos e Nina foi embora horas depois, mais animada do que quando entrara naquela casa. No dia seguinte, tinha um workshop de escrita para liderar e precisava estar o mais sociável possível para dar palestra aos alunos. Ela mal acreditara quando, dois anos depois de ingressar na universidade, sua professora de Crítica Literária a convidou para participar de um workshop com ela. Desde o início, Nina deixara bem claro suas intenções no curso de letras: pretendia seguir a área de editoração e se tornar escritora. Além disso, possuía bagagem suficiente sobre o assunto, o que promoveu discussões calorosas com a orientadora.

Sua primeira experiência auxiliando o curso de escrita criativa foi tão gratificante que logo surgiram outras oportunidades para workshops em parceria, até que ela iniciou suas próprias oficinas. Era a realização de um de seus sonhos, e ela não pretendia parar por aí. A escrita era sua paixão e, no momento, a única coisa que alegrava sua vida sem graça. Foi uma das melhores e mais prazerosas formas de ganhar dinheiro e ajudar a bancar sua vida solitária.


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Notas finais do capítulo

Como prometido, sexta-feira e um novo capítulo. Nesse aqui ficou bem claro o tom da história, um pouco da vida da Nina e do Hugo, e uma prévia do que terão que enfrentar ao longo do livro, ou seja, eles mesmos e as sombras do seu passado. O que acharam até aqui? Estão ansiosos pelos próximos capítulos? Mandem suas apostas e não se esqueçam de conferir o tumblr da história: http://cantigadeoutroverao.tumblr.com/. Irei postar extras, responderei perguntas a respeito da história e poderei conversar com vocês também. :) Então é isso, até sexta que vem! Boa semana para vocês.



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